Infelizmente, disseminou-se no Brasil a ideia distorcida de que as normas de direitos humanos existem apenas para proteger transgressores da lei. Esse entendimento reducionista e equivocado precisa ser superado. Os direitos humanos não são escudos para impunidade, mas sim um conjunto de garantias essenciais à preservação da dignidade e da justiça no convívio social.
Punir devidamente quem viola gravemente a ordem pública não constitui retrocesso civilizatório; ao contrário, representa avanço. A sanção proporcional, justa e eficaz contra quem atenta contra bens jurídicos fundamentais é, em si, instrumento de proteção dos direitos humanos. Assim, ao se punir um corrupto, protege-se a criança sem escola, o enfermo sem leito, a comunidade sem saneamento. E é nessa chave interpretativa que deve ser compreendida a nova Resolução A/HRC/59/L.6, do Conselho de Direitos Humanos da ONU, aprovada na sua 59ª sessão (junho-julho de 2025).
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
A resolução representa um avanço na forma como a comunidade internacional enxerga a corrupção. Embora se insira no campo da soft law, sua força orientadora pode servir como incentivo estratégico para desestimular práticas de improbidade.
O maior mérito da nova resolução está em estabelecer com clareza o vínculo direto entre corrupção e violação dos direitos humanos. A prática corrupta não é uma simples ofensa às regras de funcionamento da administração pública; ela reduz os recursos disponíveis para setores essenciais, promove a má distribuição dos serviços públicos e impacta de forma desproporcional os grupos vulneráveis. O desvio de verbas destinadas à saúde, educação ou infraestrutura viola, concreta e materialmente, o direito à vida, à saúde e à dignidade humana.
Ademais, ao reconhecer que a corrupção viola direitos humanos, a ONU a reposiciona em uma categoria mais ampla de ilicitude, cuja gravidade transcende a mera lesão ao erário. Trata-se de lesão estrutural, de caráter pluriofensivo, que compromete a efetividade de políticas públicas, agrava desigualdades e mina as bases normativas do Estado Democrático de Direito. Nesse contexto, a luta contra a improbidade administrativa deixa de ser concebida como simples exigência de integridade administrativa e passa a ser afirmada como verdadeiro imperativo de justiça social e tutela da dignidade humana.
Entre as medidas sugeridas na resolução destacam-se: a valorização do papel de órgãos de controle, do Judiciário e da imprensa livre; o estímulo à cooperação internacional e ao fortalecimento de capacidades nacionais; a proteção de jornalistas, denunciantes e defensores de direitos humanos; e o incentivo à educação anticorrupção e ao uso de tecnologias e dados abertos.
Cabe destacar com maior ênfase alguns elementos centrais. O primeiro é a responsabilidade social da iniciativa privada. O setor empresarial deve ser visto não apenas como possível autor de atos de corrupção, mas como parceiro indispensável na construção de uma cultura de integridade. Daí a importância de mecanismos de compliance, que não se limitem ao cumprimento formal da legislação, mas incorporem valores éticos à governança corporativa.
O segundo elemento é o fortalecimento de um sistema de checks and balances à própria estrutura do Estado. A corrupção floresce onde há acúmulo de poder sem controle cruzado. Transparência ativa, fiscalização recíproca entre os poderes e atuação firme dos órgãos de controle são indispensáveis para evitar que o poder público seja capturado por interesses espúrios.
Essas medidas são consistentes, mas ainda insuficientes. O momento exige mais ousadia. O Brasil — assim como o restante do mundo — precisa ir além de declarações diplomáticas e implementar uma verdadeira política de “tarifaço” contra os atos de corrupção, aumentando sensivelmente o custo político, econômico e jurídico dessas condutas. É preciso reconhecer que, analogamente, a corrupção atua como uma “importação de prejuízo coletivo” que deve ser desencorajada com custos altíssimos para seus praticantes.
Não seria o caso, então, de se punir com mais rigor os atos de corrupção exatamente porque violam e frustram diversos direitos humanos? Não se pode punir brandamente quem causa danos sistêmicos e irreversíveis à sociedade. As sanções aplicadas a esses atos devem refletir, com clareza, a lógica da análise econômica do direito: o custo da conduta deve ser superior ao ganho ilícito obtido. Só assim haverá dissuasão suficiente. É preciso eliminar a racionalidade econômica que ainda torna a corrupção uma escolha viável. O ganho pessoal não pode prevalecer sobre o dano coletivo, tampouco sobre os valores constitucionais de probidade, igualdade e legalidade.
Neste cenário, a brandura da legislação brasileira no enfrentamento à corrupção permanece como um dos maiores entraves ao avanço institucional do Brasil. A Lei 14.230/2021, ao reformar a antiga Lei de Improbidade Administrativa, esvaziou seus instrumentos de responsabilização, exigindo um enigmático dolo específico e inviabilizando a repressão de condutas gravemente lesivas à probidade. Os tipos penais relacionados à corrupção, por sua vez, seguem associados a penas baixas, frequentemente substituíveis por sanções alternativas, e nenhum deles integra o rol dos crimes hediondos, o que revela um descompasso entre a gravidade social da conduta e a resposta normativa.
A Resolução A/HRC/59/L.6 da ONU traz recomendações úteis e importantes, mas a eficácia de qualquer norma depende da disposição concreta de implementá-la com rigor. A exemplo da política comercial internacional recentemente disseminada que por meio de aumento de tarifas busca proteger determinados interesses, talvez seja a hora de o mundo — e especialmente o Brasil — adotar medidas que aumentem drasticamente o custo da prática corrupta.
É exigível, sem rodeios, um tarifaço já contra a corrupção. Em um cenário de crise institucional e números endêmicos de crimes, só uma (re)ação firme e decidida será capaz de virar essa página.