No último domingo (10), Javier Milei tomou posse como novo presidente da Argentina. Político que se classifica entre o anarcocapitalismo e o libertarismo, suas ideias se norteiam pela redução máxima do Estado e por políticas bastante conservadoras em relação aos costumes. Se elegeu prometendo dolarizar a economia, privatizar empresas e serviços públicos, até em áreas comumente consideradas essenciais, como educação, por exemplo, e liberar o porte de armas.
Sem dúvidas, Milei pode ser classificado como um político de extrema direita. Sua rápida ascensão ao cargo mais importante do país por um pequeno partido mostra uma disposição dos argentinos a uma mudança radical de rumos, o que tem se repetido em diversos países do mundo ao longo das últimas décadas. Este movimento também ocorre em democracias centrais, como a dos EUA, criando sinais de alerta aos cientistas políticos.
O que tem intrigado pesquisadores é o fato de que políticos como Milei, que defendem claramente pautas antidemocráticas, são escolhidos por procedimentos legítimos. Ou seja, a população apoia majoritariamente a defesa de posições autoritárias de seus líderes. Por esta ótica, a democracia parece ter deixado de ser um valor em si, em um processo que se alastra pelo globo, sendo colocada em risco em decisões populares. Essa postura não é trivial e suscita uma série de questionamentos a respeito da origem dessa desvalorização da democracia. Ainda que não tenhamos uma resposta definitiva, há algumas considerações que devem ser feitas diante do cenário atual.
Uma abordagem bastante tradicional sobre o funcionamento e resistência de regimes democráticos identifica as condições econômicas de um país como fator fundamental para entender a duração de uma democracia. Os níveis de renda, sua distribuição e seu crescimento são causas centrais na explicação canônica sobre transição de regimes. Até o início deste século, os dados mostravam que quando a renda de um país atingisse determinado nível, a democracia não regrediria mais. Este aumento na riqueza era acompanhado, senão por redução na desigualdade de sua distribuição, ao menos pelo enriquecimento das classes mais pobres.
A explicação, então, se pautava pela ideia de que o crescimento econômico resolveria uma parte importante das demandas populares e, assim, manteria o suporte ao funcionamento da democracia. Porém, esta situação já não é mais observada. A distribuição de renda vem piorando nos países centrais, notadamente nos EUA. O acordo de classes que prevaleceu ao longo do século 20 não parece mais ser capaz de remunerar os trabalhadores agora da mesma forma que o fez em meados do século passado. Neste sentido, as condições materiais da população se deterioram em termos relativos, o que faz com que novas pressões políticas surjam.
Ainda assim, essa explicação econômica conta apenas uma parte da história. Ao mesmo tempo em que ocorrem movimentações econômicas, as disposições a acordos políticos se diluíram. Termos como polarização e atos de hostilidade contra grupos minoritários passaram a ser presentes no ambiente político com muito mais frequência. Nunca foram tão populares as pesquisas acadêmicas sobre polarização afetiva, por exemplo, tão comum o fenômeno se tornou. Onde é possível medir, a distância ideológica dos cidadãos aumentou em períodos recentes. O “outro” – por vezes um imigrante ou alguém de outra etnia ou gênero – tornou-se menos tolerável. Não sabemos ainda explicar o motivo, mas sem dúvida, estas considerações mostram aumento na indisposição ao diálogo.
Vale dizer que tanto os aspectos econômicos quanto o radicalismo nas posições políticas não são exatamente novos. Fatos similares já se repetiram em outros momentos históricos. Atualmente, coincidiram sem que entendamos ainda estas causas, nem a sua importância efetiva para a deterioração democrática no mundo. Porém, há aspectos inéditos.
A primeira observação é a estagnação da renda dos mais pobres. Nos últimos 40 anos, tanto nos Estados Unidos como na Europa ela permaneceu em níveis estáveis, enquanto a economia crescia. Ela é acompanhada por um declínio da importância dos sindicatos para as negociações dos trabalhadores com seus empregadores e por uma queda da remuneração relativa do fator trabalho, apesar do seu aumento de produtividade, gerando uma estagnação ou até perda do poder de compra dos salários. Este ambiente torna mais difícil sustentar que as gerações mais novas acreditem na igualdade geracional. Há dúvidas sobre a crença na manutenção do progresso material contínuo.
A população mais jovem manifesta estar em situação econômica pior do que a de seus pais, por exemplo. A hostilidade política também parece ter se difundido em níveis altos e permanece assim por períodos extensos – e não só durante eleições. Talvez um efeito das redes sociais, o fato é que as tensões políticas comuns em momentos de disputa política não se distendem com facilidade após a definição do vencedor em uma eleição.
Cria-se um permanente estado de disputa e acirramento político que possivelmente influencie nas percepções sobre o regime democrático. E por fim, tudo isto é acompanhado por um forte desgaste dos partidos políticos como atores capazes de organizar as disputas políticas e os diferentes interesses da população. Partidos tradicionais atualmente obtêm parcela cada vez menor de votos e novas siglas ainda pequenas ganham apoio, por vezes ocupando os cargos mais importantes.
Estas considerações são gerais e tentam identificar denominadores comuns entre as diversas experiências de ascensão de líderes autoritários ao redor do mundo. As particularidades de cada país mudam um pouco a relevância de cada um destes apontamentos que ainda não foram sistematizados em uma compreensão clara a respeito do fenômeno. Por exemplo, ainda que de extrema direita, Milei não é a versão portenha de Jair Bolsonaro, que por sua vez não é a versão tupiniquim de Donald Trump. Os três são as versões locais de um retrocesso democrático global que ainda buscamos entender.
A resiliência democrática se torna, assim, um fenômeno também de interesse acadêmico diante das tentativas de rompimento em curso. O Brasil, por exemplo, resistiu apesar dos enormes riscos que correu. Como será a experiência no caso de futuras tentativas similares? E como exatamente deu conta das ameaças que sofreu? Os próximos quatro anos servirão para acompanharmos a experiência argentina e seus desdobramentos. Certamente, um caso importante que é preciso analisar para trazermos mais evidências a respeito do conceito mais importante da ciência política atual.