Se as Conferências do Clima (COP, na sigla em inglês) são espaços onde os negociadores dos países se unem para debater soluções para as mudanças climáticas, os chefes das nações indígenas deveriam ter representação própria.
Pode soar disruptivo, mas é mais lógico do que parece. A divisão política dos países como a conhecemos é resultado de um longo processo de colonização, processo este que dizimou populações indígenas e, até hoje, é objeto de disputa territorial. Como resultado, muitas vezes os povos originários não têm seus territórios e suas lideranças reconhecidas formalmente, mas nem por isso deixam de ter seus sistemas sociais, culturais e políticos vivos.
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A resistência e resiliência indígena se traduz em uma árdua luta por representatividade nas COPs. Com a primeira representação indígena em uma Conferência do Clima registrada em 1998, dois anos depois, a primeira liderança indígena brasileira participa da COP 6, nos Países Baixos, como parte da delegação da Coica (Coordenadora das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica).
Sem um espaço de diálogo entre outros representantes indígenas e com negociadores, as lideranças indígenas que participavam das COPs se viam escanteadas – a falta de apoio intensificava os obstáculos. Em um espaço onde a língua corrente é o inglês, a conferência pode ser um ambiente hostil àqueles que já têm que fazer o esforço de ser bilíngues – além de falarem sua língua materna, muitas vezes são obrigados a aprender as línguas oficiais de seus países.
Participar desses espaços na dependência de tradutores, que nem sempre traduzem a mensagem com a emoção passada pelos indígenas, limitava sua participação. Além disso, os termos utilizados nas Conferências de Clima são muito específicos deste ambiente que se misturam a um mar de siglas constantemente em atualização, tornando o debate ainda mais inacessível.
Apesar das dificuldades, com o passar dos anos, vão sendo conquistados espaços sólidos de representação das diversas nações indígenas do mundo. A crescente presença indígena resulta em avanços de reconhecimento de seus direitos de forma ampla, como a publicação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em 2007, e a criação no ano seguinte do Fórum Internacional dos Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas (IIPFCC).
Mais conhecido como Caucus Indígena, este fórum é o espaço em que representantes indígenas das sete etno-regiões do mundo se reúnem para propor sugestões aos negociadores sobre os diversos temas debatidos nas COPs, como financiamento climático e perdas e danos.
Esse grupo de especialistas indígenas em mudanças climáticas segue um sistema de alternância da copresidência de acordo com a região onde serão as Conferências de Clima. Atualmente, Sineia do Vale, do povo Wapichana, é parte da copresidência do caucus, encarregada de coordenar toda a região da América Latina e Caribe.
Durante as COPs, lideranças indígenas se reúnem no primeiro horário da manhã para uma reunião de atualização. Responsáveis por cada pauta comentam com o grupo o que foi discutido no dia anterior e trazem propostas para serem levadas à plenária.
Cada tema pode ter um ou mais pontos focais que assumem essa função de representar o caucus nas mesas de negociação. Tarefa extremamente delicada, pois, diferentemente dos negociadores de países que representam seu próprio país, os indígenas falam em nome de 5.000 culturas distintas com visões de mundo singulares. Só no Brasil, há cerca de 300 povos falantes de 270 línguas, além do registro de 100 povos em isolamento voluntário.
Na tentativa de abrir canais de diálogo e espaços de troca entre povos e culturas do mundo todo, a COP 20, realizada em Lima, no Peru, inaugurou o Pavilhão Indígena. Sob direção do Caucus Indígena, o pavilhão se tornou um espaço onde povos originários pudessem expressar seus feitos, compartilhar soluções para enfrentar as mudanças climáticas e buscar apoio entre si e outros para garantir um futuro climaticamente saudável.
Apesar de representar uma conquista, no primeiro momento, o Pavilhão Indígena ficava localizado na zona verde, espaço não oficial dedicado à sociedade civil. Com a distância física entre a zona verde e a zona azul, local restrito ao espaço das negociações, ainda havia um limite de comunicação entre as pautas indígenas e as delegações de países. Nos últimos anos, no entanto, o Pavilhão Indígena passou a estar localizado na zona azul, facilitando as trocas entre representantes indígenas e negociadores.
Os marcos das conquistas seguiram abrindo novas frentes de diálogo. No ano em que o mundo assinava o Acordo de Paris, em 2015, foi instalada a Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP). Ao contrário do caucus, a plataforma é gerida por um grupo facilitador composto por sete membros de organizações indígenas e sete dos países signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC).
O Grupo Facilitador trabalha sob três pilares (i) o conhecimento, (ii) a capacitação para o engajamento e a (iii) promoção de políticas e ações climáticas. Seu propósito é aproximar povos originários do processo de negociação e permitir que negociadores aprendam com as lideranças indígenas possíveis soluções que sejam incorporadas nos acordos climáticos internacionais. Assim como o caucus atualmente tem o Brasil na copresidência, a gestão atual da plataforma acolheu uma representação tríplice rotativa que contempla um assento para o Ministério dos Povos Indígenas, representado por Gasparini Kaingang.
O caminho se faz ao caminhar, e com a COP 30 se aproximando, durante o Acampamento Terra Livre de 2025, nações indígenas do Brasil e do mundo têm agora uma Comissão Internacional Indígena dentro da conferência. Como parte de um dos círculos temáticos proposto pela presidência da COP deste ano, a comissão será presidida pela ministra Sônia Guajajara e composta por 16 outras organizações.
Esse é um exemplo de conquista alcançada pelos indígenas ao longo dos anos, ao lado de sua menção no Acordo de Paris. O protagonismo conquistado pelos povos indígenas deve ser celebrado e respeitado. Ainda que os desafios e impactos das mudanças do clima estejam longe de serem superados, em uma perspectiva de longo prazo, cada vez mais nos aproximamos da utopia em que os líderes indígenas sentarão lado a lado dos demais líderes de países.