As preocupações ambientais na regulação da infraestrutura em geral não são nenhuma novidade. As atividades econômicas que envolvem a operação de infraestruturas de grande porte são, há muito, objeto de forte regulação estatal, inclusive relacionada a questões ambientais. Isso tanto nas atividades stricto sensu (como mineração, geração de energia elétrica, construção e operação de terminais portuários de uso privado etc.) quanto naquelas entendidas como serviço público (e.g. distribuição de gás canalizado, transmissão e distribuição de energia elétrica, serviços de saneamento básico, dentre outras).
Contudo, se, por um lado, é possível verificar juridicamente uma preocupação ambiental manifesta no que diz respeito à construção e à operação das infraestruturas necessárias para tais atividades, o mesmo não se faz tão presente em toda a cadeia produtiva na maioria desses setores. Em especial, tende a ser difícil identificar a mesma intensidade da preocupação ambiental no que diz respeito à regulação da ponta final de grande parte dessas atividades, que é a prestação de serviços públicos aos usuários finais, não obstante os flagrantes impactos que as mudanças climáticas vêm provocando no contexto em questão.
Exemplos nesse sentido não faltam, inclusive nos anos — e nas semanas — recentes. Os apagões ocorridos em novembro de 2023 e se repetindo no mês passado (março de 2024) especialmente na região metropolitana de São Paulo (mas também ocorridos com menor intensidade em outros estados, como o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro) tiveram como causa tanto de origem quanto de seu descompensado prolongamento as falhas das concessionárias de distribuição (algumas já constatadas pela Aneel e em vias de ser fiscalizadas pelo TCU) em lidar com as fortes chuvas que vêm atingindo o Brasil.
Ressalta-se que tais chuvas de grande intensidade — ainda que venham se tornando cada vez mais fortes devido às mudanças climáticas[1] — já são rotina nos verões brasileiros, em especial nas regiões litorâneas. Ainda assim, ao que tudo indica, não houve uma devida atenção regulatória ou pelas prestadoras, de modo que fosse possível evitar o caos instaurado a partir dos fenômenos climáticos.
Outro exemplo, e ainda sem extrapolar as últimas semanas, são os desastres ambientais ocorridos em decorrência das chuvas que atingiram a região Sudeste nos últimos meses. Apenas em março, essas chuvas deixaram 27 mortos e quase 12 mil desalojados, com quase 600 desalojados nos estados do Rio de Janeiro e mais de 11 mil no Espírito Santo. Esse cenário, muito longe de ser causado exclusivamente pelas chuvas, deve-se em grande medida à carência dos serviços públicos de saneamento básico, especialmente no que diz respeito à drenagem e ao manejo de águas pluviais, mas também envolvendo o esgotamento sanitário e a limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos.
Sem a atenção devida na prestação adequada destes serviços, o resultado é a insuficiência de vazão nas câmeras de águas pluviais, o entupimento de bueiros pelo acúmulo de lixo, o assoreamento de rios causado pelo despejo de esgoto in natura, vários dos principais fatores que levam aos desastres envolvendo chuvas que tem sido rotina da população no início de todo ano.
Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) apontam que centenas de milhares de pessoas ficam anualmente desabrigadas ou desalojadas por conta de eventos hidrológicos, com um aumento exponencial destes números nos últimos anos. Em 2022, por exemplo, mais de meio milhão de pessoas (522,4 mil) enfrentaram essa situação, representando um aumento de mais de 150% com relação ao ano de 2017 (205,2 mil).
Estes são apenas alguns exemplos mais recentes que destacam a necessidade de que, na atividade regulatória estatal, a preocupação com questões ambientais, especialmente em tempos de mudanças climáticas, não pode se limitar à construção e à operação de grandes infraestruturas. Deve perpassar por toda a cadeia produtiva relacionada aos serviços públicos, inclusive na ponta da cadeia, com a prestação aos usuários finais. Caso contrário, desastres ambientais continuarão sendo rotina na vida das populações, em especial quando há fenômenos climáticos envolvidos.
Não é por acaso, inclusive, que os setores mais atingidos por desastres e ocorrências como as citadas acima sejam, em regra, os segmentos da população mais pobre, moradores de favelas e periferias, e, inclusive, de maioria negra. Por essa realidade, tem sido recorrentes os debates levantados em torno destes episódios apontando-os como exemplos de injustiça ambiental e de racismo ambiental.[2]
A política ambiental dos anos recentes no Brasil foi caracterizada não apenas por retrocessos normativos, mas também por um estrutural afrouxamento das atividades reguladoras e fiscalizatórias. Isso resultou no avanço do desmatamento, de queimadas, da poluição e da exploração predatória dos recursos naturais, todos fatores que agravam substancialmente o cenário de mudanças climáticas.
Diante desse cenário, além da urgência de sua reversão, torna-se cada vez mais urgente que a pauta ambiental ocupe um lugar central na atividade regulatória estatal em toda a cadeia produtiva, abrangendo especialmente os segmentos que afetam diretamente a grande massa populacional, como a prestação dos serviços públicos aos usuários finais.
[1] Conforme concluiu recente pesquisa conduzida por pesquisadores do Potsdam Institute for Climate Impact Research (PIK), da Alemanha, disponível em: <https://journals.ametsoc.org/view/journals/clim/37/1/JCLI-D-23-0492.1.xml> Um resumo da pesquisa pode lido na seguinte matéria: <https://www.tempo.com/noticias/ciencia/o-aquecimento-global-esta-intensificando-chuvas-extremas-ainda-mais-do-que-os-cientistas-esperavam.html>
[2] Como conceitua a coordenadora-executiva do projeto “Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil” e pesquisadora da Fiocruz Tânia Pacheco, citada por Priscila Elisa Vasconcelos e Luiza Lins Veloso, “Chamamos de Racismo Ambiental as injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulneráveis. O Racismo Ambiental não se configura apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente, através de ações que tenham impacto “racial”, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem” (PACHECO, Tânia. Desigualdade, injustiça ambiental e racismo: uma luta que transcende a cor. Disponível em: <https://racismoambiental.net.br/textos-e-artigos/desigualdade-injustica-ambiental-e-racismo-uma-luta-que-transcende-a-cor/> apud VASCONCELOS, Priscila Elisa; VELOSO, Luiza Lins. O Novo Marco Legal do Saneamento e o racismo ambiental: efetivação do ODS nº 06? Direito em Movimento, Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, v. 18, n. 2, p. 166-188, 2º semestre/2020, p. 175.