No dia 27 de fevereiro deste ano, o Ministério do Trabalho e Emprego publicou a Portaria 225/2024, que aprovou a nova redação da Norma Regulamentadora 22, relacionada à segurança e saúde ocupacional na mineração. O novo texto da NR 22 entrou em vigor no último dia 28 de maio – com exceção dos itens 22.24.14 e 22.24.3 (e subitens), que tiveram uma prorrogação de prazo para serem aplicados[1] – e conta com mudanças relevantes para o setor, especialmente quanto às estruturas de disposição de rejeitos e estéreis.
Esses dois itens mencionados acima merecem destaque e uma avaliação jurídica mais acurada, por possuírem um potencial de verdadeiramente inviabilizar empreendimentos de mineração operacionais. São os seguintes:
o item 22.24.3 da nova NR 22 vedou a concepção, a construção, a manutenção e o funcionamento de quaisquer instalações da organização localizadas nas áreas a jusante de barragem sujeitas à inundação em caso de rompimento, consideradas tais situações de risco grave e iminente e passíveis de interdição da instalação da organização que esteja em desconformidade com este item; e
o item 22.24.14 da nova NR 22 indica que dentro do perímetro de segurança das pilhas, definido no projeto e no estudo de estabilidade, é vedada a concepção, a construção, a manutenção e o funcionamento de instalações destinadas às atividades de produção, auxiliares, administrativas, de vivência, de saúde e recreação.
Para o item 22.24.3, tem-se que, na redação anterior (a qual permanecerá vigente até 25 de agosto de 2024, a vedação estava relacionada apenas às instalações destinadas às atividades administrativas, de vivência, de saúde ou de recreação, disposição alinhada à atual regulamentação da Agência Nacional de Mineração (ANM) sobre o tema.
Em uma leitura literal da nova redação, que teoricamente passará a vigorar em 26 de agosto, as instalações operacionais (áreas de lavra, beneficiamento e disposição de rejeitos e estéreis) também não poderão permanecer na mancha de inundação. Como consequência da alteração trazida pelo item 22.24.3, foi excluída da NR 22 a lista de áreas consideradas de vivência.
Esse ponto, por si só, já é um grande problema em termos operacionais, porque inúmeros empreendimentos minerários estão instalados e se desenvolvem considerando a existência de estruturas operacionais em áreas a jusante de barragens de mineração.
A pretexto de regulamentar a saúde e segurança do trabalhador, a NR 22 passa a estabelecer uma restrição extremamente gravosa para os empreendimentos de mineração, primeiro por proibir a permanência de estruturas permitidas no âmbito regulatório; segundo por não prever nenhum regime de transição ou mesmo ter sido precedida de estudo de impacto regulatório específico; e terceiro porque a NR 22 passa a criar verdadeira restrição de direitos (não prevista em qualquer lei em sentido estrito), o que é totalmente questionável em se tratando de uma norma infralegal.
A Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) prevê em seu artigo 18-A, §2º, a possibilidade de que trabalhadores necessários ao desempenho das atividades de operação e manutenção da barragem ou de estruturas e equipamentos associados permaneçam na Zona de Autossalvamento:
Art. 18-A. Fica vedada a implantação de barragem de mineração cujos estudos de cenários de ruptura identifiquem a existência de comunidade na ZAS. (Incluído pela Lei 14.066, de 2020)
§ 2º Somente se admite na ZAS a permanência de trabalhadores estritamente necessários ao desempenho das atividades de operação e manutenção da barragem ou de estruturas e equipamentos a ela associados. (Incluído pela Lei 14.066, de 2020)
A redação da nova NR 22 acaba com essa possibilidade, e alude a uma proibição completa não apenas em relação à Zona de Autossalvamento, mas à toda área de inundação. A restrição trazida é abrangente e absoluta. Vale lembrar que, muitas vezes, a área da mancha de inundação de uma barragem ultrapassa a Zona de Autossalvamento, a qual é restrita ao trecho do vale a jusante no qual não há tempo suficiente para emissão de alerta pelos órgãos públicos em caso de emergência.
Além disso, os termos estabelecidos pela NR 22 poderão inviabilizar, inclusive, as obras de descaracterização das barragens, essenciais para o cumprimento de outras obrigações legais e terão por resultado a redução de barragens de mineração no país.
Nesse ponto, reside um claro conflito normativo e a pergunta que se faz é se uma norma regulamentadora, com status de norma infralegal, já que criada por meio de portaria, poderia inovar no ordenamento, estabelecendo esse nível de restrição de direitos.
Na perspectiva constitucional, a resposta parece clara, no sentido de que não, não é permitido a portarias restringir direitos que não foram antes limitados por alguma lei em sentido estrito, sob pena de clara ofensa ao princípio da legalidade – art. 5º II. A Portaria MTE 225/2024 se fundamenta sobretudo no artigo 87, parágrafo único, II, da Constituição da República de 1988, que diz o seguinte:
“Art. 87. Os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos.
Parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei:
(…)
II – expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos;”
O ponto de análise aqui é que não há lei, decreto ou regulamento que tenha estabelecido restrições totais como a NR 22 trouxe para as barragens de mineração. Ao contrário, a lei existente sobre o tema, a PNSB, permite a permanência de estruturas e trabalhadores sob algumas condições regulatórias.
A NR 22 não é, portanto, mera instrução. Ela inova no ordenamento jurídico para restringir direitos, e adentra, em alguma medida, na competência regulatória do Ministério de Minas e Energia. Falta, claramente, fundamento de constitucionalidade e legalidade em relação ao item 22.24.3 da NR 22.
E para o item 22.24.14 a conclusão não é diferente. Diferentemente das barragens de mineração, as pilhas de estéril não possuem uma regulamentação baseada em lei em sentido estrito. A Agência Nacional de Mineração adota como parâmetro de fiscalização dessas estruturas a NRM 19, uma norma criada pela Portaria 237/2001, na qual não há restrição relacionada à permanência de pessoas ou trabalhadores nos arredores da estrutura.
Aliás, não há sequer uma definição sobre o que seria o perímetro de segurança – conceito criado pela NR 22. Não há também previsão sobre elaboração de estudo de estabilidade, também indicado na NR 22, ou qualquer referência ao que seriam as atividades de vivência, vedadas de serem mantidas no tal perímetro de segurança das pilhas.
Além disso, da mesma forma que ocorre com o item 22.24.3 da NR 22, as novas disposições sobre as instalações próximas às pilhas de estéreis terão por resultado a inviabilização de inúmeros empreendimentos minerários, os quais contam com edificações e áreas diversas próximas às referidas pilhas – pois, até então, não havia qualquer restrição legal ou infralegal à permanência dessas instalações. Nesse caso, a NR 22 definiu, com a Portaria MTE 836/2024, o prazo de 5 anos para que o novo texto seja exigível, o que, por si só, não afasta os problemas que o setor enfrentará – apenas os adia para 2029.
Não bastasse, então, se tratar de portaria com conteúdo normativo inovador, que, por restringir direitos, deveria ter sido tratado em lei em sentido estrito (e com os mesmos fundamentos de inconstitucionalidade e ilegalidade trazidos para o item relacionado às barragens), tem-se, ainda, a completa falta de segurança jurídica do texto regulamentar. Não é possível, sequer, viabilizar uma fiscalização para a restrição trazida, porque, nem o minerador, nem o MTE têm condições de indicar o que seria o perímetro de segurança das pilhas de estéril.
Essa situação é um tanto quanto inusitada, porque pressupõe que uma norma regulamentadora dependa de regulamentação para que seja exigível. Esse aspecto acaba por confirmar a natureza de lei da NR 22, travestida de portaria. A inconstitucionalidade se torna ainda mais evidente, portanto.
Do que se expôs, tem-se uma evidente inconstitucionalidade e ilegalidade do item 22.24.3, da NR 22. Esse item, embora exigível, contém graves vícios que podem ser revistos, se não por ajustes normativos no âmbito do próprio MTE, por meio de remédios processuais específicos, dada a gravosidade das consequências que acarreta.
Já o item 22.24.14, embora padeça dos mesmos vícios, entende-se que, por condicionar as restrições a elementos absolutamente incertos e não previstos na norma, não poderia ter suas disposições exigidas sem esclarecimentos normativos adicionais, tratando-se de norma de eficácia limitada.
E há um aspecto legal que fulmina os dois supramencionados itens. Nenhum deles veio acompanhado de Estudo de Impacto Regulatório (EIA). Tal estudo está previsto na Lei 13.874/2019, a Lei de Liberdade Econômica, replicado no art. 6º, da Lei 13.848/2019:[2]
Art. 5º: As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico.
Não há dúvidas de que os itens referenciados na NR-22 são inovadores e, se mantidos, causarão impactos significativos em vários empreendimentos operacionais e já consolidados conforme regulamentação regulatória. Em razão disso, era fundamental que a restrição de direitos viesse acompanhada de Estudo de Impacto Regulatório, tal como determina a Lei de Liberdade Econômica.
Mas nada foi observado nesse sentido, visto que a última Análise de Impacto Regulatório sobre a NR 22 ocorreu no final de 2021, antes das Portarias MTE 806 e 4.219/2022, que alteraram pontualmente a norma[3]. Não há, portanto, Consultas Públicas[4], Audiências Públicas ou Relatório de Análise de Impacto Regulatório vinculados à nova redação da NR-22, evidenciando que o setor – fortemente impactado pelas alterações infralegais – sequer teve oportunidade participar da elaboração do texto.
Em vista de tais vícios, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) chegou a propor ação ordinária perante o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), a fim de que a vigência dos itens em destaque da NR 22 fosse ao menos postergada, mas optou por apresentar a desistência da demanda após ser estabelecido um canal de diálogo mais efetivo junto ao Ministério do Trabalho e Emprego, o que ocorreu antes da liminar ser analisada pelo juízo.
Logo, adiciona-se mais um componente legal para a necessidade de urgente revisitação do texto da NR 22, em especial no que se refere às limitações trazidas para as estruturas de disposição de rejeitos e estéreis, que parecem estar em completo descompasso com o que a legislação regulatória estabelece.
É esperado, portanto, que nos próximos meses as rodadas de conversa entre os diversos atores envolvidos (Comissão Tripartite Paritária Permanente do MTE, Ibram, Confederação Nacional da Indústria e outros) se intensifiquem, com o objetivo de atingir um consenso sobre a redação dos itens 22.24.3 e 22.24.14, que ainda estão passíveis de serem modificadas.
[1] Em 27/05/2024, foi publicada a Portaria MTE nº 836/2024, que adiou por 90 dias a entrada em vigor do item 22.24.3 e por 5 anos a exigibilidade do item 22.24.14.
[2] Art. 6º A adoção e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados serão, nos termos de regulamento, precedidas da realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR), que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo.
[3] Vide Relatórios de Impacto Regulatório disponibilizados pelo Ministério do Trabalho e Emprego, disponíveis no site do MTE: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/assuntos/analise-de-impacto-regulatorio-air/relatorios-de-air
[4] A última Tomada Pública de Subsídios realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego sobre a NR-22 ocorreu entre 30/12/2020 e 28/02/2021, não contando com a proposta de redação que foi publicada pela Portaria MTE nº 225/2024, conforme informações públicas disponíveis na plataforma Participa + Brasil: https://www.gov.br/participamaisbrasil/norma-regulamentadora-22