Os recentes episódios de contaminação por metanol em bebidas alcoólicas, com mortes confirmadas no Brasil, na Rússia, na Índia e no México (Revista Galileu, 2025), não devem ser lidos apenas como casos isolados ou meros acidentes.
Afinal, mais do que falsificação de produtos ou delitos de consumo, tais eventos revelam a vulnerabilidade das estruturas nacionais diante de problemas de escala global, fomentados pela atuação de grupos criminosos transnacionais, falhas regulatórias e dinâmicas econômicas absolutamente predatórias.
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Nesse contexto, a teoria garantista do professor Luigi Ferrajoli nos oferece uma chave interpretativa singular e que permite a compreensão dos recentes eventos envolvendo contaminações de pessoas por metanol não apenas como “fatalidades”, mas como o resultado de uma engrenagem estrutural, na qual a busca desenfreada e desregulada por lucro expõe toda a humanidade a riscos catastróficos que, por sua vez, podem ser mitigados a partir da adoção de um paradigma normativo global de garantias.
Embora ainda não seja possível afirmar com absoluta certeza a origem dos episódios recentes de contaminação por metanol, a Receita Federal, em nota divulgada em seu site oficial, afasta a ideia de contaminação fortuita, mencionando a existência de uma “criminosa adição de metanol em bebidas destiladas disponibilizadas a consumidores” (Receita Federal, 2025).
No Brasil, as investigações realizadas até a presente data, até onde se tem notícias, dão conta de que a substância pode ter sido importada por organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital (CNN Brasil, 2025), ou, ainda, resultado de processos clandestinos de destilação realizados por quadrilhas especializadas em falsificação de bebidas, hipóteses que muito bem evidenciam a dimensão estruturada e organizada do fenômeno.
Aliás, quem acredita que isso é um problema novo ou localizado se esquece das tragédias na República Tcheca em 2012, na Costa Rica em 2019, em diferentes regiões da Índia e, muito recentemente, no Laos, no final de 2024. Todas com dezenas de vítimas fatais. É evidente, portanto, o caráter estrutural e recorrente do problema, que não pode ser reduzido a desvios pontuais.
Todo esse cenário demonstra que a questão do metanol não pode ser reduzida a episódios isolados de falsificação ou a falhas eventuais de fiscalização. Ao contrário, trata-se de um fenômeno inserido em lógicas econômicas e criminosas que ultrapassam fronteiras nacionais, articulando-se em cadeias produtivas difusas e redes ilícitas de grande escala, capazes de reproduzir violações massivas de direitos fundamentais.
Essa dimensão estrutural e transnacional aproxima a adulteração com metanol da categoria dos “crimes de sistema”, teoria proposta pelo maestro Luigi Ferrajoli (2019). Nestes tipos de delitos, a indeterminação de autores e vítimas, somada ao caráter catastrófico dos resultados, denuncia a insuficiência da resposta penal tradicional e a necessidade de um olhar mais abrangente.
Os episódios de contaminação por metanol ajustam-se com clareza a essa moldura. São expressões típicas de um crime de sistema, pois não se reduzem à conduta dolosa de indivíduos isolados, mas decorrem de mercados clandestinos e redes transnacionais cuja lógica é guiada pela maximização de lucros, ainda que isso exponha a perigo uma quantidade imensurável de vidas humanas.
Os crimes de sistema são, portanto, o resultado concreto de um capitalismo anárquico, conceito utilizado por Ferrajoli para descrever uma economia global sem garantias normativas, em que o lucro prevalece sobre qualquer limite ético ou jurídico.
É nesse terreno fértil que surgem os poderes selvagens: atores econômicos e criminosos que operam sem freios institucionais, transnacionais por natureza e completamente alheios às fronteiras nacionais. Nesse contexto, a adulteração de bebidas com metanol é uma das faces visíveis desses poderes, expressão de uma lógica predatória em que bens vitais, como a saúde e a vida, são convertidos em variáveis descartáveis do mercado ilícito.
Não por outro motivo, a ausência de uma governança global efetiva torna as respostas nacionais pateticamente ineficazes. O tratamento local da questão, como temos visto, culmina na repetição de tragédias, com variações apenas de escala, mas sempre com o mesmo denominador comum: a vitória de poderes econômicos descontrolados sobre garantias jurídicas insuficientes.
É nesse contexto que a ideia de uma Constituição da Terra surge como horizonte normativo necessário.
Em “Por uma Constituição da Terra: a humanidade em uma encruzilhada” (2025), Ferrajoli diagnostica a assimetria estrutural que marca nosso tempo: enquanto os poderes econômicos e os mercados são globais, a política e o direito permanecem locais.
Todavia, ao contrário do que se pode imaginar em um primeiro momento, a proposta do autor não consiste em instaurar um Estado mundial, mas em instituir órgãos de garantia supranacionais, voltados à proteção de bens vitais comuns à humanidade.
Aplicada ao caso do metanol, essa proposta implicaria, por exemplo, a criação de normas internacionais vinculantes para disciplinar a produção, o comércio e a circulação de substâncias perigosas; o desenvolvimento de instituições globais de monitoramento, capazes de rastrear cadeias produtivas e atribuir responsabilidades a Estados, empresas e organizações criminosas; bem como o reconhecimento da segurança alimentar e sanitária como bem comum da humanidade, garantido por políticas de fiscalização e prevenção em escala supranacional.
Essa perspectiva desloca a resposta de um enfoque repressivo, centrado em responsabilizações individuais, para um modelo de garantias estruturais, apto a enfrentar fenômenos complexos que atravessam fronteiras.
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Em suma, as tragédias do metanol ilustram, de forma cruel e paradigmática, a tese de Ferrajoli: estamos vivendo sob a hegemonia de poderes selvagens e de um capitalismo anárquico. Este sintoma de uma grave doença expõe os limites do direito penal clássico, mas a obra do jurista italiano oferece mais do que um diagnóstico; ela nos dá um horizonte: uma Constituição da Terra.
Este é um chamado urgente. A escolha é nossa. Ou, enquanto sociedade global, insistimos em respostas nacionais fragmentadas, contando os corpos a cada nova tragédia, ou finalmente assumimos o projeto de construir instituições globais de garantia, capazes de proteger a vida como o bem supremo da humanidade.
CNN BRASIL. Metanol importado pelo PCC pode ter sido usado em bebidas, diz associação. CNN Brasil, 2025. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sudeste/sp/metanol-importado-pelo-pcc-pode-ter-sido-usado-em-bebidas-diz-associacao/>. Acesso em: 3 out. 2025.
FERRAJOLI, Luigi. I crimini di sistema e il futuro dell’ordine internazionale. Teoria Politica, v. 9, 2019.
FERRAJOLI, Luigi. Por uma constituição da terra: a humanidade em uma encruzilhada. 2. ed. São Paulo: Emais Editora, 2025.
O GLOBO. Mortes por metanol expõem falhas na fiscalização e contradições em relação à nota da Receita Federal. O Globo, 2025. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/mortes-por-metanol-expoem-falhas-na-fiscalizacao-e-contradicoes-em-relacao-a-nota-da-receita-federal.ghtml>. Acesso em: 3 out. 2025.
REVISTA GALILEU. Estes 3 países também registraram onda de mortes por metanol em 2025. Revista Galileu, 2025. Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/saude/noticia/2025/10/estes-3-paises-tambem-registraram-onda-de-mortes-por-metanol-em-2025.ghtml>. Acesso em: 3 out. 2025.
RECEITA FEDERAL. Nota de esclarecimento sobre a importação e comercialização de metanol. Brasília: Ministério da Fazenda, 2025. Disponível em: <https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2025/setembro/nota-de-esclarecimento-1>. Acesso em: 3 out. 2025.