Neurodados e neurodireitos: uma primeira aproximação

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A medicina moderna, por meio de técnicas como a Ressonância Magnética Funcional (FMRI) e a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET), nos permite acompanhar a atividade cerebral em tempo real, proporcionando uma compreensão cada vez melhor do funcionamento do cérebro humano e seu reflexo nos processos decisórios e comportamentais. Esses avanços no campo das neurociências permitiram também, entre outras inovações, a amplificação do uso das nanotecnologias no campo cerebral — termo que faz referência aos instrumentos que permitem a interação direta com o sistema nervoso para monitorar ou influenciar suas atividades.

Um exemplo é a Neuralink, empresa de Elon Musk, que busca desenvolver pequenos computadores a serem inseridos no cérebro — chips cerebrais — com o fim de permitir a troca direta de informações entre o cérebro e computadores[1], algo que, por enquanto, não é possível, mas que já mostrou indícios concretos de possíveis avanços no tratamento de condições clínicas neurológicas.[2]

Outro exemplo, menos invasivo, são os fones de ouvido patenteados[3] e em possível desenvolvimento pela Apple, que utilizam eletrodos para analisar as ondas cerebrais do usuário, permitindo uma série de medições.[4]

Portanto, o uso dessas novas tecnologias abre muitas oportunidades no campo das neurociências, mas suscita ainda mais dúvidas sobre qual — e se existe — o seu uso responsável e quais são as perspectivas regulatórias.

Quais os usos possíveis dos dados neurais?

Nesse sentido, é importante considerar que o avanço e o progresso nos investimentos em tecnologias revolucionárias que utilizam dados neurais como base de pesquisa são uma realidade cada vez mais palpável, mas o que se verifica ainda é uma grande lacuna regulatória, natural diante das incertezas intrínsecas a essas novas inovações.[5]

Assim, considerando que esses neurodados — dados provenientes de sinapses cerebrais que ocorrem como resposta a estímulos externos — são coletados diretamente de um indivíduo, surgem questões cruciais relacionadas à proteção dos direitos fundamentais: existe diferença entre dados neurais e demais dados pessoais sensíveis já tutelados pela lei? Como garantir a evolução da ciência e ao mesmo tempo a proteção desses dados e a privacidade dos indivíduos envolvidos? Quais são as implicações do uso de neurodados no devido processo legal?

Ora, é possível especular a respeito do seu uso de neurodados e mesmo de todo o aparato de informações sobre o cérebro humano pelo Estado, em políticas públicas voltadas ao direcionamento dos comportamentos sociais. O perigo que isso representa, vai além do uso dos dados neurais coletados nos incentivos subconscientes para guiar a população a fazer escolhas em linha com as preferências dos reguladores e burocratas, mas abre espaço para uma eventual manipulação direta, a depender do nível de sofisticação de coleta de neurodados que pode ser atingida a longo prazo, como Harari prevê de uma maneira um pouco distópica o futuro da nossa sociedade em suas recentes obras. Cabe sempre pontuar que, muitas vezes, ideias que eram inconcebíveis 20 anos atrás, hoje já se tornaram uma realidade — e os testes clínicos da Neuralink é o maior exemplo disso.

Outro aspecto que pode ser considerado é sobre o papel desses sofisticados dados em um processo judicial, sobretudo penal. Supondo o eventual uso comercial de tal tecnologia, aplicada ao judiciário, a coleta de dados neurais de magistrados, advogados ou membros do Ministério Público pode servir, por um lado, como ferramenta de mensuração de imparcialidade. Por outro lado, quando aplicado às partes ou a um réu no processo, certas garantias processuais basilares podem acabar sendo pervertidas. Mesmo que sujeito às mesmas regras de valoração probatória, esse tipo de informação pode surtir um efeito de grande influência sob um terceiro ou sob a figura julgadora, potencialmente introduzindo distorções profundas.

Também grandes corporações ou partidos políticos poderiam ter acesso a muitas informações sobre as pessoas e suas decisões de consumo e voto a partir de um volume muito grande de dados obtidos e processados por grande capacidade computacional quântica, o que certamente não seria desejável socialmente.

O caso do Chile

Poucos países mencionam a proteção aos neurodireitos — isto é, direitos vinculados à atividade cerebral, cognição e consciência — em sua legislação, tão pouco se propõem a regular seu tratamento e uso. No entanto, o Chile é pioneiro na área, sendo seguido de perto pelo Brasil.

Lançando olhar sobre o caso chileno, os neurodireitos foram elevados ao patamar de direitos fundamentais e protegidos pela Lei 19.628, a lei de proteção de dados pessoais do Chile.[6] Nesse contexto, é importante destacar a decisão da Suprema Corte chilena sobre a proteção da atividade cerebral, que enfatiza diversos aspectos críticos relacionados aos neurodireitos e a coleta de neurodados, reconhecendo-os como dados sensíveis e biométricos.[7]

A decisão surgiu de um caso envolvendo a Emotive Inc., uma empresa que comercializava um dispositivo chamado Insight, um headset que lê e processa sinapses cerebrais.[8] A Suprema Corte enfatizou que esses neurodados, mesmo quando anonimizados, requerem consentimento explícito para coleta e uso, especialmente no contexto de usos científico e comercial. Essa necessidade decorre dos potenciais riscos que os neurodados representam para a privacidade mental, integridade mental, liberdade cognitiva e liberdade de pensamento.

A recente alteração na Carta Fundamental chilena, através da Lei 21.383 de 2021, trouxe inovações significativas, como o artigo 19, que agora protege expressamente a atividade cerebral dos indivíduos e a informação derivada dela, assegurando que o desenvolvimento científico e tecnológico servirá aos cidadãos.

Artigo 19: A Constituição assegura a todas as pessoas:

………………………………………………………………………

O desenvolvimento científico e tecnológico deve estar a serviço dos indivíduos e deve ser realizado com respeito à vida e à integridade física e mental. A lei regulará os requisitos, condições e restrições para seu uso em indivíduos e protegerá especialmente a atividade cerebral, bem como as informações dela derivadas.

(Tradução e grifos nossos)

Além de garantir a integridade física e psíquica, a alteração constitucional chilena introduziu outros direitos fundamentais, dentre eles, estes centrais ao presente artigo: o direito à privacidade mental, à identidade e autonomia pessoal, e ao livre arbítrio e autodeterminação.[9]

As consequências para o ordenamento jurídico chileno são profundas, refletem uma adaptação às demandas modernas, e estabelecem um novo marco para a proteção dos direitos fundamentais em face das inovações tecnológicas, fornecendo um substrato robusto para a regulação do uso de neurotecnologias, assegurando que os avanços científicos beneficiem a sociedade sem comprometer a integridade e a autonomia individual.

Panorama regulatório: o caso brasileiro

No Brasil, atualmente, o tratamento de dados pessoais, dentro de seu escopo de aplicação, está sujeito às previsões da Lei 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).[10] Seus dispositivos versam sobre o tratamento de quaisquer dados pessoais, coletados pelo meio físico ou digital e prevendo restrições ao mau uso dessas informações em qualquer operação eventual.[11]

A lei prevê para os principais agentes, o “Controlador” — responsável pelo tratamento — e o “Operador” — que realiza as operações de tratamento em nome de determinado Controlador –, uma série de responsabilidades e limitações que devem ser observadas quando tratando quaisquer dados pessoais. Desta forma, a LGPD, assim como outras regulações internacionais sobre o tema – como o Regulamento Europeu de Proteção de Dados Pessoais –, já traz uma base jurídica robusta para regular o uso de dados neurais eventualmente coletados por meio de tecnologias como a Neuralink. Se tal base é suficiente ou não, há discussões diversas nesse sentido.

Assim, já foram colocadas algumas propostas para alterar a LGPD, prevendo regras específicas para a coleta e tratamento responsável dessas informações. Destes, destacam-se dois: o PL 522/2022 e o PL 2174/2023. Este primeiro visa incluir o termo “neuro dado” na definição de “dado pessoal sensível” prevista no art. 5º, II e inserir uma nova seção na lei que estipula novos procedimentos de consentimento para a coleta, veda operações comerciais com os dados como objeto para fins de vantagem econômica e contempla que o Estado assegurará o acesso equitativo dessa tecnologia à população.[12]

Por outro lado, o PL 2174 conceitua “neurodireitos” como um conjunto de direitos fundamentais relacionados ao cérebro humano e ao sistema nervoso, acompanhado de outras várias regras que estabelecem salvaguardas e garantias contra o mal uso dos dados neurais e das possíveis consequências médicas de sua coleta.[13] Interessante ressaltar o art. 17 do projeto, que prevê a vedação da “utilização de técnicas de persuasão ou manipulação cerebral sem o consentimento livre, informado e esclarecido do indivíduo“, em linha com a preocupação de se prevenir a coerção — desde o nudge até a manipulação por terceiros, comprometendo a liberdade cognitiva[14] — do indivíduo que fez uso ou foi submetido a essa tecnologia.

Ao buscar a positivação de uma definição específica do conceito de neurodireito ou de neurodado, conferindo um tratamento diferenciado a esses dados, implicitamente ocorre um reconhecimento da premissa de que essa classe de informação extraída por meio de tal tecnologia inovadora tem uma natureza diferente dos demais dados pessoais coletados na internet, por exemplo. A ideia da necessidade de um tratamento diferenciado é um dos pontos mais controversos do debate acerca dessa regulação, sobretudo no que diz respeito às possíveis abordagens.[15]

A proposta que mais se destaca, entretanto, é a PEC 29/2023.[16] Ainda sob análise da CCJ do Senado, a PEC 29 traz uma alteração simples e objetiva, porém fundamental, que pode servir como o pontapé inicial de uma reforma do ordenamento jurídico brasileiro, de forma a abarcar essa nova e necessária regulamentação da proteção da coleta e tratamento de dados neurais. A PEC se resume à inclusão do inciso LXXX ao art. 5º que lê, in verbis:

Art. 1º O art. 5º da Constituição Federal para a vigorar acrescido do inciso LXXX:

Art. 5º ……………………………………………………………………………………………….

…………………………………………………………………………………………………………..

LXXX – o desenvolvimento científico e tecnológico assegurará a integridade mental e a transparência algorítmica, nos termos da lei.

(Grifo nosso)

Por fim, cabe destacar que há a proposta de inclusão de neurodireitos por meio da Reforma do Código Civil Brasileiro, conforme a seguinte redação:

Art. . Os neurodireitos são parte indissociável da personalidade e recebem a mesma proteção desta, não podendo ser transmitidos, renunciados ou limitados.

1º São considerados neurodireitos as proteções que visam preservar a privacidade mental, a identidade pessoal, o livre arbítrio, o acesso justo à ampliação ou melhoria cerebral, a integridade mental e a proteção contra vieses, das pessoas naturais, a partir da utilização de neurotecnologias.
2º São garantidos a toda pessoa natural os seguintes neurodireitos:

I – direito à liberdade cognitiva, vedado o uso de neurotecnologias de forma coercitiva ou sem consentimento;

II – direito à privacidade mental, concebido como direito de proteção contra o acesso não autorizado ou não desejado a dados cerebrais, vedada a venda ou transferência comercial;

III – direito à integridade mental, entendido com o direito à não manipulação da atividade mental por neurotecnologias, vedada a alteração ou eliminação do controle sobre o próprio comportamento sem consentimento;

IV – direito de continuidade da identidade pessoal e da vida mental, com a proteção contra alterações na identidade pessoal ou coerência de comportamento, vedadas alterações não autorizadas no cérebro ou nas atividades cerebrais;

V – direito ao acesso equitativo a tecnologias de aprimoramento ou extensão das capacidades cognitivas, segundo os princípios da justiça e da equidade;

VI – direito à proteção contra práticas discriminatórias, enviesadas a partir de dados cerebrais.

3º Os neurodireitos e o uso ou acesso a dados cerebrais poderão ser regulados por normas específicas, desde que preservadas as proteções e as garantias conferidas aos direitos de personalidade”.

Portanto, enquanto não há perspectiva de aprovação de um projeto de lei de cunho mais técnico para trazer essa necessária regulação no âmbito da LGPD, a inclusão de uma nova norma constitucional seria uma base sólida pode trazer alguma previsibilidade jurídica para a matéria. Isto porque o termo “transparência algorítmica” utilizado na PEC pode se relacionar ao princípio da transparência, inscrito no art. 6º, VI da LGPD, que prevê a garantia de fornecimento de informações claras aos titulares relativos aos agentes e a forma de tratamento dos dados cedidos, bem como ao chamado direito à explicação, traduzido na legislação pelo art. 20, §1º da LGPD.

No entanto, a decisão por não regular especificamente, mas, sim, valer-se de regulações e dispositivos legais já existentes, também deve estar sobre a mesa e ser seriamente considerada, sendo sempre uma opção, especialmente quando estamos em uma fase muito inicial do desenvolvimento de uma tecnologia. Afinal, o grande problema do Brasil é excesso de regulação e de judicialização e não sua falta. Em realidade, o maior problema de nosso país é justamente o insuficiente desenvolvimento de tecnologia e inovação.

Autores:

Luciano Benetti Timm, Henrique Monaci de Pauda, Lucas del Monte Fanelli, Sophia Egêa Traldi, Vitor Kenzo Yoem e Matheus Sturari Professor, alunos da FGV-SP na matéria de Direito, Economia Comportamental e Neurociências de 2024/1 e membro do Grupo de Estudos em Direito e Neurociências da FGV-SP, respectivamente

[1] SCHWALLER, Fred. Neuralink: o que podem fazer os chips cerebrais da empresa de Elon Musk?. G1, 20 set. 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/inovacao/noticia/2023/09/20/neuralink-o-que-podem-fazer-os-chips-cerebrais-da-empresa-de-elon-musk.ghtml>. Acesso em: 24 maio 2024.

[2] JEWETT, Christina. Despite Setback, Neuralink’s First Brain-Implant Patient Stays Upbeat. The New York Times, 22 maio 2024. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2024/05/22/health/elon-musk-brain-implant-arbaugh.html>. Acesso em: 25 maio 2024.

[3] UNITED STATES PATENT OFFICE. Biosignal Sensing Device Using Dynamic Selection of Electrodes (US20230225659A1). Google Patents, 20 jul. 2023. Disponível em: <https://patents.google.com/patent/US20230225659A1/en >. Acesso em: 25 maio 2024.

[4] TIMES OF INDIA. Apple‘s new patent shows AirPods with brain wave-detecting sensors. Times of India, 31 jul. 2023. Disponível em: <https://timesofindia.indiatimes.com/gadgets-news/apples-new-patent-shows-airpods-with-brain-wave-detecting-sensors/articleshow/102278175.cms>. Acesso em: 25 maio 2024.

[5] LEMOS, Ronaldo. Neurodireitos: o cérebro é a nova fronteira. Folha de São Paulo, 3 mar. 2024. Disponível em:<https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ronaldolemos/2024/03/neurodireitos-o-cerebro-e-a-nova-fronteira.shtml>. Acesso em: 25 maio 2024.

[6] CORNEJO-PLAZA, María Isabel; CIPPITANI, Roberto; PASQUINO, Vincenzo. Chilean Supreme Court ruling on the protection of brain activity: neurorights, personal data protection, and neurodata. Frontiers in Psychology, v. 15, 27 fev. 2024. Disponível em: <https://www.frontiersin.org/journals/psychology/articles/10.3389/fpsyg.2024.1330439/full>. Acesso em: 26 maio 2024. p. 2.

[7] Ibid. pp. 3-4.

[8] Ibid. p. 6.

[9] Ibid. p. 7.

[10] BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm>. Acesso em: 27 de maio de 2024.

[11] GOVERNO FEDERAL. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: <https://www.gov.br/esporte/pt-br/acesso-a-informacao/lgpd#:~:text=A%20Lei%20fala%20sobre%20o,em%20meios%20manuais%20ou%20digitais.>. Acesso em: 27 de maio de 2024.

[12] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 522, de 9 de março de 2022. Modifica a Lei n° 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), a fim de conceituar dado neural e regulamentar a sua proteção. Brasília, DF, 9 mar. 2022. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2317524&fichaAmigavel=nao>. Acesso em: 26 maio 2024.

[13] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 2174, de 26 de abril de 2023. Estabelece as normas e princípios para proteção dos direitos fundamentais relacionados ao cérebro e ao sistema nervoso humano, objetivando garantir a proteção e promoção dos neurodireitos dos indivíduos. Brasília, DF, 26 abr. 2023. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2358605#:~:text=PL%202174%2F2023%20Inteiro%20teor>. Acesso em: 26 maio 2024.

[14] ISTACE, Timo. Neurorights: The Debate About New Legal Safeguards to Protect the Mind. Issues in Law & Medicine, [s. l.], v. 37, n. 4, ed. 1, p. 95-114, 1 abr. 2022. Disponível em: <https://issuesinlawandmedicine.com/articles/neurorights-the-debate-about-new-legal-safeguards-to-protect-the-mind/>. Acesso em: 26 maio 2024. p. 106-107.

[15] PAZ, Abel Wajnerman. Is Your Neural Data Part of Your Mind? Exploring the Conceptual Basis of Mental Privacy. Minds and Machines, [s. l.], v. 32, p. 395-415, 23 set. 2021. Disponível em: <https://link.springer.com/article/10.1007/s11023-021-09574-7>. Acesso em: 25 maio 2024. p. 412-413

[16] SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda à Constituição nº 29, de 13 de junho de 2023. Altera a Constituição Federal para incluir, entre os direitos e garantias fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica. Brasília, DF, 13 jun. 2023. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158095>. Acesso em: 26 maio 2024.