A discussão sobre a alteração da meta fiscal para 2024 não é apenas um debate sobre a capacidade de o país alcançar o equilíbrio entre receitas e despesas com o prometido “déficit zero”. No coração do governo, o que está instalada é uma disputa sobre as escolhas do projeto político do PT para agora e para os próximos anos.
Você já deve ter lido que um dos problemas de Lula em sua terceira passagem como presidente é que, ao contrário dos mandatos anteriores, ele não conta mais com parceiros no governo que tenham idade, peso político e intimidade para lhe dizer quando ele está errado. É verdade, mas há algo além disso.
Lula está para a cena política nacional como Logan Roy para Succession (se você não assistiu à superpremiada série americana sobre a saga dos Roy, é sério: pare de ler esta coluna, corra até o streaming, ou maratone na casa de um amigo, ou namore alguém que tenha a assinatura. Dê um jeito).
Nascidos na pobreza, marcados por adversidades pessoais pesadas, ambos converteram o que parecia uma vida fadada ao anonimato em uma impressionante trajetória de liderança e influência que marcaram seu tempo.
Lula, claro, não é Logan Roy em termos de caráter. O magnata que comanda o conglomerado Waystar Royco na ficção é um self-made man inescrupuloso e astuto que usa os meios que forem necessários para fazer valer sua vontade. Lula é um líder popular e, possivelmente, o maior líder político da história do Brasil.
Mas tal como em Succession, o entorno de Lula é hoje abarrotado de pessoas que acreditam estarem credenciadas a sucedê-lo, seja para 2026 ou 2030. E uma parte significativa delas se acha mais apta para a função do que Fernando Haddad.
Tal como Kendall Roy (o filho genial, genioso e shakespeariano interpretado por Jeremy Strong), Haddad é a escolha mais óbvia. Mas apesar de filiado ao PT desde 1983, Haddad não é visto internamente como alguém “do partido”, no sentido de ter se tornado uma liderança vinda da dinâmica de disputa interna da sigla, algo caro a partidos de esquerda.
O maior trunfo de Haddad é a confiança que Lula tem nele. Sem jamais ter sido candidato, o presidente bancou sua candidatura a prefeito de São Paulo em 2012 — há uma história ótima de que Lula viu na figura do ex-ministro da Educação, “bonitinho, são-paulino e uspiano”, as características ideais para romper a resistência do eleitorado paulistano ao PT.
Deu certo naquele ano, mas Haddad perdeu as três eleições seguintes, colhendo derrotas em todos os níveis de governo — em 2016, quando não foi reeleito prefeito, em 2018, quando concorreu a presidente com Lula na prisão, e em 2022, quando perdeu para o bolsonarista Tarcísio de Freitas na disputa ao governo de São Paulo.
Nomeado ministro da Fazenda sob desconfiança, Haddad é quem construiu a melhor interlocução do governo com o Congresso. Passou a ser comum parlamentares dizerem que iam até o Ministério da Fazenda para “resolver o problema”. Ganhou respaldo do mercado financeiro pela busca do ajuste das contas públicas, ressalvados os incômodos pelas muitas medidas para buscar o aumento da receita.
A agenda de Haddad, calcada no ajuste das contas públicas e redistribuição do peso da tributação (uma espécie de ‘liberalismo com preocupação social’, como o próprio ministro definiu quando candidato em 2018), não é a agenda historicamente desempenhada pelo PT. Se ela prevalecer no governo e for bem-sucedida, Haddad naturalmente se tornará o favorito à sucessão de Lula.
O ministro da Casa Civil, Rui Costa, tem capitaneado o movimento de mudança da meta. Ele também é um postulante à sucessão de Lula. Vindo do movimento sindical, como o presidente, foi governador do estado que, em grande medida, decidiu a eleição contra Bolsonaro: a Bahia entregou 3,7 milhões de votos a mais para Lula, tirando sozinha a diferença de São Paulo, de 2,9 milhões a mais a favor de Bolsonaro. Quem era o candidato em São Paulo? Haddad.
Há outros postulantes, espalhados pela Esplanada dos Ministérios, cada um com a sua razão para se achar digno da escolha. Uma possível derrota na questão da meta não tira Haddad automaticamente do páreo. Ele foi advogado de Lula na prisão, encarou a bucha de ser o candidato a presidente em 2018 — quando muitos petistas que hoje o criticam nos bastidores não toparam a missão — e a confiança do presidente é seu maior trunfo.
Mas terá de se adaptar. Uma semana depois de dizer que “dificilmente” o governo alcançará a meta de déficit zero, Lula deu o tom na abertura da reunião ministerial sobre Infraestrutura, dia 3. “Para quem está na Fazenda, dinheiro bom é dinheiro no Tesouro. Mas para quem está na Presidência, dinheiro bom é dinheiro transformado em obras”.
Na semana passada, Haddad conseguiu evitar que o ataque especulativo pela mudança da meta se convertesse alteração efetiva do objetivo fiscal do governo no relatório preliminar da LDO. Ganhou tempo e apoios no Congresso. A votação do relatório final deverá ocorrer entre 22 e 24 deste mês e uma emenda alterando a meta pode ser apresentada até o dia 17, próxima sexta-feira.
No tiroteio entre aliados, o perigo é todo mundo sair ferido e ninguém se viabilizar. Você sabe o que aconteceu em Succession.
O debate da meta não é (só) sobre a meta. Os caminhos da sucessão de Lula, seja para quando for, começam a ser desenhados nesta semana.
*Dedico esta coluna à querida Mara Luquet, a quem ainda quero convencer a assistir Succession