O governo do México declarou à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) que a ampla disponibilidade e o tráfico ilícito de armas de fogo criam “uma situação de emergência” compartilhada por vários países da região. E solicitou que o Tribunal se pronuncie sobre as atividades das empresas privadas de armamento e seus efeitos nos direitos humanos, em uma ação que poderia salvar “milhares de vidas por ano” no continente.
Assine a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas diariamente no seu email
O tema foi tratado em audiência no final de novembro do último ano, na sede da Corte, na Costa Rica, ocasião em que o Estado mexicano apresentou uma solicitação de opinião consultiva ao Tribunal sobre as responsabilidades e obrigações da indústria armamentista privada e dos Estados em relação a violações de direitos humanos.
Cerca de 200 mil armas são traficadas ilegalmente por ano ao México, afirmou a ministra das Relações Exteriores do país, Alicia Bárcena Ibarra.
“A região tem sofrido de maneira particular as consequências da violência armada. A proliferação de armas de fogo em mãos de civis só pode ser entendida em virtude de um tráfico transfronteiriço, sem regulação, e que tem consequências na segurança pública que se traduzem em violações do direito humano à vida e à integridade pessoal, entre outros. Há ampla evidência de como a disponibilidade de armas influencia no aumento da violência”, destacou.
A disponibilidade de armas adquiridas ilegalmente, reforçou a ministra, é muito maior e tem incidência direta na prática de crimes violentos.
“Empresas que fabricam e distribuem armas no continente fazem isso sem práticas que assegurem sua rastreabilidade ou que evitem de alguma forma o desvio a outros proprietários. Ignoram essa informação e se abstém de tomar medidas para prevenir que os produtos que fabricam e distribuem terminem nas mãos de grupos criminosos”, disse ela à Corte, em intervenção por vídeo.
A ministra ressaltou ainda o impacto da violência armada sobre grupos vulneráveis como mulheres, crianças, jovens e a população LGBTQIAP+.
“O Estado mexicano sustenta que essa realidade deve ser considerada pela Corte Interamericana para que, com um enfoque de universalidade e interseccionalidade, analise as lamentáveis consequências da violência armada no gozo dos direitos humanos nos Estados americanos. Estamos diante de uma situação de emergência compartilhada por vários países da região que deve ser atendida e enfocada no papel dos atores privados em potencializar as possíveis violações de direitos humanos”, afirmou Alicia Bárcena Ibarra. Ela requereu ainda uma posição do Tribunal sobre a responsabilidade das empresas privadas de armamento, o impacto dessa violência nos Estados e sua obrigação de regular essas atividades.
Também participaram da audiência representantes de outros Estados da região, além de integrantes de organismos internacionais, ONGs, instituições acadêmicas e organizações da sociedade civil.
O representante do Estado da Bolívia, Jaime Mauricio Quiroga Carvajal, afirmou que o país concorda com a preocupação do México pela situação de vulnerabilidade ocasionada pela violência com as armas de fogo e a responsabilidade das empresas privadas de armas “pelo risco de vulnerar, em especial, o direito à vida e à integridade pessoal”.
“O aumento do comércio ilícito de armas está afetando diretamente os direitos humanos. Não só o direito à vida e à integridade pessoal, mas também o gozo de direitos econômicos, sociais e culturais de populações em situação de vulnerabilidade”, afirmou à Corte.
O representante da Colômbia, Alejandro Botero Valencia, disse que o país é um dos com maior número de armas confiscadas na região. Segundo ele, das 18.338 armas apreendidas pela Polícia Nacional em 2021, cerca de 85% tinham sido fabricadas em outros países.
“O desvio e as transferências ilegais e não reguladas de armas têm consequências negativas para os direitos humanos, especialmente para países em situação de conflito. Essas atividades contribuem significativamente para a proliferação de armas de fogo, o que aumenta o risco de que sejam adquiridas por atores ilegais e que sejam utilizadas para cometer violações aos direitos humanos. A proliferação de armas de fogo desempenhou um papel significativo no aumento da violência, especialmente nos casos de homicídios. E sua presença costuma ser fundamental em atividades delitivas organizadas e contribuem na intensificação de conflitos armados e de atos de terrorismo”, afirmou.
Embate com os Estados Unidos
Representantes dos Estados Unidos, porém, discordaram que o tema deva ser discutido na Corte IDH, como solicitada pelo México. Assessora jurídica dos EUA, Sarah Hunter reconheceu “o potencial destruidor das armas” e que há muito trabalho ainda por fazer no combate aos efeitos nocivos das armas de fogo. Mas disse que os EUA têm empreendido “ações sem precedentes” para regular esse comércio e acusou o México de apresentar um caso controverso disfarçado de solicitação de opinião consultiva.
Segundo ela, os tratados vigentes não preveem que a Corte IDH penalize a conduta de atores privados, como a indústria armamentista. E afirmou que um Estado não pode utilizar uma solicitação de opinião consultiva ao Tribunal para obrigar a uma revisão de leis internas de outro. Os representantes dos EUA declararam que o Estado mexicano busca utilizar a Corte de maneira indevida “para se posicionar melhor em litígios nos Estados Unidos”.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por sua vez, considerou que os Estados devem apresentar medidas para prevenir ações indevidas da indústria armamentista e têm a obrigação de regular e fiscalizar com alto rigor as atividades dessas empresas.
Ainda segundo representantes da CIDH, os Estados precisam oferecer recursos efetivos para que as vítimas possam denunciar e obter justiça, além de eliminar as travas processuais que resultam em impunidade das empresas de armas.
Por parte da sociedade civil, Gerardo Álvarez, pesquisador da organização “México unido contra a delinquência”, afirmou que as armas de fogo são fator determinante para violência e insegurança no México. Ele citou estatísticas oficiais de 2022 que apontaram a ocorrência de 33.387 homicídios no país – o que representa uma taxa de 26 assassinatos a cada cem mil habitantes. Sete em cada dez homicídios, acrescentou, foram cometidos mediante disparo de arma de fogo.
“Em 2022, 65,5% das armas apreendidas no México vinham dos EUA. Em 18% dos casos, foi impossível determinar seu país de origem”, informou ele à Corte.
Até 2017, havia quase 17 milhões de armas de fogo em mãos de civis, disse o pesquisador.
O brasileiro Caio Martinez Petit de Oliveira, do Centro Universitário Antonio Eufrasio de Toledo, sobrinho de desaparecidos políticos e vítima indireta no caso Gomes Lund e outros Vs Brasil, também apoiou a demanda mexicana na audiência pública: “armas de fogo são instrumentos que por sua natureza têm a capacidade de atuar como objeto violador de Direitos humanos. Ao se tratar de armamentos, vale o princípio da cautela. É evidente que empresas armamentistas se beneficiam do caos. Basta analisar o atual paradigma global e o quanto empresas bélicas têm lucrado com as guerras, como em Israel e na Ucrânia”.
‘Efeitos jurídicos inegáveis’
Em intervenção no segundo dia de audiência, Maria Fernanda Berrú Torres, do Instituto Peruano de Direito Comparado, considerou “legítima” a solicitação de opinião consultiva do México e pediu a criação de mecanismos de proteção judicial a favor das vítimas. Ela afirmou que a proliferação de armas de fogo está ligada a um número “sem precedentes” de sequestros, assaltos e extorsões nos últimos anos no Peru.
“A ausência de um marco legal harmonizado em nível mundial permite enfoques heterogêneos por parte de empresas em diferentes regiões, o que dificulta uma coerência de esforços para atacar os desafios globais”, disse ela, acrescentando que há um enfoque de gênero no tráfico ilícito de armas, pois as consequências dessa atividade facilitam “a perpetração de abusos contra as mulheres”.
O desafio se repete em outros países da região, como o Equador, onde o pesquisador e professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica Efrén Guerrero Salgado disse que cifras atuais dão conta de 7.060 assassinatos até então em 2023, por violência do crime organizado e violência de gênero. Destes, 88% são por uso de armas de fogo.
Segundo ele, a opinião consultiva solicitada pelo Estado mexicano “tem efeitos jurídicos inegáveis” e deve ser tratada pela Corte a partir de uma abordagem regional, que vai além de uma questão bilateral México-EUA.
“Se não criarmos um elemento desta forma e a comunidade jurídica e este Tribunal não tiverem em conta esse papel, as opiniões consultivas acabarão virando elementos puramente anedóticos dentro do sistema internacional”, frisou.
O representante do Estado mexicano, Alejandro Celorio Alcántara, disse que, pela capacidade de provocar danos, ferir e matar, a comercialização de armas de fogo deveria ser cercada de mais cuidado e atenção reforçada para que as empresas privadas de armas possam avaliar os riscos e mitigá-los para evitar que os produtos vulnerem os direitos humanos das pessoas.
Ele ressaltou que a problemática apresentada pela ampla disponibilidade de armas de fogo e seu tráfico ilícito não é exclusiva do México e dos EUA, mas um fenômeno que afeta toda a região. Em 2017, citou, foram cometidos 173 mil homicídios em toda a América, sendo 130 mil deles por armas de fogo.
“A orientação proporcionada por essa Corte poderia salvar milhares de vidas por ano em nossa região”, disse.
Celorio Alcántara esclareceu que as duas demandas civis por negligência apresentadas pelo governo mexicano em cortes dos EUA contra fabricantes de armas daquele país foram mencionadas na audiência como referência, e que o México não busca manifestação da Corte sobre esses casos específicos.
“Pela relevância da presença de armas de fogo na região e pela urgência de abordar sua ampla disponibilidade e tráfico ilícito por diferentes ângulos é que o Estado do México recorre a esta Corte”, afirmou.
O representante mexicano disse que hoje há perseguição e criminalização do cliente final, por um lado, e reforço das obrigações dos Estados, por outro, para impedir que essas armas sejam traficadas a outros países.
“No entanto, é necessária a regulamentação do elo perdido: as empresas de armamento que exercem atividades comerciais de forma negligente”, afirmou.
Segundo o representante mexicano, a violência armada impacta não só meninas, meninos e populações vulneráveis como facilita o cometimento de outros delitos, como tráfico de drogas e tráfico de pessoas.
“As empresas privadas de armas conhecem o risco de que seus produtos sejam usados para vulnerar os direitos humanos e não fazem nada para preveni-lo nem evitar”, afirmou Alejandro Celorio Alcántara.
O juiz Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai) encerrou a sessão agradecendo a presença dos representantes dos Estados, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e das organizações da sociedade civil. Foi sua última audiência como presidente da Corte. Desde 1º de janeiro de 2024, a juíza Nancy Hernández López (Costa Rica) é a nova presidente do Tribunal e o juiz Rodrigo Mudrovitsch (Brasil), vice-presidente.