Muito além do voto secreto no STF

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) provocou debates intensos nos últimos dias ao usar uma de suas lives semanais para fazer o que chamou de “conselho à sociedade e ao Judiciário”. Ele sugeriu que os votos de cada ministro nas decisões do Supremo Tribunal Federal passem a ser sigilosos, recomendando a divulgação apenas do placar final de cada julgamento. Tal conselho gerou críticas severas e um debate desorganizado sobre os mecanismos de transparência do STF perante a sociedade. No epicentro da discussão, a possível defesa presidencial em torno do “voto secreto” dos ministros.

Uns invocaram o artigo 93, IX, da Constituição, outros lembraram que cortes secretas não cabem no Estado democrático de Direito, alguns provocaram a militância pró-Lula dizendo que se fosse Jair Bolsonaro a defender “tal absurdo”, a reação “da esquerda” seria outra. Constitucionalistas, de direito e do Instagram, vieram a público. Ouvimos magistrados. Recuperamos pesquisas para provar nossos pontos de vista.

O tema, apresentado ao debate público de forma um tanto atabalhoada, convida a uma boa reflexão. Tão atual quanto necessária. Por isso, sugiro limpar vieses, esquecer a live e focar no que de fato importa. O ponto central que a polêmica pode ajudar a enfrentar tem natureza dupla: de um lado, o aperfeiçoamento do trabalho do Poder Judiciário e, em particular, do STF; de outro, como o país pode reduzir o espaço do populismo judicial – que ganhou terreno fértil nos últimos anos com as transmissões televisivas dos julgamentos e a participação intensa dos ministros do Supremo no debate público. Buscarei contribuir apontando três pontos relacionados a isso.

O primeiro ponto nos remete à TV Justiça como régua de transparência.

Se é verdade que o Supremo tem se mostrado um dos poucos espaços institucionais em que debates sobre questões complexas são conduzidos com racionalidade e argumentação, também é verdade que enfrentamos nos últimos anos um desvio de origem. Há certa confusão entre o que deve ser uma condução transparente de sua atuação e as práticas que têm favorecido a espetacularização da Justiça. Com a polêmica da última semana, ficou evidente que tudo isso tem produzido uma falsa impressão de transparência, ou uma transparência desvirtuada de seu propósito constitucional.

Não são poucas as críticas ao papel desempenhado pela TV Justiça. Para ficar em uma, lembro que após a exibição dos julgamentos a partir de 2002, quando o STF se tornou um dos dos poucos Tribunais constitucionais do mundo a transmitir suas deliberações ao vivo pela televisão, os ministros do STF passaram a escrever votos literários – uma evidência constatada em estudo de um pesquisador da Fundação Getulio Vargas, publicada em 2017. O resultado foram votos mais longos com o consequente impacto sobre a própria produtividade e eficiência da corte no tratamento dos temas que analisa. Se isso implicasse um ganho na qualidade dos julgados, estaria bom. Mas não foi o que se viu, como apontam os estudiosos do tema.

Além disso, a TV Justiça transmite uma parte, e não todos os julgamentos. Quase uma centena de casos são decididos semanalmente, no plenário virtual, sem transmissão, e muitas vezes o impacto deles em nossas vidas é altíssimo. No virtual, a maioria dos votos não vêm acompanhada de razões decisórias, apenas acompanhando ou divergindo do voto do relator. Ainda assim, ninguém alega existir falta de transparência nesses julgados. Os votos que estão ali não são lidos de viva voz para milhões de telespectadores. Portanto, o papel da TV Justiça, e o que se ganha e perde com ela, merece reflexão própria, mas não é a existência dela que determina se uma corte é ou não satisfatoriamente transparente.

Um segundo ponto diz com a função do controle social das decisões do Judiciário.

Juízes, desembargadores e ministros do Supremo não são eleitos pelo povo. Sua prestação de contas, portanto, se dá de maneira diferente de mandatários que enfrentaram as urnas. Reconhecer essa diferença não significa dar-lhes carta branca, ou livrar as cortes do dever constitucional de assegurar a publicidade às decisões jurídicas em todas as instâncias.

Mas há formas e formas de tornar públicos os atos. Mudar as atuais estratégias que usamos para dar visibilidade às decisões, sobretudo do STF, está longe de significar menos transparência.

A opinião pública se dedica a debater decisões do STF que às vezes nem chegam a afetar nossas vidas diretamente. Pouca atenção é dada às decisões de prefeituras e câmaras de vereadores, por exemplo, com altíssimo potencial de impacto direto sobre o cotidiano da população. Tome como exemplo a mudança de um plano diretor. Quão transparente exigimos que sejam as decisões administrativas e os debates legislativos em torno dele? E porque acompanhamos, no pique de um reality show, voto a voto de determinadas questões que, às vezes, impactarão bem menos, ou de maneira muito indireta, nossas vidas? A fixação ampla sobre o que pensam sobre o fato da semana e como votam os ministros do STF ainda merece passar pelo divã nacional. Fôssemos nós igualmente aficionados com deliberações do Legislativo e do Executivo, quiçá aprenderíamos a valorar melhor a importância de alguns votos, e distribuiríamos melhor nosso tempo dedicado aos debates cívicos.

Terceiro, a relativa importância do voto assinado e a confusão entre transparência e pessoalização das decisões.

Estamos falando de um órgão colegiado, formado por 11 pessoas que não devem satisfação a eleitores. Devem, isso sim, proferir decisões tecnicamente fundamentadas, jurisprudência coerente e oferecer previsibilidade aos seus jurisdicionados. Discrição e neutralidade também fazem parte do pacote de boas práticas.

Por isso, não vejo com maus olhos, e nem como afronta à democracia, reduzir a excessiva personalização da corte em cada um de seus ministros e ministras.

Há providências muito mais úteis para fortalecer nossas instituições do que ter acesso síncrono, nominal e televisionado) aos votos individualizados.

Aliás, custo a imaginar grandes desvantagens na renúncia à publicidade individual dos votos em determinadas decisões finais, irrecorríveis. Muito mais importante seria ter uma só opinião da corte, mas num texto consensado entre todos; e, claro, conhecer os argumentos da corrente divergente, quando houver.

Exemplos que vão mais ou menos nessa linha estão espalhados pelo mundo. Com modulações, podemos olhar para os Estados Unidos, a Itália, Holanda, a Alemanha, a Espanha e a Colômbia, entre outros.

É diferente quando ainda cabe recurso, pois pelo bom exercício da defesa é fundamental saber o voto de cada ministro.

O fato é que, além de reduzir o clima de “Fla x Flu” entre ministros (e seus apoiadores ou detratores), e de racionalizar os debates, a despersonalização em determinadas situações também pode ajudar a passar uma orientação coerente e clara sobre as decisões da corte, construindo parâmetros mais consistentes para o futuro do que os existentes.

Há ainda um argumento de cunho prático, fruto do contexto atual: a despersonalização pode ajudar a sociedade a focar no que importa, e exigir mais transparência onde ela realmente faz falta. Tenha certeza: são muitos os espaços públicos ainda nas sombras impactando muito mais a vida dos cidadãos no dia a dia, inclusive no Poder Judiciário. Daí, a sugestão para que se reflita se estamos com a lupa no local correto para o bom exercício da cidadania e a manutenção do Estado democrático de Direito.

Como se vê, o debate tem muitas camadas. Há intensa produção acadêmica de alto nível a respeito. Podemos reduzir tudo a uma polarização contra ou a favor de um “voto secreto”, sequer sabendo o que isso significa, ou aproveitar a deixa para aprofundar o tema, com método e racionalidade. Esse debate, afinal, vai muito além do “pode, não pode”.