Moratória da soja: quando o discurso verde encobre práticas excludentes

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A moratória da soja foi criada em 2006. A iniciativa reúne grandes traders exportadores de soja que se comprometem a não adquirir grãos de áreas desmatadas na Amazônia.

À primeira vista, a medida parece alinhar interesses econômicos e ambientais. No entanto, uma análise jurídica e concorrencial mais atenta revela um instrumento de exclusão de produtores e de concentração de mercado, com efeitos colaterais que pouco contribuem para a efetiva proteção ambiental.

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A Nota Técnica da Consultoria Elementar aponta que a moratória já incide sobre uma área de 5,1 milhões de hectares — mais de 50% da produção de soja nos municípios da Amazônia Legal.

Essa abrangência territorial evidencia o impacto sistêmico da política, que, embora apresentada como voluntária, impõe restrições privadas superiores às exigências da legislação brasileira, notadamente ao Código Florestal (Lei 12.651/2012).

Em outras palavras, particulares decidiram criar, por meio de acordo entre concorrentes, um conjunto de regras ambientais próprias, mais rígidas do que as impostas pelo Estado.

Esse é o ponto de inflexão. Ao substituir a regulação pública por um pacto privado entre grandes agentes econômicos, a moratória transforma a pauta ambiental em instrumento de coordenação de condutas entre concorrentes, o que é expressamente vedado pela Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011).

O §3º do art. 36 considera infração à ordem econômica qualquer acordo entre concorrentes que limite a produção, divida mercados ou crie barreiras artificiais à entrada de novos agentes. Ao restringir a comercialização da soja de produtores — que cumprem integralmente a legislação ambiental, mas não se enquadram nas exigências unilaterais do pacto —, a moratória produz o fechamento de mercado e a redução da livre iniciativa.

O discurso de sustentabilidade, nesse contexto, serve como narrativa legitimadora de uma conduta coordenada, conferindo aparência de altruísmo a uma prática de exclusão econômica. Trata-se, portanto, de um caso paradigmático de greenwashing estrutural — isto é, o uso de argumentos ambientais para justificar comportamentos que, na prática, mantêm ou ampliam desigualdades de mercado.

Pequenos e médios produtores, que não dispõem dos recursos tecnológicos ou do suporte de certificação exigidos pelas tradings signatárias, são os mais prejudicados. Mesmo cumprindo o Código Florestal, veem-se impedidos de comercializar sua produção, sem acesso a mecanismos transparentes de verificação nem a recursos.

A literatura econômica e jurídica internacional tem sido cautelosa em relação a iniciativas semelhantes. Guias recentes de autoridades da concorrência, como o da Comissão Europeia, o da Autoriteit Consument & Markt (Holanda) e o da Competition and Markets Authority (Reino Unido) reforçam que acordos de sustentabilidade só podem ser compatíveis com o direito antitruste se observarem critérios rigorosos: (i) demonstração clara dos ganhos de eficiência; (ii) indispensabilidade do acordo para alcançar o objetivo ambiental; (iii) repasse dos benefícios aos consumidores; e (iv) inexistência de eliminação substancial da concorrência.

Nada disso se verifica na moratória da soja. Não há comprovação da indispensabilidade da medida, tampouco avaliação transparente de seus impactos socioeconômicos. A prorrogação indefinida de um acordo que deveria ser transitório, sem instâncias formais de governança e sem controle público, acentua o déficit democrático (e os riscos à concorrência) da iniciativa. Em última análise, as tradings assumem um papel de autorreguladoras ambientais privadas, eximindo o Estado de suas funções normativas e fiscalizatórias.

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) já reconheceu que acordos dessa natureza podem configurar infrações à ordem econômica, especialmente quando atingem parcela relevante do mercado — como é o caso, em que as signatárias representam praticamente a totalidade dos adquirentes de soja no país.

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Assim, ao impor obrigações ambientais adicionais e discricionárias, a moratória restringe o mercado downstream (dos produtores) e compromete a concorrência, sob a roupagem de um pacto verde.

Ninguém nega a importância da sustentabilidade. Contudo, a agenda sustentável deve ser legítima, baseada em políticas públicas, na transparência e no equilíbrio competitivo. A verdadeira sustentabilidade é inclusiva, não excludente; é regulada e não definida por conglomerados privados.

Sob a aparência de “compromisso ecológico”, consolida-se uma estrutura de greenwashing coletivo, que beneficia grandes exportadores, exclui pequenos produtores e distorce o princípio da livre concorrência. Em vez de servir ao meio ambiente, a medida acaba por servir ao interesse corporativo travestido de causa ambiental.