É de amplo conhecimento que a tributação sobre a renda no Brasil representa uma carga tributária nominal de 34% para as empresas. Apesar disso, a Receita Federal reconhece que a arrecadação efetiva dos tributos sobre os lucros (IRPJ/CSLL) não está em linha com esse percentual, isso em razão da existência de gaps tributários.
Em recente relatório produzido pelo órgão federal, foi constatada que a arrecadação efetiva de IRPJ/CSLL alcançou R$ 170 bilhões ao ano no período de 2015 a 2019, representando apenas 40% da arrecadação potencial, isso em função da existência de três tipos de gaps que afetaram o recolhimento destes tributos.
O primeiro diz respeito à evasão fiscal ou gap de reconhecimento. Já o segundo refere-se à diferença provocada pela discussão judicial atrelada a tais tributos (gap de arrecadação). E o terceiro, e mais importante para a compressão do tema que será discutido, é o gap de política tributária, isto é, aquele causado pela concessão de incentivos e renúncias fiscais pelo Estado.
É nesse último caso que se enquadra o tratamento tributário conferido às subvenções para investimentos, o qual permite, em síntese, a exclusão das receitas provenientes de determinados incentivos fiscais concedidos pelos entes subnacionais (estados e Distrito Federal), que visam fomentar a atividade econômica e sua expansão, da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
Esse regime fiscal, contudo, remonta um longo histórico de disputa entre contribuintes e o fisco e que desembocou no recente reconhecimento pelo STJ (EREsp 1.517.492 e Tema 1.182) da validade da sua exclusão da base de cálculo do IRPJ e da CSLL (i) em definitivo, quando concedido sob a forma de um crédito presumido pelos respectivos entes e (ii) em caráter temporário, nas demais formas de incentivos (isenção, redução de base de cálculo), caso cumpridos os requisitos do art. 10 da LC 160/17 e art. 30 da Lei 12.973/14.
Ocorre que, com a publicação da MP 1185 neste ano, a qual caminha para a aprovação pelo Congresso Nacional, o governo federal projetou uma radical alteração desse regime tributário para 2024.
Por meio da MP 1185 o governo pretende incluir as subvenções para investimento nas respectivas bases do IRPJ e da CSLL e, como contrapartida, outorgar uma espécie de crédito fiscal em relação a estes valores aos contribuintes a partir de uma nova metodologia de cálculo (art. 6º) e sob o atendimento de determinados requisitos (arts. 4º e 5º).
Alvo de críticas nos fóruns especializados, a MP foi ventilada, assim, como um instrumento de cunho estritamente arrecadatório, cujo mote é possibilitar a obtenção do “déficit primário zero” no próximo ano. Contudo, pouco se discutiu sobre a totalidade dos motivos (expressos) que lhe conferiram urgência e relevância, a fim de que tal alteração fosse alçada via Medida Provisória.
Um destes motivos, pouco discutido, pode ser identificado a partir da leitura da exposição de motivos da MP. Esta informa que o novo tratamento conferido às subvenções representaria um alinhamento às “Regras GloBE (IIR – Income Inclusion Rule e UTPR – Undertaxed Profit Rule) da solução baseada em dois pilares, proposta pelo OCDE/G20 Inclusive Framework”, de modo que a conclusão obtida foi no seguinte sentido:
A relevância e a urgência da medida restam evidenciadas pela demonstração de que o incentivo fiscal atualmente vigente não está alinhado: (1) ao padrão internacional das regras GloBE, de forma a possibilitar a cobrança do imposto mínimo de 15% em outras jurisdições; (2) às normas de responsabilidade fiscal; e (3) à finalidade de estímulo à implantação ou expansão de empreendimento econômico.[1]
Sendo assim, para que se compreenda o porquê da edição da MP 1185, necessário se faz entender o que são as regras GloBE, ventiladas no âmbito da OCDE e do G20, e o motivo dessa iniciativa internacional implicar na alteração do tratamento tributário das subvenções para investimento no Brasil.
Pelo fato de a exposição de motivos não ir além das transcrições mencionadas acima, não é possível depreender de imediato a correlação entre a pauta internacional com esse regramento doméstico. No entanto, a partir da análise das regras GloBE e por conta das recentes mudanças tributárias que o Brasil vem promovendo, principalmente nesse ano, é possível conjecturar o motivo para essa alteração.
O primeiro ponto desse debate envolve, assim, o interesse do Brasil em ingressar na OCDE, o qual vem galgando crescentes esforços neste intento. E um dos fatores que influencia na entrada na organização é justamente o alinhamento do regramento interno do país com as práticas pautadas neste fórum, as quais englobam a readequação da tributação doméstica.
As regras GloBE, portanto, mencionadas na exposição de motivos da MP, nada mais são do que uma solução desenvolvida pelo Quadro Inclusivo da OCDE/G20 no âmbito do Projeto BEPS, sob a iniciativa do Pilar Dois. Trata-se de um mecanismo criado para enfrentar a concorrência tributária prejudicial entre jurisdições, de modo a impor que os lucros das multinacionais no escopo das regras sujeitem-se à tributação mínima a uma carga tributária efetiva (effective tax rate ou ETR) no patamar de 15%.
Quer se dizer, com isso, que, caso o ETR de uma multinacional esteja abaixo de 15% devido à baixa tributação da renda de uma controlada em determinada jurisdição, fato que, no Brasil, poderia se verificar por conta dos incentivos fiscais concedidos, essa diferença poderá ser neutralizada por meio de um imposto complementar junto a jurisdição da controladora com base na aplicação da regra de inclusão de renda (Income Inclusion Rule – IIR) em conjunto com regra de pagamento sub-tributado (Under Taxed Payment Rule – UTPR), desenhadas no bojo do Pilar Dois.
Ou seja, onde incentivos fiscais tenderem a reduzir a carga tributária sobre os lucros de um grupo econômico abaixo de 15%, as regras GloBE serão aplicadas para tributá-los até este patamar mínimo. Nota-se, deste modo, que a mera constatação da carga tributária nominal do país não será o critério para aferição da carga efetiva (ETR), o que vem a demonstrar o receio do governo na expedição da MP 1185, dada a constatação do relevante gap de política tributária identificado pela Receita Federal.
Reforça-se a isso o fato de as regras GloBE estabelecerem um tratamento particular a um tipo de incentivo fiscal quando da aferição do ETR. Esse é o caso do denominado Crédito Fiscal Reembolsável Qualificado (Qualified Refundable Tax Credits ou QRTC), que não é tratado como um redutor da carga tributária efetiva, de forma a não influir em eventual tributação complementar. Todavia, para qualificar-se como tal, esse crédito deve ser disponibilizado (i) como dinheiro ou equivalente e (ii) dentro de quatro anos após a satisfação das condições estabelecidas aos contribuintes beneficiários[2].
Sendo assim, a MP 1185 alinha, a priori, o tratamento concedido às subvenções para investimento ao QRTC, já que incentivo passará a ser representado por um crédito a ser usufruído após o atendimento das contrapartidas sobre as quais foi pactuada sua concessão junto aos estados e Distrito Federal (art. 7º, II, a).
Mitiga-se, dessa maneira, eventuais efeitos deletérios às multinacionais estabelecidas no Brasil, as quais, nos termos do regime vigente, podem passar a sofrer imposição de um tributo complementar em outra jurisdição que adote as regras GloBE, ao passo em que é resguardado tratamento fiscal mais vantajoso às empresas para expansão de suas atividades no Brasil.
Em certa medida, portanto, esse novo regime conferido pela MP 1185 converge para um cenário de maior segurança jurídica às multinacionais em um período no qual o cenário tributário internacional passa por intensas e complexas mudanças, além de ser um passo importante para a manutenção da competitividade fiscal brasileira no cenário global.
[1] BRASIL. Projeto de Medida Provisória 1.185, de 30 de agosto de 2023. Acesso em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9445100&ts=1702655139828&disposition=inline
[2] OECD (2021), Tax Challenges Arising from the Digitalisation of the Economy – Global Anti-Base Erosion Model Rules (Pillar Two): Inclusive Framework on BEPS, OECD Publishing, Paris, p. 66.