Em 3 de outubro de 2024 – 90 dias antes de 1º de janeiro de 2025 – foi publicada a MP 1262. Sua finalidade é estabelecer, no Brasil, tributação mínima efetiva de 15% sobre a renda corporativa, no bojo da adaptação da legislação brasileira às Regras-Modelo Globais contra a Erosão da Base Tributária (Global Anti-Base Erosion Rules – Regras-modelo GloBE – da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).[1] Logo, a MP traz uma proposta de regras GloBE brasileiras.
O otimismo do governo federal em relação a essa potencial nova via de arrecadação evidencia-se pelo fato de a Receita Federal ter regulamentado o diploma no mesmo dia (IN RFB 2.228/2024), antes mesmo do início de qualquer deliberação sobre a conversão da MP 1262 em lei.
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Semelhante otimismo não foi observado nem mesmo em relação às atuais regras de preço de transferência (Lei 14.596/2023), que contavam com maior apoio do setor privado para sua aprovação, inclusive porque passariam a permitir o creditamento, nos EUA, da tributação brasileira sobre a renda (ponto de relevo para multinacionais).
O objetivo do presente artigo é trazer algumas considerações sobre a MP 1262 em caráter não exauriente. Isso será feito em três partes: primeiro, breve resumo histórico sobre as Regras-Modelo GloBE; segundo, aspectos relevantes do atual texto da MP 1262, inclusive potenciais controvérsias jurídico-tributárias; e terceiro, recomendações que poderiam contribuir para a melhora da atual proposta de Regras GloBE brasileiras.
Resumo histórico
O Projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), iniciado em 2013, e do qual resultaram 15 ações e respectivos relatórios finais (publicados em 2015) para reestruturação do sistema tributário internacional,[2] foi considerado insuficiente em diversos aspectos.
A OCDE e o G20, então, comprometeram-se a continuar trabalhando juntos para soluções tributárias coordenadas, o que gerou o grupo denominado Quadro Inclusivo (Inclusive Framework), que contava com 147 países-membros em 28 de maio de 2024, inclusive o Brasil[3] e cujos trabalhos são conduzidos por um subgrupo de 24 países denominado Grupo de Direção (Steering Group).[4]
As Regras-Modelo GloBE são resultantes desse esforço continuado da comunidade tributária internacional por meio do Inclusive Framework, ainda que questionáveis os graus de efetivas participação e influência dos diferentes países. Seu objetivo último é garantir que grandes empresas multinacionais estejam concretamente sujeitas a um piso de tributação da renda em cada jurisdição que operem.
Para tanto, as Regras-Modelo GloBE são essencialmente estruturadas como Regras CFC (Controlled Foreign Corporations), inclusive potencialmente gerando tributação da renda auferida por entidades estrangeiras independentemente de efetiva distribuição.[5]
Ademais, se é verdade que as Regras-Modelo GloBE possuem mecânica de apuração com várias particularidades, igualmente é verdade a sua origem remota no relatório final da Ação 3 do Projeto BEPS,[6] que versa sobre o desenho efetivo de Regras CFC, e na legislação estadunidense denominada Global Intangible Low-Taxed Income (GILTI Rules),[7] como reconhece a própria OCDE na versão preliminar das Regras-Modelo GloBE (Pillar Two Blueprint).[8]
Hoje, diversas jurisdições já implementaram legislação baseada nas Regras-Modelo GloBE ou com elas compatível.[9] Além dos EUA, pelas mencionadas GILTI Rules, chama a atenção a diretiva do Conselho da União Europeia 2022/2523, que tem alcance vinculativo.[10]
MP 1262
Umas das principais ferramentas normativas das Regras-Modelo GloBE é a denominada Regra de Inclusão de Renda (Income Inclusion Rule), que, em última análise, promove a inclusão de renda auferida no exterior na base tributável doméstica de uma Entidade Investidora (Parent Entity) independentemente de efetiva distribuição.
Dentre os mecanismos da IIR, verifica-se o tributo por arredondamento (Top-up Tax), cujo montante é apurado pela diferença entre a alíquota efetiva referente a determinada jurisdição estrangeira e 15% (logo, um tributo calculado por “conta de chegada” ao invés do tradicional binômio base tributável e alíquota).[11]
Considerando o acima, um primeiro aspecto relevante da MP 1262 é a implementação da tributação efetiva mínima de 15% via adicional da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) – arts. 19 a 28.
Por estarem as Regras-Modelo GloBE inseridas no contexto de tributação da renda, uma cogitação razoável seria a sua implementação no Brasil via Imposto sobre a Renda (IR), por exemplo como um adicional do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) autônomo àquele de 10% previsto no art. 3º, §1º, da Lei 9.249/1995 e dispositivos correlatos.
Ademais, caso as Regras GloBE Brasileiras fossem implementadas via IR, não haveria a mesma pressão temporal em razão da anterioridade nonagesimal (Constituição, art. 150, caput, inciso III, alínea “c”, e §1º, e art. 195, §6º) – tempo extra que poderia ser utilizado, por exemplo, na elaboração de uma exposição de motivos pertinente ou, ainda melhor, na realização de consulta pública em respeito à superior prática democrática.
A opção pela CSLL, portanto, traz alguma surpresa. De toda sorte, a medida se torna compreensível quando se considera que o regime jurídico do IR exige a repartição de metade (50%) do produto da sua arrecadação com os estados, o Distrito Federal e os municípios (Constituição, art. 159).
Já o regime jurídico da CSLL determina que o produto da sua arrecadação é exclusivamente destinado ao financiamento da seguridade social – isto é, saúde, previdência e assistência social (Constituição, art. 195, caput, inciso I, alínea “c”; Lei nº 7.689/1988, art. 1º; Lei 8.212/1991, art. 11, caput, inciso II, e parágrafo único, alínea “d”). Ademais, o art. 2º da MP 1262 expressamente reforça essa destinação (“(…) mantida a destinação (…)”).
A maior centralização do controle sobre o produto da arrecadação das Regras GloBE Brasileiras parece ser, portanto, intencional. Seja como for, não se deve ignorar que esse adicional da CSLL não é uma mera extensão da CSLL já existente, pois sua mecânica de apuração é própria, não havendo identidade de bases de cálculo (o tradicional caminho de lucro líquido contábil até lucro real tributável não é exatamente aplicável às Regras BloBE).
Avançando, a MP 1262 promove diversas delegações à Receita Federal. Algumas não oferecem maior resistência à luz do princípio da legalidade, porque efetivamente de caráter infralegal – por exemplo, regulamentação sobre conversão de moedas e atualização de limites em euro (art. 3º, caput, inciso I).
Por outro lado, há delegações relacionadas a aspectos essenciais da mecânica de apuração – por exemplo, definição de termos não definidos, opções normativas a serem adotadas pelos sujeitos passivos, alocação e restrições referentes a lucros, prejuízos e tributos, efeito de reestruturações societárias.
Reconhece-se que a existência dessas delegações é logicamente justificada. Afinal, a complexidade das Regras-Modelo GloBE é notável já na primeira leitura das publicações da OCDE, bem como confirmada pela análise do texto da IN RFB 2.228/2024.
Não obstante, a complexidade não é justificativa jurídica suficiente para afastar os princípios e as limitações do poder de tributar. Assim, ainda que a OCDE e o Inclusive Framework possuam liberdade de desenho normativo, inclusive porque não são órgãos legiferantes, a nacionalização das suas recomendações não é igualmente livre. E, no Brasil, o filtro maior é a Constituição.
Nesse contexto, é relevante relembrar que a definição de fatos geradores e de bases de cálculo é matéria exclusiva de lei complementar (Constituição, art. 146, caput, inciso III, alínea “a”). Como mencionado acima, diversas delegações promovidas pela MP 1262 se referem ao fato gerador desse adicional da CSLL e à mecânica de apuração da sua base de cálculo. Essas delegações, portanto, são inconstitucionais.
Na linha do acima, a MP 1262, nos §§1º e 2º do seu art. 3º, determina que a Receita Federal periodicamente atualize a sua regulamentação das Regras GloBE brasileiras para que haja “consonância com os documentos de referência aprovados pelo Quadro Inclusivo da OCDE” e define esses “documentos de referência” como “Modelo de Regras (Model GloBE Rules), o Comentário (Commentary to the GloBE Rules), as Orientações Administrativas (Agreed Adminstrative Guidances) e as demais regras, orientações e procedimentos, e atualizações posteriores, aprovadas pelo Quadro Inclusivo da OCDE para a implementação coordenada da tributação mínima efetiva”.
Combinando as delegações de poder discutidas acima com esse dever de atualização de regulamentação, a resultante normativa é atribuir poder vinculativo doméstico aos materiais produzidos pela OCDE.
Reconhece-se que essa atribuição tem uma finalidade prática evidente: garantir a qualificação perene do adicional da CSLL como tributo por arredondamento mínimo doméstico qualificado (Qualified Domestic Minimum Top-up Tax) e, assim, evitar que jurisdições estrangeiras absorvam a arrecadação brasileira através das suas próprias versões das Regras-Modelo GloBE. De fato, se algum país for arrecadar em relação a operações que ocorrem em território nacional, é melhor que esse país seja o Brasil.
No entanto, a atribuição de poder vinculativo doméstico à produção da OCDE sobre as Regras-Modelo GloBE via normas infralegais é evidentemente contrária ao princípio da legalidade. Por exemplo, caso a OCDE modifique a mecânica de apuração do tributo por arredondamento (Top-up Tax), essa modificação corresponderia a mudança na base de cálculo do adicional da CSLL em comento via regulamentação pela Receita Federal. No nosso entendimento, essa passagem ao largo do Poder Legislativo obviamente contraria a Constituição e coloca em xeque a soberania brasileira.
Sem prejuízo do acima, é também relevante observar que a MP 1262, em seu art. 36, permite que o Poder Executivo converta os benefícios fiscais da Sudam, Sudene e similares em crédito de tributo reembolsável qualificado (Qualified Refundable Tax Credits). Ademais, nos termos do art. 15 da IN RFB 2.228/2024, esse crédito é tratado como receita e, portanto, é elemento positivo na mecânica de cálculo para a determinação de eventual subtributação para fins das Regras GloBE brasileiras.
Assim, a classificação como QRTCs evitaria que versões estrangeiras das Regras-Modelo GloBE financeiramente anulassem esses benefícios fiscais brasileiros,[12] portanto resguardando a prerrogativa do Brasil em conceder benefícios fiscais de desenvolvimento regional.
Recomendações
Apesar de a análise acima apenas tocar na superfície das propostas Regras GloBE brasileiras, resta evidente que esse potencial novo conjunto normativo tem aspectos positivos e negativos.
Do ponto de vista concreto, a adoção de Regras GloBE brasileiras é necessária para a proteção da arrecadação brasileira frente a jurisdições estrangeiras. Assim, entendemos que o movimento do Poder Executivo em favor dessa legislação, em si considerado, é salutar.
Por outro lado, a necessidade dessa legislação não é justificativa para a sua implementação a toque de caixa e sem a devida observância da Constituição. Notadamente, a excessiva delegação de poderes à Receita Federal e o efeito atributivo de poder vinculativo à OCDE não são, em absoluto, salutares, mas verdadeiramente inconstitucionais.
Visando corrigir esses problemas, fazemos as seguintes recomendações:
a MP 1262 seja revogada;
o seu texto – ajustado para eliminar a excessiva delegação de poderes à Receita Federal e o efeito atributivo de poder vinculativo à OCDE – conste de projeto de lei complementar;
seja aberta consulta pública para discutir a própria proposta de lei complementar, e não apenas da regulamentação pela Receita Federal; e
cumpridas essas recomendações, eventual adicional da CSLL não poderia valer já para 2025 em razão da espera nonagesimal, pelo que o mecanismo teria de ser ajustado para adicional de IR para viabilizar a cobrança a partir de 1º de janeiro. Isso teria o efeito positivo complementar de melhor repartir o produto da arrecadação entre os entes federados, portanto otimizando os efeitos democráticos concretos dessas novas regras tributárias.
[1] OECD. Tax Challenges Arising from the Digitalisation of the Economy – Global Anti-Base Erosion Model Rules (Pillar Two). Inclusive Framework on BEPS. OECD Publishing: Paris, 2021. https://doi.org/10.1787/782bac33-en.
[2] OECD. Base Erosion and Profit Shifting (BEPS). https://www.oecd.org/en/topics/policy-issues/base-erosion-and-profit-shifting-beps.html.
[3] OECD. Members of the OECD/G20 Inclusive Framework on BEPS (as of May 28, 2024). https://www.oecd.org/content/dam/oecd/en/topics/policy-issues/beps/inclusive-framework-on-beps-composition.pdf.
[4] OECD. Composition of the Steering Group of the OECD/G20 Inclusive Framework on BEPS (as of January 2023). https://www.oecd.org/content/dam/oecd/en/topics/policy-issues/beps/steering-group-of-the-inclusive-framework-on-beps.pdf.
[5] MENDES, André; RAUSCH, Aluizio Porcaro. O Pilar 2 Da OCDE e As Normas CFC Brasileiras. In: Tributação Internacional e Digitalização da Economia. Coordenado por Sergio André Rocha. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022, p. 739.
[6] OECD. Designing Effective Controlled Foreign Company Rules, Action 3 – 2015 Final Report. OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project. OECD Publishing: Paris, 2015. http://dx.doi.org/10.1787/9789264241152-en.
[7] EUA. 26 U.S. Code §951A – Global intangible low-taxed income included in gross income of United States shareholders.
[8] OECD. Tax Challenges Arising from Digitalisation – Report on Pillar Two Blueprint. Inclusive Framework on BEPS, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project. OECD Publishing: Paris, 2020. https://doi.org/10.1787/abb4c3d1-en.
[9] PwC. PwC’s Pillar Two Country Tracker. https://www.pwc.com/gx/en/tax/international-tax-planning/pillar-two/pwc-pillar-two-tracker-full-data-v2.pdf.
WTS Global. Pillar Two – Implementation Status Worldwide. https://wts.com/global/hot-topics/pillar-two/pillar-two-implementation-status-worldwide.
[10] Council Directive (EU) 2022/2523 of 15 December 2022 on Ensuring a Global Minimum Level of Taxation for Multinational Enterprise Groups and Large-Scale Domestic Groups in the Union, OJ L 328/1 (2022).
[11] OECD. Tax Challenges Arising from the Digitalisation of the Economy – Consolidated Commentary to the Global Anti-Base Erosion Model Rules. Inclusive Framework on BEPS, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project. OECD Publishing: Paris, 2023. p. 34-42. https://doi.org/10.1787/b849f926-en.
[12] OECD. Tax Challenges Arising from the Digitalisation of the Economy – Consolidated Commentary to the Global Anti-Base Erosion Model Rules. Inclusive Framework on BEPS, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project. OECD Publishing: Paris, 2023. p. 83-84, 273-274. https://doi.org/10.1787/b849f926-en