Antonio Anastasia conhece como poucos o serviço público brasileiro. Estudioso do tema, o ministro do Tribunal de Contas da União já vivenciou a prática da máquina como secretário, vice-governador, governador de Minas Gerais e senador da República. Sua voz é relevante nos grandes debates, como a Reforma Administrativa e a Lei de Modernização dos Concursos Públicos, sancionada em setembro. Nesta entrevista exclusiva à newsletter ao JOTA, Anastasia defende a estabilidade, mas acompanhada de uma verdadeira avaliação de desempenho e de ajustes que demandam mudanças na Constituição. Ele ainda discute a luta remuneratória dos servidores, o PL dos supersalários e a ausência da gestão pública nas eleições. A seguir, um resumo da conversa:
Encerrado o 1º turno, não é surpresa que nada se fala sobre a gestão do funcionalismo nas cidades. Isso é erro dos candidatos ou é pragmatismo, diante de uma sociedade descrente na conexão entre políticos, servidores e bons serviços prestados?
É uma pergunta instigante. Eu ousaria dizer que é uma questão cultural nossa. Eu acho que nós, no Brasil, infelizmente, não nos acostumamos ainda com o sentimento que o serviço público é imprescindível para a sociedade. Então, na realidade, as pessoas, até no seu dia a dia, elas sabem que precisam do transporte, da saúde, da educação, mas elas não dão valor a isso. Ao não darem valor a isso, elas não cobram das lideranças políticas o respeito e a importância que esses temas deveriam ter, não só nas campanhas, mas no dia a dia da administração.
Eu sempre digo que, lamentavelmente, o tema da gestão pública é um tema que ficou periférico no Brasil, a vida inteira. Não é que ficou, é periférico. Ele nunca foi retirado da periferia. De vez em quando, o governo se interessa mais ou menos, mas não faz parte dos temas relevantes. No Brasil, se discute muito mais, não é crítica, a taxa de juros do que a questão da relevância de uma boa gestão pública, com os critérios modernos que os países mais desenvolvidos já acolheram.
Então, o que acontece? O político, o candidato, aquele que está na política partidária, percebe que as pessoas não têm interesse por aquilo. Por que ele vai discutir esse assunto, não é? Discutir aperfeiçoamento da gestão pública numa eleição, nós sabemos que, lamentavelmente, as pessoas não vão dar valor a isso. Esse é um ponto.
Quando se fala: ‘vamos fazer uma reforma do Estado, uma reforma administrativa’, a pessoa pensa diretamente em carreira de servidores ou estrutura. Não é nem uma coisa nem outra. Reforma administrativa só deve ter um objetivo: melhorar a qualidade do serviço público. Também não é fazer economia. A economia é uma consequência. Ela vem depois da reforma bem feita, mas não é esse o objetivo.
O objetivo é melhorar para que as pessoas tenham confiança no serviço público. Isso é muito importante para a democracia. Porque se as pessoas confiam no Estado, dão valor ao serviço público, elas querem participar democraticamente. Se elas não dão confiança, vem aí um demagogo, uma pessoa aí de plantão, um salvador da pátria, e diz que vai resolver tudo de maneira unilateral, as pessoas acreditam. Pode até consertar um pouquinho no início, mas sabemos que isso não se sustenta a médio e longo prazo.
Isso significa um conjunto de medidas. Também não é uma bala de prata. São várias medidas que envolvem os servidores, que envolvem a estrutura, que envolvem as relações com o mercado, que envolvem a qualificação dos gestores, o compromisso… Tudo isso está junto dentro desse grande pacote de modificar o serviço público no Brasil, que lamentavelmente não tem sido bandeira de ninguém.
No caso das prefeituras, cada uma tem um jeito, um tamanho, uma visão. Muitas não são profissionalizadas, poucas tentam se profissionalizar. Mas todos têm condições de se aproveitar, por exemplo, da inovação tecnológica. De modo geral, o que os gestores municipais deveriam ter em mente em termos de inovações para calibrar as suas administrações de uma forma positiva para a sociedade?
Como você disse, o quadro é muito diverso. Você não vai comparar São Paulo com a Almenara, no interior de Minas Gerais. Os quadros são muito diversos. Então, é impossível que você tenha uma regra geral para todos, mas eu acredito que a inovação [tecnológica] é avassaladora. Isso vai acontecer, uns antes dos outros. Os pequenos municípios no interior da região Sul do Brasil terão essa transformação primeiro que os pequenos municípios na área norte do Brasil, por razões óbvias de capital humano, acesso à informação, tecnologia, de infraestrutura tecnológica. Mas vai acontecer para todos, mais cedo ou mais tarde.
Se nós tivermos um prefeito, uma liderança política inspirada, que perceba essa necessidade, claro que isso irá mais rápido. Sendo o menor universo [das cidades], a modificação é feita com muito mais facilidade. É muito mais fácil mudar uma lancha, até uma canoa, do que o Titanic, que é um transatlântico. E outra coisa: a tendência do mundo agora é descentralização, não existe mais aquela ideia de centralizar as decisões, daquelas hierarquias longas. Até a própria geração Z manifesta isso. Então, nós temos de descentralizar. Quando o problema existe, e ele é resolvido localmente, é resolvido de maneira muito mais rápida e muito mais barata do que dependendo da estrutura central. Então, com a área tecnológica funcionando bem, essa descentralização vai fluir melhor. Os municípios, até por sobrevivência, vão querer dar esse saldo de qualidade.
Como o senhor vê o tema da estabilidade?
Qual é o grande desafio que tem de ser furado por um erro da PEC 32? A PEC 32, originalmente, é um documento muito mal feito. As empresas estatais que integram a administração pública são regidas pela CLT, e seus empregados são protegidos também contra dispensa imotivada. Um empregado da Petrobras, um empregado dos Correios, da Caixa Econômica, do Banco do Brasil, ainda que ele esteja na CLT e não tenha estabilidade, ele é tão protegido quanto um servidor estatutário. Porque a legislação brasileira criou, quer na CLT, quer no regime estatutário, esse sistema.
Então, mudar a estabilidade, como queria até a PEC 32 no seu texto original, do regime que podia haver demissão, não vai adiantar porque a Justiça depois vai anular. Uma demissão imotivada é anulada. Mas a PEC 32 se aperfeiçoou, ao meu juízo, no Congresso. O texto final apresentado pelo deputado Arthur Maia até tornou-se razoável. E o que ele fez? Focou na avaliação de desempenho.
Na avaliação de desempenho, aí sim, você tem condições de sopesar as ações e utilizar esses critérios para dispensar os maus servidores. Culturalmente, o que acontece? O brasileiro, em geral, acha que faz o concurso público, passou no concurso, ele está ali intangível. Ele é inamovível, ele está protegido. Esse instituto tem que ser modificado para ter um acompanhamento de avaliação permanente para ele sentir que é, de fato, cobrado. Que ele só terá promoção em parte do seu salário, que tem que ser variável, se ele desempenhar bem as questões de avaliação.
Concordo que a avaliação de desempenho é difícil de ser aperfeiçoada, não é uma coisa fácil, mas existe. Podemos fazer. Tem no setor privado, pode fazer no setor público também, de maneira verdadeira.
A estabilidade em si é uma defesa que a sociedade tem, não é uma defesa do Estado ou do funcionário. A estabilidade, quando foi concebida lá atrás pelos franceses, na documentação original, na letra administrativa, é exatamente como um cidadão, quando ele exerce parcela do poder do Estado, ele tem que estar protegido contra o governante de plantão. Ele tem autonomia e independência para agir. Imagina só um fiscal que não tem, eventualmente, estabilidade.
Aí se discute. ‘Ah, mas o médico não precisa ter’. É verdade, o médico não precisa ter. Mas o médico também não pode ser sujeito a uma demissão política, porque está no interior atendendo a uma pessoa do partido de destino que o prefeito sinaliza. E nós ainda estamos pouco, digamos assim, maduros em termos de instituições administrativas. Acaba que há, no Brasil, um número excessivo de cargos comissionados. Porque as pessoas querem governar com os seus conhecidos. E está errado.
Nós temos que tentar profissionalizar a administração. Os países só dão certo se tem uma administração burocrática, no sentido positivo da palavra, profissional. E isso, lamentavelmente, nós não vemos no Brasil como uma prioridade.
Por isso que eu defendo muito a escola de governo, mas defendo a estabilidade também. Eu acho que a estabilidade não é, enquanto instituto, um empecilho. Muitas pessoas são equivocadas. ‘A pessoa não trabalha porque é estável’. Não, é o trabalho que não é avaliado. Não é o instituto da estabilidade que atrapalha. É a má aplicação dos institutos de avaliação ou a sua inexistência que impedem. Quantos bons funcionários estáveis nós não temos? Milhares. Eu diria que há uma maioria de bons funcionários.
E para fazer esses ajustes de melhoria de efetividade precisa mesmo mudar a Constituição?
O que acontece é que muitos professores, especialistas em direito administrativo e administração, defendem que a reforma possa ser feita sem alterar a Constituição. Verdade. Mas ela seria reduzida em alguns aspectos. Eu defendo a mudança da Constituição. Primeiro, por razão simbólica. No Brasil, nós nos acostumamos com isso: a reforma dependerá da modificação constitucional.
A Constituição no Brasil, lamentavelmente, não é a Constituição norte-americana. Nós já estamos aí com cento e tantas emendas constitucionais. Então, a essa altura, dizer: ‘vamos proteger a Constituição’ acaba sendo quase que uma falácia porque a Constituição, lamentavelmente, já está muito emendada.
E segundo, porque alguns dispositivos, eles têm que ser modificados pela Constituição exatamente para que a interpretação se dê no Poder Judiciário de maneira uniforme e também para, digamos assim, para parametrizar estados e municípios, porque o grosso do funcionalismo não é na União. Os problemas maiores são os estados e municípios. E aí tem que mexer, evidentemente, na Constituição para permitir que legislação nacional possa conduzir de maneira uniforme esses temas.
Vou dar um exemplo muito importante nisso. Uma questão muito delicada que atrapalha muito hoje o dia a dia da administração é a questão do trabalho temporário. O trabalho temporário, como não há uma regra expressa na Constituição, cada estado e município tem a sua regra. E a Justiça faz disso uma confusão. Então, se nós tivéssemos um comando constitucional explícito, depois uma lei complementar nacional dando os critérios, facilitaria para todos, tenho certeza disso.
Nesse casos específico, é possível adaptar a legislação de temporários sem mexer na Constituição? Ou pode ser barrado no STF?
Eu acho que mexer na Constituição dará mais segurança para evitar exatamente o desdobramento. É muito difícil antever o que o Supremo vai decidir, não é? Eu não poderia nunca ousar isso. Mas até é bom lembrar que nós somos uma federação. E abro aqui um parênteses. Eu atuei como relator na Lei de Licitação, enquanto estava ainda como senador. E a Lei de Licitação atual, a 14133, ela descumpre vários preceitos da Constituição em matéria de autonomia dos estados e municípios. Por quê? Porque os estados e os municípios pediram. Aí eu falava, mas não podemos fazer isso. ‘Não, mas nós queremos’.
É o mesmo caso agora. Os estados e os municípios querem que a União resolva o problema. Mas eles têm de participar disso, através de uma norma constitucional. Também não podem lavar as mãos e deixar só que a União resolver tudo. Nós temos que ter um preceito constitucional que ampare uma lei complementar. Agora, não vou dizer que qualquer avanço legislativo, na ausência da modificação constitucional, não ajude. Ajuda.
Você vê a Lei do Concurso Público. Não precisou mudar a Constituição e já temos um avanço positivo na Lei do Concurso Público. Podemos ter vários desses aspectos. Mas eu acho que uma reforma completa teria esse amparo constitucional, quer dizer, de maneira política, simbólica, muito importante, e também para dar mais segurança jurídica nos desdobramentos legislativos posteriores. Mas, na impossibilidade de mudar a Constituição do ponto de vista político, então é claro que é melhor ter a lei publicada do que não ter nada.
No serviço público federal, a agenda das carreiras, dos reajustes e as mudanças no programa de avaliação de desempenho estão na ordem do dia. E os embates são muito fortes. Como se lida com esse dilema: aperfeiçoar a gestão em agendas que mexem com a vida dos servidores?
Não é fácil. Eu sempre cito que o paradoxo maior está na nossa Constituição de 88. A Constituição de 88 foi promulgada em um momento de grande esperança nacional e concedendo a nós, cidadãos brasileiros, políticas públicas de educação, de saúde, assistência, de fomento ao emprego, do ambiente, etc. Mas, por outro lado, ela foi tão rigorosa na administração pública, ela desconfiava do governo militar que estava acabando, que ela impediu a administração de realizar aquelas políticas públicas.
Então, percebeu-se que o Estado está completamente amarrado. Esse é um grande dilema. Por isso, o paradoxo que nós temos nesse aspecto. Agora, não é fácil, mas nós temos que fazer, temos que ter coragem. Por isso que eu sempre desejo, aguardo, uma liderança política inspirada, que perceba… Não precisa ter o conhecimento dos assuntos, ela tem que ter a vocação e o gosto pelo serviço público para saber que a gestão empreendedora e moderna vai resolver os problemas do Brasil. Mas os estados e municípios têm de participar disso, porque nós somos uma federação.
As carreiras, o que acontece também, os próprios sindicatos, nos fóruns, que eu respeito todos, também acabam tendo visão muito corporativa. O corporativismo protege, é devido, é compreensível, mas não pode ser exagerado. Tem que perceber que, no serviço público, o que vale, em primeiro lugar, é o interesse público, é o cidadão, não é o servidor, como também não é o agente político.
Então, essa dificuldade de compreensão, o que é humano e o que compreendo, é legítimo que ocorra, deve ter de ser sopesada. Então, no equilíbrio, no bom senso, temos que ver como reformar as instituições de modo que alcance os objetivos. E não é difícil fazê-lo. Se você ver o que Portugal fez ao longo das últimas décadas, nos últimos 20 anos, Portugal tinha uma administração pública que não era considerada modelar. Hoje é. Teve apoio da OCDE, teve apoio da comunidade europeia, não há dúvida, mas avançou demais.
Hoje é considerada um modelo. Por quê? Porque houve a mudança da cultura, com a administração pública colocada como item importante da agenda nacional. Então todas as forças políticas têm de perceber isso. É fácil dizer, mas é difícil acontecer, porque as prioridades são outras, até porque o dia a dia da administração é isso. É muito comum que as pessoas tenham posições ideológicas e partidárias que se aproximem ou se afastem disso, infelizmente.
Tem a questão da remuneração. Há reconhecidas distorções entre carreiras, entre funções semelhantes. O senhor concorda que, independentemente dos percentuais, isso acaba criando um ciclo de insatisfação? Como romper isso?
Esse ciclo existe mesmo. É aquele famoso caso: a grama do vizinho é sempre mais bonita do que a nossa. Você tem um carro zero, mas o vizinho compra um carro de mais luxo, você está invejoso do carro do vizinho. Quanto mais você tem, mais você quer. Isso é muito difícil também superar, porque a sociedade é uma sociedade competitiva. Isso certamente não acontece no Japão, na Escandinávia, mas acontece aqui no Brasil.
Então nós temos que ter realismo com isso. A primeira observação que você fez é corretíssima, as distorções são imensas. Existem categorias muito bem remuneradas, outras categorias muito mal remuneradas. Nós temos hoje um problema gravíssimo na educação, porque a carreira de professor, principalmente nos estados e municípios, não é mais uma carreira atrativa como foi no passado.
Era comum no passado, todas as famílias terem orgulho das suas professoras, que eram das famílias. Hoje é difícil uma família de classe média ter uma pessoa que vai ser professora de ensino fundamental ou médio. É difícil acontecer isso. Você vê que tem até falta de quadros, porque a carreira perdeu a sua atratividade, do ponto de vista remuneratório, e até do ponto de vista do reconhecimento social, o que é uma gravidade. Minha mãe é professora, minha avó é professora, então essas referências existiam, mas hoje em dia já está diminuindo muito.
Então, nós temos de prestigiar essas carreiras do ponto de vista remuneratório e social, porque é importante também esse reconhecimento. E estabelecer critérios, que são os mínimos que eu defendo de remuneração variável, até para estimular, que não dá para todos terem o mesmo percentual, mas você estimular aqueles que são melhores.
Eu sei que essa ponderação que eu faço há muito tempo é muito mal vista pelos sindicatos, por exemplo, que não gostam de remuneração variável. Mas eu acho que isso é um critério positivo, porque você vai dar uma parcela do salário em troca dos resultados que aquele servidor vai poder entregar. Então eu acho que essa questão remuneratória é isso. E isso é um ponto interessante.
A sociedade enxerga os servidores, muitas vezes, como uma camada de pessoas beneficiadas, e algumas são, de fato. Mas se você olha aqui no Brasil, o ministro da Fazenda ganha R$ 40 mil bruto. Olha a responsabilidade que tem! O presidente do Banco Central deve ganhar pouco mais do que isso, ou menos do que isso. Enquanto o presidente do Banco do Brasil ganha cento e tantos, o presidente da Vale, dizem, que é R$ 5 milhões por mês, não sei se é verdade.
Então veja só que são situações muito destoantes da realidade e da necessidade que se tem. O governo federal, corretamente, está encaminhando, dentro dessas medidas, um aumento de cargos comissionados porque ninguém vem para Brasília. Agora, pode saber que vai haver muita crítica. ‘Absurdo, como é que ganha isso?’ Mas como é que uma pessoa vai sair do meu estado, do Rio de Janeiro, de Pernambuco, para vir para Brasília? Para vir para Brasília, cujo custo de vida é maior, para ganhar R$ 15 mil bruto? É um deboche, não é?
Não há vocação de serviço público que suporte isso. Você até pode ficar um ou dois anos gastando suas reservas. Nós temos que ser realistas. Por outro lado, existem remunerações de mais de R$ 100 mil! Não pode. Então tem um pouco de equilíbrio. O bom senso falta no Brasil em várias áreas, inclusive nessa.
É fato que carreiras com maior força política e proximidade com o poder acabam tendo melhores resultados em seus processos de negociação. Como esse tema deve ser encarado?
Isso é tão grave no Brasil que a Constituição brasileira tem um dispositivo, muito cômico até, que diz que nas áreas dos aeroportos haverá precedência da Receita Federal. O que é isso? Era a briga da Receita com a Polícia Federal. Imagina, uma briga de duas instituições, por conta de carreira, de prerrogativas e privilégios.. acabou na Constituição. É de rir ou de é chorar? Veja que é um descalabro.
Então esses conflitos existem dentro das próprias carreiras. Isso de fato não leva a lugar algum. Porque nos falta exatamente o quê? Na origem, nos falta o reconhecimento da relevância da gestão. O que eu defendo muito, defendi durante muito tempo, é que tínhamos o DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público). No tempo antigo do DASP, a situação era muito mais calma que hoje, que havia um locus institucional, uma inteligência concentrada, que dava diretriz gerais.
Em 1985, quando o DASP foi extinto, nada foi colocado no lugar. De lá para cá, nós vivemos o caos porque a parte da gestão pública no Brasil, ora é o Ministério, ora é uma Secretaria, ora é o puxadinho do Ministério da Economia, ora está na Presidência da República. Então não há uma identificação que permita uma continuidade de programas e projetos.
Por isso que eu defendo de maneira ardorosa que o 1º passo da reforma do Estado do Brasil seja a criação de uma instituição, não importa o nome, a forma jurídica, como tem em vários países, uma agência central que vai balizar o serviço público, que vai dar essas diretrizes, para tentar exatamente diminuir esses conflitos, para dar racionalidade, para estabelecer as regras de concurso, de acesso às qualificações de carreira, o concurso mais adequado para a profissão, e não temos isso no Brasil.
Em que medida o Ministério da Gestão cumpre ou não esse papel que o senhor está propondo?
O Ministério da Gestão já é um ponto positivo, mas o ministério é uma pasta política. Nada diz que no próximo governo vai existir o Ministério da Gestão. Então, esse é o problema. Nós temos que criar uma instituição, não de governo, mas de Estado, como foi o DASP durante 50 anos. Criar uma instituição sólida, com carreira própria, com pessoas especialistas, como é o Itamaraty. Nenhum governo pode extinguir o Itamaraty, ou extinguir a Receita Federal. Na verdade, no mesmo caso, tem que ser criado um organismo, tão importante quanto esses, que vai cuidar do serviço público.
Por que o PL dos supersalários, que discrimina rendimentos extras de servidores e disciplina quais deles podem ficar fora do teto, não é nem lembrado?
Como senador, eu defendi publicamente o projeto. Eu chamava até o projeto, na época, de cartão de visitas da reforma, que seria o primeiro passo para que a reforma avançasse. Um projeto racional que coloca limites, mantém remunerações razoáveis, mas evita abusos que nós sabemos que ocorrem no Brasil.
Mas aí você sabe, quando você vai bulir e ferir suscetibilidades e interesses, as resistências acontecem. Eu aprendi no Congresso, durante os anos que fui senador, que é muito mais fácil segurar um projeto do que aprovar um projeto. Porque você colocando ali três, quatro ou cinco parlamentares, eles conseguem segurar. E não adianta quatro ou cinco para aprovar.
Mas eu acho que, mais dia menos dia, essa legislação tem de avançar até para dar o que quer a opinião pública: transparência, visibilidade, razoabilidade… Tem coisas que são, vamos dizer assim, indefensáveis. Isso tem de ser colocado.
Recentemente foi sancionada a lei nacional dos concursos, com uma negociação da qual o senhor participou. Essa lei é aplaudida por todos, mas como fazer para que ela seja incorporada à prática, principalmente nos municípios?
É claro que todas as leis, elas não vão, do dia para a noite, fazer uma revolução. É um processo. Aos poucos, ela vai sendo implementada. A nova lei de licitação, essa foi a pior de todas, havia uma resistência imensa no início, tanto que ela foi adiada até a sua vigência. Agora, hoje, é fato concreto que ela está sendo aplicada.
Então, o concurso também ocorrerá isso. Eu acho que todo mundo vai perceber que é muito melhor ocorrer isso. Agora, nós temos hoje um fato novo, que eu acresço aqui: a parceria com o setor privado, ela hoje é muito maior e mais importante do que era no passado. Então, há uma tendência, numa opinião pessoal minha, de nós diminuirmos um pouco aquelas áreas do Estado que podem ser típicas, mas não são exclusivas, como saúde, educação, por exemplo, com parcerias com o setor privado. Isso eu acho que acontecerá no Brasil, como aconteceu pelo mundo afora.
Isso pode modificar um pouco até o tamanho da administração, talvez, sem prejuízo de qualidade e de qualificação. Isso ocorrerá, a médio e longo prazo, mas o concurso vai continuar existindo, não só para as carreiras que são exclusivas, necessárias, mas também para várias outras que são típicas e vão continuar recrutando pessoas, talvez em menor número do que no passado.
Esses arranjos demandam mudanças constitucionais?
Não há necessidade de mudar a Constituição. Há, sim, uma questão mais delicada, que é o exercício do poder de polícia. Esse é um tema que instiga muito em Minas Gerais. Você acompanhou a tristeza das tragédias que tivemos em Mariana e Brumadinho. Em Minas, nós tínhamos somente quatro fiscais, na época, do DNPM. Hoje, é a Agência Nacional de Mineração, que também tem um número pequeno de fiscais. Não havia fiscalização nenhuma. Então, a ideia que se cogitou de certa época, e também aplaudi, é que determinadas atividades de poder de polícia, que são atividades exclusivas, podem ser mitigadas com a esfera privada, como acontece, por exemplo, no Canadá. Na área de mineração, por exemplo, há um alto controle.
Isso é mais polêmico aqui, mais complexo. Mas eu acho que caminharemos para isso, que não tem justificativa nós temos necessidades ambientais imensas… e nós não temos condição de desenvolver isso, tendo as universidades, organizações não governamentais, empresas, que podem colaborar com o poder público, inclusive na avaliação de projetos, que hoje ficam restritos
não somente ao crivo da administração. Então, a racionalidade, ao final, vai se impor, eu acredito.
No evento do Fonacate, do qual foi palestrante, o senhor discorreu sobre a mudança de mentalidade da nova geração, da geração Z, que não gosta de carreira, que não gosta do tema de estabilidade. Como se preparar para a transição para a chegada dessa nova geração no serviço público?
É interessante observar a evolução da Humanidade. Quando nós saímos da economia agrícola para a economia industrial, todo mundo pensou que ia ser o caos, mas funcionou. Depois, saímos da economia industrial para a economia de serviços. Então, acho que o próprio homem, que é o animal mais adaptável na face da Terra, vai dar solução a isso. Agora, os líderes políticos brasileiros e os líderes de comunidades internacionais, até pela faixa etária, eles não têm a cultura dessa geração Z, é óbvio. Então, a mentalidade é outra. E como as mudanças hoje ocorrem com uma rapidez mil vezes maior do que aconteceu a mudança da agricultura para a indústria e da indústria para o serviço, os desafios são maiores.
Acho que essa percepção do que vai ser feito ocorrerá na prática, no dia a dia dos acontecimentos. É muito difícil planejar isso, até porque, ainda que a geração Z tenha essas características, nem todos os jovens têm essa percepção. É a maioria, mas são todos. Então, muitos ainda vão querer estabilidade, carreira, etc. Mas não é mais aquele sonho antigo como tínhamos no passado.
Essa modificação de comportamento social vai afetar muito o serviço público, não há dúvida alguma. Esse certo descompromisso, digamos assim, com a perenidade das coisas que nós tínhamos, pelo menos na minha geração, hoje não existe mais. Isso modifica a administração, porque a administração tende a ser algo perene, solene, com continuidade. E a nova exigência da sociedade é distinta disso.
O que vai acontecer, eu não sei. O que o governo tem de fazer nesse meio tempo é avançar o máximo possível em tecnologia para não ficar defasado. Com o governo digital, o que for possível fazer para dar esses acessos, como já tem sido feito, aliás. Acho que o governo evolui positivamente nisso, ainda que no Brasil não tenha infraestrutura suficiente para lastrear esses aspectos, mas já é algo positivo de perceber que o problema existe, o que, por si, já é algo que nós devemos aplaudir.