Em 2024, as emissões de debêntures incentivadas no Brasil fizeram história. De acordo com a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), as empresas captaram R$ 135,1 bilhões por meio desses títulos no ano passado, um recorde e um aumento de 99,1% em relação ao ano de 2023.
O setor de energia elétrica foi líder disparado nas captações, representando 40,4% do volume total emitido em 2024, com destaques para projetos de energia solar e eólica. Em seguida, vêm os setores de transportes e logística (25,6%). No mercado secundário, as negociações das debêntures incentivadas também bateram recorde, com volume de R$ 278,6 bilhões, um disparo de 115,8% em relação a 2023.
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Esses papeis se tornaram um dos principais instrumentos de financiamento de infraestrutura no Brasil. Com a isenção de Imposto de Renda para investidores pessoa física, essas emissões permitiram que empresas captassem recursos diretamente no mercado de capitais para viabilizar projetos de grande porte. As debêntures são títulos de dívida, que funcionam como um empréstimo: a empresa que emite a debênture se compromete a pagar juros e devolver o valor investido em prazos previamente acordados. Há diferentes tipos de debêntures, como as simples, que não podem ser convertidas em ações, ao contrário das conversíveis, que oferecem essa possibilidade. As incentivadas, ao contrário das outras, garantem isenção de impostos para investidores pessoa física, tornando-se, com isso, mais atrativas do que outros ativos de renda fixa.
A lógica por trás das debêntures incentivadas é fomentar investimentos em áreas estratégicas para o desenvolvimento do país, como logística, telecomunicações, saneamento e infraestrutura energética. Segundo o Ministério de Minas e Energia, em nota de resposta a perguntas feitas pelo JOTA, essas emissões “têm contribuído para viabilizar projetos prioritários, especialmente no setor de energia elétrica e de biocombustíveis”. Para se qualificar como prioritária, a emissão, antes, deveria ganhar esse selo do Ministério da Fazenda, cumprindo critérios estabelecidos em portaria. No início do ano passado, a Lei 14.801/2024 reformulou as regras do setor e, além de trazer novas regras para debêntures incentivadas, que já existem desde 2011, criou um novo tipo de título, as debêntures de infraestrutura.
Antes da nova lei, os projetos que se beneficiavam das debêntures incentivadas precisavam obter aprovação prévia do governo federal para serem classificados como prioritários. A exigência significava um processo burocrático mais longo, mas a Lei 14.801/2024 eliminou essa exigência. Assim, agora, os emissores declaram diretamente seus projetos como prioritários, quando eles se encaixam nos setores elegíveis, que devem ser explicitados em portarias.
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Segundo Thiago Giantomassi, sócio da área de Fusões e Aquisições e Mercado de Capitais do Demarest Advogados, “no início, a ausência de exigência da aprovação ministerial gerou um efeito inverso – de maior prazo ou maior necessidade de confirmação dos passos pelo ministério”, com a nova realidade da lei. “Com o tempo, e a divulgação pelos ministérios de novas portarias e orientações sobre a nova dinâmica, o mercado passou a se acostumar com a ausência de uma aprovação ministerial prévia. De qualquer forma, a ausência desta aprovação não significa eliminar por completo a interação com o ministério, pois ainda é exigido o protocolo, no ministério, as informações relacionadas com a captação e o projeto a ser financiado”, diz Giantomassi.
Flop da infraestrutura
Outra grande mudança foi a criação das debêntures de infraestrutura, um novo modelo voltado para investidores institucionais, como fundos de pensão, que antes não eram beneficiados pela isenção fiscal. Enquanto as debêntures incentivadas oferecem isenção total de imposto de renda para pessoa física, as debêntures de infraestrutura concedem um benefício fiscal para as empresas emissoras, permitindo que deduzam 30% dos juros pagos da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
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Mesmo assim, o novo título não caiu no gosto das empresas: nenhuma debênture de infraestrutura foi emitida até agora. Um dos principais motivos foi a demora na regulamentação, que deixou pontos como a definição do conceito de juros em aberto. Só mais tarde a Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos indicou que o montante dos juros deve considerar todo o componente remuneratório das emissões – a soma da parte pré-fixada com a relacionada a índices de mercado. E apenas em novembro, a Receita Federal publicou a Instrução Normativa 2.235, esclarecendo que tanto o índice de correção de preços (como o IPCA) quanto a taxa de remuneração poderiam ser abatidos da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
As condições macroeconômicas, com juros altos que beneficiam os investidores mais conservadores, também não ajudaram. “Este instrumento, até o momento, não teve nenhuma oferta, pois o público-alvo são investidores institucionais que alocam em papeis indexados à inflação, principalmente fundos de pensão”, explica Lucas Dias, gestor de crédito privado da ARX Investimentos, que atualmente tem aproximadamente 21% do valor de mercado dos fundos de crédito privado alocado em debêntures incentivadas. “Como a remuneração das NTN-Bs [Nota do Tesouro Nacional, isto é, título emitido pelo governo e de risco menor] atualmente ultrapassa os 7% ao ano de juros reais, não há grande interesse desse público para alocação fora dos títulos públicos”.
Nasce uma estrela
Enquanto isso, as debêntures incentivadas viraram as queridinhas dos investidores – especialmente para o setor de energia, um setor regulado e, por consequência, de ativos interessantes por sua estabilidade. Segundo Dias, da ARX, além da isenção fiscal, as debêntures incentivadas atraem pois “são na maioria das vezes indexadas ao IPCA, trazendo proteção em um cenário de inflação mais alta”, uma preocupação no radar econômico atual. E a cereja do bolo com a isenção fiscal, pelas estimativas da ARX, adicionam mais de 2% ao ano no retorno dos títulos no cenário atual de inflação e juros.
Outro ponto que impulsionou as debêntures incentivadas foi a restrição a outros títulos de renda fixa, que poderiam competir pela atenção dos investidores. Em fevereiro do ano passado, o Conselho Monetário Nacional (CNM) alterou regras para títulos agrícolas e imobiliários, como Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI), Certificados de Recebíveis Agrícolas (CRA), Letra de Crédito Imobiliário (LCI), Letra de Crédito Agrícola e Letra Imobiliária Garantida (LIG), amplamente utilizados pelo mercado imobiliário e agrícola. E, antes da nova regulamentação, também utilizado pelo setor de energia, conforme explica Raphael Pereira Arantes Pires, do Candido Martins Advogados, “por falta de um instrumento mais específico, mais adequado”.
Segundo ele, havia uma discussão frequente se projetos de energia de fato tinham lastro para um CRI. Como os papéis desse tipo de operação são baseados em contratos de arrendamento ou de operação e usina, só era possível usar como lastro do CRI o que era de fato receita de arrendamento do terreno da usina. “Só que a maior parte da receita desses projetos dos operadores, na verdade, vem da operação e manutenção da usina. Então isso dificultava muito a estruturação de um CRI no setor de energia”, afirma. Assim, com a mudança da regulamentação, “quando veio a debênture incentivada com essa permissão, ela preencheu um vácuo no mercado”, diz Pires.
Dinheiro na rua
Captar crédito via debêntures incentivadas se tornou uma ferramenta de crescente importância para as empresas. Na Neoenergia, holding do grupo espanhol Iberdrola, por exemplo, esses títulos desempenham “papel fundamental no financiamento de projetos de infraestrutura”, diz o CFO Leonardo Gadelha. “Em 2024, o grupo captou aproximadamente R$ 12,8 bilhões, dos quais 73% foram obtidos via mercado de capitais, em um total de 15 emissões de debêntures”, diz. Por exemplo, um uma das emissões no ano passado, o grupo levantou mais de R$ 1 bilhão via debêntures incentivadas das distribuidoras Neoenergia Pernambuco, Elektro Redes, Neoenergia Brasília e a geradora Itapebi. O prazo dos papeis era de cinco anos, e a remuneração, paga semestralmente, era atrelada à variação do CDI (Certificado de Depósito Interbancário, o benchmarking de renda fixa) somada ao spread da emissão, que poderia chegar a 1,35%.
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A participação de empresas menores e cooperativas de energia nesse mercado, no entanto, ainda é limitada. Segundo João Pedro Correia Neves, vice-presidente do Conselho da Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD) e sócio-diretor e conselheiro da RZK Energia, o modelo é “acessível” a esse tipo de player, mas exige “um nível de sofisticação e relacionamento com os agentes do mercado que talvez dificulte um pouco”, diz. “Mas isso é normal, primeiro começa e depois evolui, esse gap é uma oportunidade de mercado para empreendedores. É a beleza de momentos de evoluções tecnológicas e aberturas de mercado como o que estamos vivendo no Brasil”.
Para o MME, em comunicado enviado como resposta a perguntas do JOTA, as debêntures, tanto incentivadas quanto de infraestrutura, são “complementares” em relação a outras fontes de financiamento. “Porque o BNDES oferece taxas de juros competitivas para projetos de grande porte, as debêntures, que atraem investidores institucionais e pessoas físicas, e as parcerias público-privadas (PPPs) são importantes para projetos que demandam participação direta do setor público. Essa combinação permite uma diversificação de fontes de recursos, reduzindo a dependência de um único mecanismo e ampliando as opções para os investidores”.
O que falta?
Enquanto as emissões de energia elétrica estão de vento em popa, outras ainda aguardam regulamentação, o que ainda traz incerteza para algumas debêntures incentivadas. Para o setor de mineração, por exemplo, o MME iniciou uma consulta pública para estabelecer critérios e condições complementares aos já previstos no Decreto 11.964/2024, que define os procedimentos para enquadramento e acompanhamento de projetos de investimento considerados prioritários nas áreas de infraestrutura ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação.
A minuta da norma proposta pelo MME especifica que serão considerados estratégicos, para fins de emissão dessas debêntures, minerais como cobalto, cobre, lítio, níquel e elementos de terras raras, alguns dos mais importantes para a transição energética. No entanto, essa lista é mais restrita em comparação à definida pela Resolução 2/2021 do Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos (CTAPME).
Além disso, a proposta prevê que projetos de transformação mineral, pertencentes a sociedades de propósito específico ou concessionárias de lavra, que resultem na produção de substâncias em grau bateria ou com pureza adequada para a produção de ímãs para motores elétricos, serão elegíveis para a emissão das debêntures. As despesas relacionadas à fase de lavra e desenvolvimento da mina poderão ser consideradas parte dos projetos de investimento, desde que não excedam 49% do valor captado por meio da emissão das debêntures.
Outro setor particularmente promissor e que ainda aguarda regulamentação, segundo Thiago Giantomassi, do Demarest Advogados, é o de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I). A Portaria 4.382/2021 do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) estabelece procedimentos e requisitos para a aprovação de projetos de investimento como prioritários na área de produção econômica intensiva em PD&I. Contudo, para o setor de PD&I, a regulamentação atual pressupõe a emissão de uma portaria conjunta entre o MCTI e o Ministério da Fazenda, conforme estabelecido no novo decreto – o que ainda não aconteceu.
“Ainda tem espaço para mais clareza, sempre tem espaço para a lei ser melhor regulamentada”, defende Ricardo Prado, sócio das práticas de Mercado de Capitais e Bancário, Operações e Serviços Financeiros do Lefosse. Com a dispersão de informações em portarias e instruções normativas complementares, empresas e investidores podem ter dificuldade para localizar e interpretar todas as normas aplicáveis, o que pode resultar em conformidade inadequada ou na perda de benefícios devido ao desconhecimento ou à interpretação equivocada das regras.
Como fazer?
A onda das debêntures incentivadas deve ganhar ainda mais força com a necessidade de diversificação de matriz energética e o fôlego para projetos que impulsionem a transição verde. “O que eu tenho ouvido dos clientes do setor de energia é que eles vão fazer muita captação de recursos por meio da emissão de debêntures em 2025. Ou seja, este mercado continuará aquecido”, diz Maria Beatriz Grella Vieira, sócia da área de Energia do Demarest. “Há muitos projetos para a geração de energia, mas também recursos a serem destinados para a transmissão, a distribuição e novas tecnologias.”
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Para empresas de energia que planejam fazer uma emissão de debêntures incentivadas, há uma série de fatores relevantes e que devem ser bem estabelecidos, diz Prado, do Lefosse. “É necessário ter um business plan muito bem feito, com a necessidade de capex muito bem determinada, assim como o prazo do projeto”, tudo com uma documentação robusta, pois, dessa forma, é possível usá-la mais vezes, de forma mais ágil, para emissões futuras.
Outros pontos de atenção incluem escolher bancos parceiros próximos, que auxiliem a entender o timing do mercado, assim como advogados que ajudem a estruturar o processo de acordo com as melhores práticas junto a autoridades, diz Prado. “E, para emissões que dependem de garantias temporárias, para depois realmente ligar com uma garantia real, ter uma estrutura muito bem amarrada para dar segurança não apenas para a companhia, como para o mercado”.