Em 15 de agosto de 2023, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Ordinário no Habeas Corpus 147707/PA, firmou o entendimento, por maioria de votos, no sentido de que o compartilhamento, pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), de Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) a “pedido” das autoridades de persecução penal é nulo por violar a Constituição Federal.
Tal posição teve como uma das suas premissas a suposta circunstância de que o Supremo Tribunal Federal (STF), quando do julgamento do RE 1.055.941, em novembro de 2019, teria chancelado a constitucionalidade apenas do chamado compartilhamento “espontâneo” de RIFs, não tratando, por outro lado, do compartilhamento a “pedido”.
A partir da decisão do STJ, e num típico efeito cascata, outros tribunais do país passaram a proferir decisões semelhantes, conforme noticiado pela imprensa.
Este breve artigo não tem a intenção de analisar a constitucionalidade ou não do compartilhamento – espontâneo ou a pedido – de RIFs entre Coaf e autoridades públicas responsáveis pela persecução penal. O que aqui se pretende é, apenas, demonstrar que, ao contrário do que afirmado no recente julgamento do STJ, o STF, no julgamento do RE 1.055.941, analisou as duas formas pelas quais o Coaf compartilha RIFs com a polícia e o Ministério Público – espontaneamente e “a pedido” – e considerou ambas compatíveis com a Constituição.
Com efeito, consta da ementa do acórdão do RE 1.055.941 que é constitucional “o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial.
Aqueles que não estão familiarizados com as terminologias usadas no âmbito do sistema anti lavagem, ao lerem apenas ementa do acórdão do RE 1.055.941, poderiam ter dúvidas sobre o que o STF, ali, quis dizer ao validar o “compartilhamento” direto de RIFs com os órgãos de persecução penal. Entretanto, essas dúvidas logo se dissipam com a leitura dos votos proferidos pelos ministros da Suprema Corte que formaram a maioria vencedora no julgamento do RE em comento.
Inicia-se pelo voto (vencedor) proferido pelo relator do recurso, o ministro Dias Toffoli, redator do acórdão:
(…) não há dúvidas, para mim, quanto a possibilidade de a UIF compartilhar relatórios de inteligência (RIF por intercâmbio) por solicitação do Ministério Público, da polícia ou de outras autoridades competentes.
Em seguida, o voto do ministro Alexandre de Moraes, do qual resultou a proposta de tese vencedora incorporada no acórdão do RE 1.055.941, também foi expresso ao declarar constitucionais as duas espécies de compartihamentos:
Saliente-se que é permitida que a iniciativa de solicitação para o compartilhamento de dados bancários e fiscais parta do próprio Ministério Público, ao fazer a solicitação para a Unidade de Inteligência Financeira (antigo Coaf) ou para a própria Receita Federal; bem como é possível, quando recebido o material informado, o órgão acusatório solicitar uma série de complementações diretamente ao Coaf ou à Receita Federal, devendo ser permitido o amplo compartilhamento, para fins estritamente penais, sem a intermediação do Poder Judiciário.(…). Tanto de ofício quanto a pedido, a UIF só pode atuar nos seus limites legais.
Os votos dos ministros Edson Fachin (p. 23), Rosa Weber (p. 6), Celso de Mello (p. 56) e Gilmar Mendes (p. 41 e 42) seguiram exatamente a mesma linha dos dois primeiros ministros votantes e, após citarem nominalmente as duas espécies de compartilhamento, chancelaram a constitucionalidade de ambos. E os votos dos demais ministros, embora tenham apenas se manifestado pela constitucionalidade in totum do compartilhamento de RIFS pelo Coaf, sem contudo, fazer diferenciação quanto às duas espécies de compartilhamento, acompanharam o voto do ministro Alexandre de Moraes (que, àquela altura, era tido como voto divergente em relação ao voto do relator, o ministro Dias Toffoli).
Assim, lendo-se a ementa do acórdão resultante do julgamento do RE 1.055.941 em conjunto com os votos exarados pela maioria dos ministros votantes, resta claro que o STF, ao usar, na citada ementa, o termo “compartilhamento” de RIFs, valeu-se de terminologia técnica e de uso convencional na arena internacional, a qual compreende tanto o compartilhamento “espontâneo” quanto o “compartilhamento a pedido”.
Trata-se de terminologia extraível também de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, de que são exemplo as recomendações do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF), todas incorporadas pela ordem jurídica brasileira.
Aqui, é de especial interesse a Recomendação 29 do GAFI, que trata da chamada “tríplice função” que todas as UIFs devem poder desempenhar para que possam alcançar os objetivos para os quais foram criadas, a saber, as funções: de receber informações sobre operações financeiras suspeitas, de analisá-las, inclusive sendo capaz de levantar outras informações relevantes sobre lavagem de dinheiro, crimes antecedentes e financiamento do terrorismo, e, em seguida, de disseminar os resultados de tal análise para os órgãos de controle e de investigação de lavagem de ativos.
O verbo “compartilhar”, usado pelo STF da ementa do julgamento do RE 1.055.941, equivale semânticamente ao verbo “disseminar”, usado pela Recomendação 29 do GAFI. E o que vem a ser “disseminar”, por sua vez, está detalhado na Nota Interpretativa da Recomendação 29:
(c)Disseminação
A UIF deverá ser capaz de disseminar, espontaneamente ou a pedido, as informações e os resultados de suas análises para as autoridades competentes relevantes. Deveriam ser usados canais dedicados, seguros e protegidos para a disseminação. (…).
Aliás, a Recomendação 29 do GAFI e sua Nota Interpretativa foram mencionadas e usadas como uma das fontes de decisão por praticamente todos os ministros do STF no julgamento do RE 1.055.941. Nessa linha, afirma o ministro Alexandre de Moraes em seu voto que “a partir da Recomendação 29 do Gafi (Grupo de Ação Financeira), se estabelece não só no Brasil, mas no mundo todo que adota o sistema, a possibilidade de as Unidades de Inteligência Financeira agirem n ão só espontaneamente, mas também em face de eventual pedido de órgão fiscalizador. Há essa dupla atuação”.
Já sob a ótica dos poderes que as autoridades de persecução penal devem ter em cada país para que bem possam realizar o combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, a Recomendação 31 do GAFI é clara ao dispor que tais autoridades devem poder solicitar quaisquer informações relevantes à UIF, o que compreende, naturalmente, os respectivos relatórios de inteligência financeira.
Por fim, o princípio 14 do Grupo Egmont também estabelece que as UIFs devem poder realizar as duas modalidades de disseminação de informações.
Em conclusão, o que se percebe é que o STF, após longos debates nas duas sessões plenárias em que julgou o RE 1.055.941, chancelou a prática, que já vinha sendo adotada pelo Coaf pelo menos desde 1998, de disseminar, de forma espontânea ou a pedido, os seus relatórios de inteligência financeira, sempre pelo sistema SEI-C, fazendo-o com fulcro no art. 15 da Lei 9.613/98.
Trata-se deprática doméstica também adotada por mais de uma centena de países no mundo, os quais, assim como o Brasil, assumiram o compromisso de seguir os padrões e diretrizes internacionais quanto ao combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e a outras ameaças à integridade do sistema financeiro. Países que não adotam ou desrepeitam esses compromissos são considerados como non compliant e passam a integrar as black ou gray lists do GAFI.
Não há, portanto, lacuna ou silêncio do STF quanto ao tema, muito pelo contrário: há, na verdade, uma decisão com força vinculante orga omnes proferida pela mais alta Corte do país há poucos anos, cuja observância, portanto, é obrigatória a todos órgãos jurisdicionais brasileiros.