A competência jurisdicional é caracterizada por um conjunto de normas que possuem o propósito de melhor organizar o acesso ao Judiciário. O emaranhado de regras encartadas na legislação estabelece quase que matematicamente qual será o juízo competente para processar e julgar os pedidos de cada petição inicial imaginada. Competência é a forma instrumental do princípio do juiz natural. O erro de competência invariavelmente atrasa o iter procedimental, com prejuízo para as partes, notadamente para o autor.
A competência é definida de maneira justificada, é dizer, o objeto da causa define o juízo competente para julgá-la. As matrizes de tal definição são matéria, função, pessoa, território e valor da causa. Diz-se de as duas últimas serem relativas, enquanto as três primeiras, absolutas. A presunção das competências relativas é que elas podem ser modificadas, seja pelo silêncio do réu – quando deixa de arguir a incompetência como preliminar em contestação –, seja em virtude da vontade das partes, por meio do antigo, consolidado e conhecido instituto da eleição de foro.
Pois a eleição de foro teve seu regime agudamente alterado com o advento da Lei 14.879/24. Ao artigo 63 do Código de Processo Civil foram incluídos dois parágrafos que preconizam que, a partir de 4 de junho de 2024, a eleição de foro deixa de ser livre, devendo necessariamente ter relação com o domicílio das partes ou com o lugar de cumprimento da obrigação contratada. Se isso não ocorrer em contratos de consumo, tudo bem, desde que a eleição favoreça o consumidor (o que significa, na prática, a não modificação da regra do foro do domicílio do autor em causas de consumo, que já é antiga).
As críticas às ressalvas para eleição de foro são justas, sobretudo porque a melhor doutrina e o legislador consagraram espaço bastante restrito para as partes, com autonomia, elegerem foro: a depender da matéria, da pessoa ou da organização judiciária as partes não podem derrogar o foro em que trabalha o juiz natural da causa. Sobrou, deveras, disporem as partes sobre o foro sobretudo em temas comerciais e empresariais, na sua essência, privados, tomados pela livre iniciativa constitucionalmente assegurada. Em tese, portanto, o Estado deveria intervir apenas de maneira justificada no caso de tolher essa prerrogativa das partes de escolherem onde tramitaria o processo havido entre elas.
Há duas justificativas para suportar a intervenção do Estado no arbítrio das partes: a primeira, que havia um desbalanceamento na escolha do foro de moda a subverter o juiz natural, com as partes escolhendo foros mais céleres e mais técnicos. Isso resultaria em congestionamento processual, com o aumento de processos em determinados tribunais em detrimento a outros. A segunda, que a alteração legislativa consolida o que diversas decisões judiciais já decidiam, sobretudo no Paraná.
Sobre a primeira, não há evidências que a eleição de foro cause esse congestionamento – nenhuma novidade em um país em que leis são aprovadas sem dados. Neste caso, aliás, parece pouco provável que empresas e comerciantes alterem significativamente o número de casos judiciais em uma realidade em que os maiores litigantes – INSS e Caixa – não escolhem foro. Contudo, parece que a justificativa encontrada pelas decisões judiciais no sentido de que o foro escolhido deve ter pertinência com as partes e com o objeto contratado faz mais sentido.
A definição de competência sempre resguarda certos princípios. A regra geral do foro do domicílio do réu salvaguarda a ampla defesa. A regra material da competência no foro do domicílio do imóvel para a ação de demarcação visa a manter o juízo mais próximo ao objeto do processo; por sua vez, a regra do processamento da ação de indenização no local do dano visa a resguardar a prova. A eleição de foro pura e simples visava a privilegiar a liberdade das partes; a partir desta semana, todavia, essa liberdade deve se curvar à proximidade do objeto e da prova, facilitando e reduzindo custos do processo.
De agora em diante, caberá ao juiz zelar pela eleição de foro. O §2º do artigo 63 do diploma processual tacha de abusiva a eleição de foro sem que as novas premissas sejam observadas. Define, ainda, que o juiz observará a conformidade à nova ordem de ofício. Sim. A competência relacionada à eleição de foro agora é daquelas absolutas, cognoscível de ofício, a qualquer tempo do processo e em qualquer grau de jurisdição. O poder de decisão de ofício é originado do objeto tutelado: se matéria de ordem pública, decide-se de ofício; se privada, a decisão depende de provocação. A lei em análise não apenas criou requisitos para a eleição de foro, mas transformou parcialmente a competência territorial em absoluta.
Esse fato deve ser considerado por empresas e comerciantes quando elegerem o foro em seus contratos empresariais. Se a comarca eleita não estiver necessariamente atrelado ao domicílio das partes ou ao objeto do contrato, a incompetência pode ser conhecida, inclusive, em tribunais superiores, o que causará danos ao requerente dado o tempo decorrido. É preciso ficar atento.
Nada obstante, a regra para fixação do domicílio é encontrada nos artigos 70 e seguintes do Código Civil. Se uma empresa tiver filiais, qualquer uma delas poderá ser considerada domicílio, na forma do artigo 75, IV, §1º do Código Civil. Caso contrário, o local eleito como tal nos atos constitutivos, ou onde se encontre sua administração e diretoria.