A recente mobilização de setores progressistas da sociedade civil pela indicação de uma mulher negra à vaga no Supremo Tribunal Federal (STF)[1] decorrente da aposentadoria da ministra Rosa Weber resultou em algumas reflexões que resolvi compartilhar neste breve texto.
Como sabemos, ao final e ao cabo mais um homem foi indicado pelo atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, o jurista Flávio Dino, que tem uma carreira importante na defesa das instituições democráticas do Brasil, notadamente, na posição ocupada de ministro da Justiça e Segurança Pública. Contudo, este texto não é sobre ele.
Neste sentido, gostaria de, a partir da campanha pela indicação de uma mulher negra ao STF através da apresentação de uma lista que continha o nome de juristas negras[2], que mobilizou ativistas da luta antirracista, tais como, militantes e organizações do movimento de mulheres negras e do movimento negro tais como, a Coalizão Negra por Direitos (CNPD), Mulheres Negras Decidem, Geledés, Criola, Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), juristas negros do Brasil, tais como Philippe Almeida e Thiago Amparo, como forma de reparação histórica. E é sobre esse argumento que desenvolverei este texto.
Considero que este é um argumento muito importante, apesar de controvertido quando abordamos questões relativas às ações afirmativas e políticas públicas de enfrentamento ao racismo no Brasil, tendo em vista o nosso passado escravocrata que legou à população negra deste país os piores índices de qualidade vida que traduzem as diferentes modalidades de violências praticadas pelo Estado e por indivíduos de nossa sociedade, ao serem atualizados os privilégios da branquitude através de um pacto narcísico que tem efeitos sobre as instituições jurídicas e o sistema de justiça nacional.
Diante deste contexto e partindo do argumento de reparação histórica realizarei algumas reflexões histórico-jurídicas sobre mulheres negras e sua relação com o(s) direito(s), desde o período em que eram escravizadas ao momento posterior à abolição da utilização de mão-de-obra escrava no país, quando se tornam formalmente cidadãs da República Federativa do Brasil., para que possamos entender o preterimento de uma mulher negra a uma vaga no STF, não apenas como um fato isolado ou resultante do racismo institucional e estrutural contemporâneo, mas como acontecimento que renova a posição de subalternidade das mulheres negras na sua relação com as instituições jurídicas e com o sistema de justiça ao longo da história de nossa formação social.
Isto por que sabemos, ou deveríamos saber que desde o período colonial mulheres negras têm mobilizado o Poder Judiciário e outras instituições sociais para lutar por projetos de liberdade, de reconhecimento de sua humanidade, de seus direitos e comunidades como nos ensinam historiadoras e historiadores como Keila Grinberg, no livro “Liberata: a lei da ambigüidade as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX” e Giovana Xavier, Flávio Gomes e Juliana Farias, organizadores e autores da coletânea de artigos publicados no livro “Mulheres Negras no Brasil Escravista e do Pós-Emancipação”. Neste sentido, nos ensinam que mulheres negras mobilizaram as ações de liberdade, o direito canônico, organizaram irmandades que tiveram papel importante para a instituição dos serviços de assistência aos negros e negras, mobilizaram movimentos pela liberdade, com papel importante na luta abolicionista e pelo reconhecimento da cidadania negra no Brasil.
No pós-abolição mulheres negras tiveram participação ativa na Frente Negra Brasileira, importante organização do movimento negro que foi capaz de mobilizar politicamente ações de enfrentamento ao racismo durante o período do governo de Getúlio Vargas e que foi desarticulado no âmbito do Estado Novo, como ressaltou o historiador Petrônio Domingues no artigo “Frentenegrinas: notas de um capítulo da participação feminina na história da luta anti-racista no Brasil”. Também participaram da União dos Homens de Cor da Década de 1940 e do Teatro Experimental do Negro na Década de 1950-60.
Ao ser instituído o Ano Internacional da Mulher pela Organização das Nações Unidas (ONU) no ano de 1975, mulheres negras brasileiras organizadas começaram a denunciar nos órgãos multilaterais as violências e violações de seus direitos humanos fundamentais. Além disso, a apresentação do Manifesto das Mulheres Negras durante o Congresso de Mulheres Brasileiras em julho de 1975 marcou o primeiro reconhecimento formal de divisões raciais dentro do movimento feminista brasileiro.
O manifesto chamou atenção para as especificidades das experiências de vida, das representações e das identidades sociais das mulheres negras e sublinhou o impacto da dominação racial em suas vidas. Além disso, ao desmascarar o quanto a dominação racial é marcada pelo gênero e o quanto a dominação de gênero é marcada pela raça, o manifesto destacou que as mulheres negras foram vítimas de antigas práticas de exploração sexual. Apontou, ainda, a herança cruel que coube as negras no Brasil, lembrando que o cruzamento das raças durante a época colonial resultou na mulata — considerada o único produto brasileiro que merece ser exportado.
Neste sentido, Kia Lilly Caldwell, antropóloga negra norte-americana, no artigo Fronteiras da diferença: raça e mulher no Brasil, traduzido para o português e publicado no Brasil no ano 2000, ressaltou que Lélia Gonzalez, ao analisar o Encontro Nacional de Mulheres no Rio em 1979, lamentou que não houvesse na época, em relação à questão racial, a unanimidade observada em relação a outras questões.
Neste sentido, Caldwell ressalta que em suas tentativas de trabalhar com as dimensões raciais de opressão da mulher, feministas negras focalizaram assuntos como controle de natalidade e saúde reprodutiva. Preocuparam-se com taxas altas de esterilização entre mulheres pobres, lembrando que a maioria das mulheres pobres é negra. Seus esforços para combater a esterilização feminina acabaram chamando atenção pare a relação entre raça, gênero e classe.
Na década de 1980, a necessidade de ampliar e aprofundar o acúmulo político da década anterior e de desenvolver metodologias de trabalho próprias à agenda política por elas desenvolvidas e a dificuldade em estabelecer um diálogo com o Estado, mulheres negras passaram a se organizar sob a forma de organizações não governamentais (ONGs), como ressaltou Sônia Beatriz dos Santos, no artigo “As ONGs de mulheres negras no Brasil”.
Ainda na década de 1980, no 3º Encontro Feminista da América Latina e do Caribe, que ocorreu em Bertioga, São Paulo, em 1985, foi fundamental para a mobilização das mulheres negras. Nesse evento de Bertioga, as ativistas negras fizeram questão de colocar suas particularidades e suas demandas relativas à violência, ao combate a práticas racistas no mercado de trabalho e, principalmente assuntos relativos à saúde: como mortalidade materna e saúde reprodutiva e sexual das mulheres negra.
Durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1988, ativistas e intelectuais negras, tais como, Lélia Gonzalez e Helena Theodoro, defenderam de maneira brilhante os direitos da população negra brasileira e já demonstravam as bases do que mais tarde seria denominado de Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER), inscrita na Lei 10.639/2003, que completou 20 anos de existência.
No período posterior à promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, as mulheres negras brasileiras desenvolveram uma linguagem política inclusiva e uma agenda política bastante abrangente utilizando a gramática dos direitos humanos, com técnicas de advocacy e incidência política inovadoras na luta pela constituição de direitos e acesso aos já inscritos na carta política brasileira.
Neste sentido, a Conferência de Durban de 2001, representou um ponto de inflexão importante no processo de luta por direitos empreendida por mulheres negras brasileiras. O movimento ganhou força e representatividade e a relatoria da ativista e médica negra brasileira, Edna Roland, na elaboração da Declaração e Plataforma de Ação de Durban atestam nossa afirmação.
Outro momento importante e que mostra a força do movimento de mulheres negras no período posterior a Durban foi a organização da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver, em 25 de julho de 2015. E, no ano de 2021, em um contexto político de ameaça à democracia o movimento de mulheres negras reafirma seu compromisso político com a luta antirracista e defesa das instituições democráticas ao publicar uma reflexão sobre o legado da Conferência de Durban, documentado no e-book publicado pela ONG Geledés, Brasil e Durban 20 anos depois.
Apesar desta longa história de lutas por direitos humanos fundamentais no Brasil, as mulheres negras ainda permanecem em posição subalterna no que se refere às instituições jurídicas e ao sistema de justiça brasileiro. Majoritariamente, somos usuárias do sistema, mas não conseguimos, ainda, alcançar a representatividade que as lutas ancestrais nos legaram. Ainda somos poucas no Poder Judiciário, como demonstraram os censos realizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nas Defensorias, Ministério Público e outros órgãos de Advocacia Pública.
Apesar disso, seguimos resistindo e lutando por direitos para nossas comunidades e famílias para que possamos fruir dos direitos humanos fundamentais inscritos na nossa Constituição. Seguimos lutando por um futuro no qual seja possível que uma mulher negra ocupe cargos de direção nas empresas e nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Para que a presença de ministras negras no STF seja uma realidade e resultado de uma transformação das relações raciais na nossa sociedade.
[1] Uma instituição secular, com 132 anos de existência que nunca teve a presença de uma ministra negra em sua história.
[2] Alguns nomes cotados foram os de Adriana Cruz, Manuelita Hermes, Lívia Sant’Anna Vaz, Lucinéia Rosa, Vera Lúcia Santana, Soraia Mendes e Mônica de Melo.