É possível separar a mudança no ensino do Direito Constitucional nos últimos anos das alterações por que passou o Brasil e a sociedade? E até que ponto o ensino do Direito Constitucional nas décadas passadas não estava baseada numa ideia quase romântica da Constituição? Perguntas que a própria professora de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Jane Reis, suscita quando pensa no que mudou nas suas aulas de 2000 para cá. Em entrevista ao JOTA, ela ressalta que “o que mudou dentro da sala de aula, de certa maneira, é um pouco também o que mudou fora”.
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“A sala de aula de Direito Constitucional tem suas particularidades, mas ela não é tão diferente do nosso entorno de um modo geral. Hoje em dia, até quando você eventualmente vai numa consulta médica, o médico vai trocar ideia com você, quer saber o que você acha do que está acontecendo no Supremo, se determinada conduta do Supremo foi acertada ou errada. A sala de aula acaba refletindo isso”, diz. E, consequentemente, também gera questionamentos nos alunos.
Ela conta que quando começou a lecionar a principal discussão era em torno da efetivação dos direitos humanos. “Eu acho que o ensino do Direito Constitucional, no final dos anos 1990 e no início dos anos 2000, era permeado por um otimismo, por um certo entusiasmo, uma narrativa heroica do Direito Constitucional e da Constituição, e que eu acho que hoje, olhando pelo retrovisor, a gente pode ver que era até uma narrativa romantizada, idealizada”, afirma.
Ao mesmo tempo, houve uma expansão dos temas julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), aliado aos conflitos recentes, o que fez com que o tempo que ela reservava nas aulas para discutir a história constitucional fosse se estreitando. “Uma coisa que eu tento, por exemplo, mostrar para eles quando eu leciono o controle de constitucionalidade é que não era assim. Já era um tribunal muito poderoso [anteriormente], com muitas ações, mas não era como é hoje. Isso aqui é produto não só da vontade dos ministros. Isso é produto de emendas constitucionais, de leis infraconstitucionais e de interpretações dadas por eles, mas de uma série de mudanças, de reformas que foram legais e que deram essa possibilidade que abriram esses canais.”
E, de acordo com a professora, além de ensinar aos alunos os conteúdos para o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e para concursos, “que são importantes e que os alunos não têm como abrir mão disso”, há o desafio de dar o componente crítico. “Mas sem a pessoa perder. Até porque para ela ser crítica, ela precisa saber. Ela precisa conhecer o que veio antes, o que está acontecendo agora, para poder formular a crítica e construir o que vem depois.”
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A professora Jane Reis é a quinta entrevistada da série do JOTA sobre os desafios de ensinar o Direito Constitucional.
A série explora com professores renomados de diferentes universidades e perfis como é o ensino e a formação dos futuros operadores do Direito, em um cenário em que a Constituição para além de um texto jurídico é hoje um campo de inúmeras disputas sociais e econômicas.
Confira trechos da entrevista com Jane Reis Gonçalves Pereira, professora de Direito Constitucional na UERJ. A íntegra da entrevista está disponível no YouTube do JOTA. Inscreva-se no canal para acompanhar todas as onze entrevistas da série.
Como está sendo a sua experiência agora de professora de Direito Constitucional?
Uma coisa que é importante colocar de ponto de partida é que a sala de aula de Direito Constitucional tem suas particularidades, suas dificuldades nesse momento, mas ela não é tão diferente do nosso entorno de um modo geral. Hoje em dia, até quando você eventualmente vai numa consulta médica, o médico vai trocar ideia com você, quer saber o que você acha do que está acontecendo no Supremo, se determinada conduta do Supremo foi acertada ou errada. Então, a sala de aula acaba refletindo isso.
Pensando retrospectivamente, fiz mestrado no final dos anos 1990, doutorado no início dos anos 2000, comecei a dar aula na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em 2003, o que mudou dentro da sala de aula, de certa maneira, é um pouco também o que mudou fora. No final da década de 1990, quando fiz o mestrado, o que a gente discutia, em que a gente pensava? Realização dos direitos humanos, democracia participativa. Era o tópico de democracia que estava em pauta. Não era a crise da democracia ou o risco da democracia, pelo contrário, ao menos no plano teórico havia um certo otimismo, aquela ideia de fim da história, então era um desafio de qualidade da democracia. Vamos debater orçamento participativo, referendo, plebiscito, iniciativa popular, esse era o termômetro, o zeitgeist do momento, início dos anos 2000, aquela explosão de trabalhos sobre direitos fundamentais, interpretação da Constituição, princípios.
Isso, de certa maneira, refletia um otimismo que vinha a reboque da própria Constituição de 1988. A gente sabe que a Constituinte de 1987 foi um momento atípico de mobilização, de engajamento, de otimismo, de acreditar no futuro melhor, e esses anos que sucederam vieram um pouco nesse embalo. E como você falou em polarização, a gente não tinha noção da dimensão da polarização naquele momento, no final dos anos 1990, início dos anos 2000, a gente partia um pouco dessa noção de que tinha havido uma composição e que aquilo estava posto.
Algo pactuado, não é?
Pactuado. A dimensão compromissória da Constituição, então o pacto está posto, o que a gente precisa decidir é a partir desse núcleo mínimo de compromisso para onde que a gente vai avançar. Só que, na verdade, se a gente olhar para os debates que acontecem hoje, uma boa parte das discussões que são tidas como referenciais de ampla polarização, se a gente for olhar para os debates da constituinte ou pré-constituinte, aquilo já estava tudo lá. Então, acho que, de certa maneira, quem perdeu durante a Constituinte, estava disposto a tentar um novo movimento para recuperar o que perdeu, ou para desfazer os avanços que aconteceram naquele momento.
Então, acho que tem, por um lado, essa emergência de questões que estavam no processo constituinte, o nosso processo de transição pactuada, e que, vamos lembrar, é uma transição pactuada, mas é uma transição de uma ditadura para um regime democrático, um processo de democratização, então aquelas questões todas que a gente vê hoje elas estavam ali, acho que houve um pouco essa crença de que aquilo estava posto. E, ao mesmo tempo, eu acho que possivelmente, segundo se costuma dizer, acentuado pelas redes sociais, enfim, pela facilidade de circulação da informação digitalmente ou das opiniões, isso se acentuou nesse ponto de chegar também nas famílias, nas casas, no trabalho, dentro das nossas instituições. Essas divisões estão postas, acho que na imprensa, no Judiciário, no Ministério Público, na advocacia, nas empresas, em qualquer lugar.
E o que é que se apresenta de dificuldade ou de diferença em relação ao Direito Constitucional, que é a pergunta que você fez? Em primeiro lugar, eu acho que o ensino do Direito Constitucional, no final dos anos 1990 e no início dos anos 2000, era permeado por um otimismo, por um certo entusiasmo, uma narrativa heroica do Direito Constitucional e da Constituição, e que eu acho que hoje, olhando pelo retrovisor, a gente pode ver que era até uma narrativa romantizada, idealizada. Naquele texto do The New York Times, que discute o que é ensinar Direito Constitucional, em 1924, você vê ali uma perda das ilusões, uma certa desilusão, mas quando há uma desilusão é porque, de certa maneira, havia alguma dimensão de ilusão. E eu acho que o final dos anos 1990 e o início dos anos 2000 estão marcados por isso. Aquela última fase famosa do Norberto Bobbio, que era repetida com frequência, ah, os direitos humanos já estão fundamentados, agora só cabe efetivá-los.