Após a vitória do ultradireitista Javier Milei (La Libertad Avanza) nas eleições primárias para a presidência da Argentina por mais de oito pontos de vantagem em relação ao candidato governista Sergio Massa (Unión por la Pátria), o cenário se inverteu no primeiro turno, realizado no último domingo, 22 de outubro. Massa, que ocupa o cargo de Ministro da Economia no gabinete do atual inquilino da Casa Rosada, teve desempenho surpreendente considerando que os argentinos enfrentam uma hiperinflação de 140% ao ano que reduziu drasticamente o já combalido padrão de vida médio dos nossos principais vizinhos.
Massa chegou a quase 37% dos votos, contra pouco mais de 30% de Milei. Ambos disputam o segundo turno em 19 de novembro. O resultado impressionou os analistas políticos, cuja grande maioria não duvidava da possibilidade de vitória do candidato de La Libertad Avanza já no primeiro turno. O cálculo era feito considerando o fôlego que o ultraliberal poderia tomar após o resultado favorável nas primárias, que haviam sinalizado o desejo por mudanças políticas na Argentina.
A crise econômica pela qual o país atravessa carrega consigo o fantasma de 2001, quando o país chegou a ter cinco presidentes em 12 dias após a renúncia de Fernando de La Rua, do centrista União Cívica Radical (UCR), partido historicamente alinhado à classe média e que vem cerrando fileiras na última década com a centro-direita, que teve como candidata Patricia Bullrich, da coalizão Juntos por el Cambio, a qual somou pouco menos de 24% dos votos.
A recuperação de Massa parece quase milagrosa e demonstra que, se na política tudo pode acontecer, no caso dos Hermanos ela tem o gosto dramático do tango e do peronismo—que hoje congrega a centro-esquerda argentina. Do outro lado, Milei posiciona-se como ultraliberal e rasga elogios a Donald Trump e Jair Bolsonaro, situando-se na extrema-direita do espectro político argentino e global. Sua excentricidade não se resume ao seu figurino, mas também se manifesta em ideias consideradas arriscadas por diversos analistas financeiros: acabar com o Banco Central, adotar o dólar como moeda oficial, e privatizar o sistema educacional e o sistema de saúde. O candidato chegou a defender publicamente o direito das pessoas venderem seus órgãos.
Para o segundo turno, a expectativa é que os candidatos reforcem as estratégias já adotadas em suas campanhas. Nesse sentido, Massa fez claras sinalizações ao centro político para compensar o fracasso da política econômica do atual governo, prometendo equilíbrio fiscal, superávit comercial, mudanças no câmbio monetário, desenvolvimento inclusivo e investimento nas universidades. Além disso, o candidato peronista investiu em uma verdadeira “campanha do medo” que deve se intensificar nas próximas semanas. Ao longo do primeiro turno, não faltaram cartazes e outdoors que buscavam demonstrar o que os eleitores perderiam em termos de subsídios estatais caso Milei vencesse.
Conforme indicou Massa em discurso após o pleito, ele também vai apelar para um discurso que enfatiza a unidade nacional, fundamentado em uma equipe de governo pautada na competência, mais que em valores partidários, procurando, assim, atrair os que votaram em Bullrich e são simpáticos à UCR e seu compromisso histórico com a democracia.
No discurso também ficaram evidentes mais dois pontos da estratégia de Massa: esconder a atual vice-presidente e ex-presidente Cristina Kirchner e o presidente Alberto Fernández e buscar atrair os eleitores de Milei e Bullrich, como demonstra o uso das palavras “ordem” e “família”, mais presentes nos discursos desses candidatos. Ademais, o candidato de Unión por la Pátria ainda reforçou a ideia de valorizar acordos multilaterais, em uma crítica direta a Milei, cuja campanha é marcada por um tom crítica ao Mercosul e aos BRICS, bloco que a Argentina deve passar a integrar em 2024.
A campanha de Milei terá pouco tempo para rever suas estratégias, que pouco acrescentaram para o candidato desde as primárias. Tendo recebido o apoio explícito da extrema-direita brasileira—os deputados Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Marcel van Hattem (Novo-RS) estavam na Argentina acompanhando o pleito—, Milei pode acabar perdendo as eleições por pouco no segundo turno caso mais argentinos percebam os riscos de confiar em alguém alinhado a figuras como Bolsonaro e Trump.
Os cerca de 10% que não votaram nos três principais candidatos optaram por forças mais à esquerda que a coalizão Unidos por la Patria. Caso Massa receba o apoio desses eleitores, ele chegaria a 47% dos votos no segundo turno. Com mais 4% vindos dos que votaram em Bullrich—equivalente a pouco menos de 20% dos que optaram por ela—, o peronista chegará à Casa Rosada. Tal cenário é plausível considerando que os partidários da UCR tendem a optar por preservar a democracia do que colocá-la em risco sob Milei. Seu programa de governo, caso implementado, implicaria no desmantelamento do Estado argentino e numa situação econômica pior que a já existente, dando margem para aventuras autoritárias.
Frente a tantas incertezas e crises, uma coisa é certa: não importa quem vença no dia 19 de novembro, a Argentina dança ao redor do abismo. Caso eleito, Massa governará sob intensa pressão do movimento de Milei, que ainda promete ter longa sobrevida entre os hermanos e terá força política enquanto a bomba-relógio da inflação e da miséria gerada por ela não for desarmada.