Mercados digitais: proposta de regulação é baseada em consenso genuíno ou narrativa não comprovada?

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No Brasil, formou-se aparentemente um consenso em torno da necessidade de uma regulação concorrencial rigorosa dos mercados digitais, impulsionado pelo crescente número de casos de supostas condutas anticompetitivas por parte de “megacorporações globais”, como o caso Mercado Livre/Apple e Meta/Apple no Cade.

Entretanto, essa “urgente regulação” é, em grande parte, baseada em suposições teóricas especulativas ao invés de evidências práticas conclusivas sobre a sua necessidade. Os defensores argumentam que a regulação ex-ante é necessária para coibir comportamentos monopolistas e garantir a concorrência justa nos mercados digitais.

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No entanto, um exame mais detalhado revela que essa narrativa se baseia em alegações empíricas não comprovadas de falhas de mercado e danos aos consumidores. Ademais, em virtude do novo alinhamento geopolítico adotado pelos Estados Unidos sobre a proteção de suas empresas digitais, a adoção desse tipo regulação tende aumentar ainda mais a probabildiade de danos não previstos aos mercados brasileiros.

O governo proporá novas regras concorrenciais ex-ante para plataformas digitais neste ano. Esse novo projeto de lei será a principal conclusão da consulta pública realizada pelo Ministério da Fazenda. Como conclusão teórica, o ministério produziu o relatório sobre “Plataformas Digitais” lançado no final de 2024.

No mês passado, o governo brasileiro estabeleceu 25 prioridades legislativas na área econômica, incluindo a regulamentação das big techs, apresentada pelo ministro Fernando Haddad. Embora o Brasil precise melhorar seu ambiente de negócios – figurando em posições extremamente desfavoráveis em rankings internacionais –, a criação de mais regulações, especialmente em setores inovadores, pode ser contraproducente.

Estudos, incluindo um relatório da OCDE, apontam que regulações excessivas, e não condutas empresariais, são as principais barreiras à concorrência no país, sugerindo que uma ampla revisão regulatória seria mais benéfica para impulsionar a economia, reduzir entraves regulatórios e fomentar a inovação.

Há um consenso imaginário de que as empresas de tecnologia estão causando pesados danos aos consumidores dos mercados digitais. Esse consenso é apresentado, por exemplo, em um editorial do jornal Valor Econômico: “não resta dúvida de que há amplo abuso do poder de mercado por parte destas megacorporações globais, prova disso é o número cada vez maior de decisões judiciais desfavoráveis a elas em diferentes países”. O artigo prossegue afirmando que os acordos de exclusividade, a prática de self-preferencing e das killer acquistions são exemplos de novas condutas anticompetitivas que as regulações ex-ante pretendem impedir nos mercados digitais.

Tais alegações abrangentes são, no mínimo, prematuras, mas, muito provavelmente, erradas. Por exemplo, no contexto dos serviços de entrega de alimentos e da computação em nuvem, “tanto a teoria quanto as evidências colocam em dúvida a suposição padrão de que os ecossistemas de plataforma são necessariamente propensos a convergir para monopólios consolidados e, portanto, justificam a intervenção preventiva de órgãos reguladores da concorrência”.

Embora esteja além do escopo deste artigo analisar todos os diferentes aspectos das supostas condutas anticompetitivas nos mercados digitais, é inegável que essa ideia intrínseca de danos gerais aos consumidores está mais enraizada em um consenso imaginário do que real.

Lazar Radic explicou que esse consenso imaginário se trata de uma grande narrativa que carece de evidências conclusivas de que os mercados digitais sofrem de falhas de mercado capazes de serem remediadas por esses novos tipos de regulações. Inicialmente, sem um consenso sobre as falhas de mercado que as regulações ex-ante de mercados digitais foram projetadas para resolver, tais práticas apenas colocarão a carroça na frente dos bois, aumentando a probabilidade de danos regulatórios à economia, aos consumidores e à inovação.

O autor demonstrou que não há consenso sobre pelo menos três aspectos diferentes da regulação dos mercados digitais: (i) não há consenso de que os mercados digitais são anticompetitivos, (ii) não há consenso de que é necessário uma abordagem especial para os mercados digitais e (iii) não há consenso sobre qual deve ser a abordagem correta, se houver, para as regras de concorrência digital. Em conjunto, essa falta de evidência em todos esses três aspectos refuta o consenso imaginário de que os mercados digitais são um grande foco de condutas anticompetitivas.

Estudos recentes demostram que o DMA não aumentou efetivamente a contestabilidade. Assim, não há por que o Brasil necessita assumir uma posição de liderança internacional em uma regulação não testada empiricamente como o DMA. Seria prudente aguardar os resultados econômicos desse tipo de regulação antes de implementar medidas semelhantes.

Os resultados preliminares não mostraram benefícios significativos para os consumidores, como, ao analisar o impacto da proibição do DMA sobre o self-preferencing no que diz respeito à relação entre o Google Search e o Google Maps, conclui-se que: “[os] resultados sugerem que a remoção da vantagem de um clique do Google aumenta os custos de pesquisa para os usuários sem aumentar significativamente a descoberta ou a adoção de serviços de mapeamento alternativos no curto prazo”.

Igualmente, Carlos Ragazzo, professor da FGV Rio e ex-superintendente do Cade, alerta para a necessidade de uma abordagem cautelosa e baseada em evidências na regulação dos mercados digitais no Brasil. Em sua análise sobre o relatório do Ministério da Fazenda, ele defende que qualquer imposição regulatória deve ser precedida de uma avaliação rigorosa das falhas de mercado e de uma análise de custo-benefício para evitar impactos negativos sobre a concorrência, a inovação e o bem-estar do consumidor.

Além disso, questiona a necessidade de um regime separado para plataformas digitais, argumentando que a atual legislação antitruste brasileira já oferece ferramentas suficientes para lidar com esses desafios. Ele destaca os riscos de insegurança jurídica, desconfiança dos investidores e adoção de novas teorias de danos sem respaldo empírico. Por fim, alerta que as regulações digitais ex-ante adotadas na Europa e no Reino Unido ainda não demonstraram benefícios concretos e recomenda que o Brasil evite implementar regimes não testados que possam gerar custos desnecessários à economia digital.

Por fim, um novo aspecto, porém fundamental, que também deve ser levado em conta ao se avaliar a introdução de regulação dos mercados digitais são as novas tensões e consequências geopolíticas que esse tipo de intervenção pode gerar entre os EUA e o Brasil. Primeiramente, em 11 de fevereiro, o vice-presidente J.D. Vance declarou que os EUA não tolerarão que as empresas americanas sejam submetidas a excessivos encargos regulatórios impostos pelo DMA, pelo GDPR e pelo DSA.

Em 21 de fevereiro, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, emitiu o memorando “Defending American Companies and Innovators From Overseas Extortion and Unfair Fines and Penalties”, no qual o governo americano “considerará ações responsivas, como tarifas comericais, para combater os impostos sobre serviços digitais (DSTs), multas, práticas e políticas que os governos estrangeiros impõem sobre as empresas americanas”. O memorando cita explicitamente o DMA e o DSA promulgados pela União Europeia, bem como as regulações do Reino Unido, como medidas específicas que poderiam desencadear uma retaliação tarifária comercial se as empresas americanas forem multadas por essas legislações.

Em 23 de fevereiro, o congressista Jim Jordan, chairman do Comitê Judiciário, enviou uma carta à Teresa Ribera, chefe de concorrência da Comissão Europeia, expressando preocupações sobre a aplicação do DMA. A carta argumenta que o DMA visa injustamente as empresas americanas, ao mesmo tempo em que protege os concorrentes europeus, impõe regulamentações onerosas a empresas não europeias e pode levar a tensões comerciais e retaliações econômicas.

Também alega que o DMA sufoca a inovação, aumenta os custos para os consumidores e beneficia desproporcionalmente as empresas chinesas e europeias que não estão sujeitas às mesmas regras. O Comitê solicitou uma reunião com a Comissão Europeia para entender sobre a aplicação e as implicações do DMA sobre as empresas dos EUA. A carta foi interpretada pela comunidade antitruste internacional como pondo em xeque e trazendo incertezas sobre a efetividade na aplicação do DMA pela unidade da europeia do DG Comp.

Essa nova postura americana introduz repercussões geopolíticas significativas e não triviais que o Brasil deve considerar ao discutir a regulação ex-ante dos mercados digitais. Se o Brasil adotar regulações que espelhem a estrutura europeia, corre-se o risco de provocar retaliações econômicas e política por parte dos EUA.

Um alinhamento muito próximo aos modelos europeus poderia prejudicar as relações diplomáticas e econômicas do Brasil com os EUA, afetando o comércio, os investimentos e a colaboração tecnológica. Uma abordagem mais cautelosa e equilibrada sobre a regulação dos mercados digitais é ainda mais recomendável de acordo com as atuais necessidades econômicas domésticas e o arriscado cenário político internacional.

Portanto, não há evidências concretas que o DMA ou outras regulações resultaram em benefícios líquidos para os consumidores, uma vez que os dados preliminares indicam aumento dos custos de pesquisa, migração mínima para serviços concorrentes e impacto insignificante na contestabilidade dos mercados. O “consenso genuíno” sobre a necessidade dessas regulações continua especulativa, sem a comprovação empírica de falhas de mercado e resultados que justifiquem tal intervenção.

Diante do risco de inibir a inovação e gerar retaliações econômicas, o Brasil deve continuar monitorando o cenário global, aprimorando a aplicação de sua legislação antitruste e não se apressar em adotar estruturas regulatórias não testadas. Ao fazer isso, protege-se a vitalidade e a competitividade da economia digital e, ao mesmo tempo, evita-se as armadilhas de uma intervenção regulatória prematura.