O presente artigo analisa o papel da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) como agente viabilizador de meios alternativos de solução de controvérsias para os titulares do serviço de saneamento básico, agências reguladoras ou prestadores de serviços públicos de saneamento básico, previsão que consta no art. 4º-A, caput, §1º e §5º, da Lei 9.984, de 17 de julho de 2000, alterada pela Lei 14.026, de 15 de julho de 2020.
Nesse sentido, a previsão legal determina que a ANA disponibilizará, em caráter voluntário e com sujeição à concordância entre as partes, de ação mediadora ou arbitral para a resolução dos conflitos entre os titulares, as agências reguladoras ou os prestadores de serviços públicos de saneamento básico, quando as controvérsias envolvam a interpretação e a aplicação das normas de referência da ANA sobre o saneamento básico.
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A atuação da ANA, enquanto reguladora nacional, se dá por meio de instrumentos de soft regulation ou regulação por indução, através das normas de referência e adquire uma relevância particular, uma vez que, na interface com os entes subnacionais, titulares dos serviços públicos de saneamento, a ANA detém a missão institucional de propor guidelines/melhores práticasde atuação regulatória, apoiando o titular do serviço, as agências reguladoras e garantindo segurança jurídica aos prestadores de serviços.
O contexto brasileiro é marcado por elevada complexidade institucional: com mais de 5.000 municípios titulares dos serviços, o país apresenta um mosaico institucional e federativo marcado por forte fragmentação regulatória. Essa fragmentação compromete a padronização regulatória e fatalmente resultará em disputas frequentes sobre a interpretação das normas de referência incorporadas aos contratos de prestação de serviços.
É importante destacar que nos últimos cinco anos há um aumento significativo da participação privada no setor de saneamento básico e esses contratos de parcerias – na acepção da Lei 13.334/2016, que institui o PPI – se destacam por sua longa duração, incompletude, complexidade técnica e sua natureza essencialmente relacional. Tais contratos são classificados como contratos relacionais, pois envolvem relações jurídicas dinâmicas, marcadas por adaptações sucessivas e aprendizado mútuo ao longo do tempo de sua execução.
Segundo Ian Macneil, precursor da teoria dos contratos relacionais, tais instrumentos contratuais não podem ser compreendidos apenas pelo exame de suas cláusulas formais, mas sim pelas práticas e expectativas de cooperação entre as partes envolvidas. O professor Fernando Araújo, na esteira desse pensamento, tem destacado que os contratos administrativos de longo prazo requerem elevada flexibilidade para enfrentar contingências não previstas no momento da contratação (Araújo, 2008, p. 206).
Além disso, esses contratos são inevitavelmente incompletos, devido aos limites cognitivos dos agentes públicos e privados na previsão de todas as variáveis futuras, como choques econômicos, mudanças tecnológicas ou alterações legislativas. A incompletude contratual, nesse sentido, não constitui falha, mas sim um traço intrínseco de contratos complexos e duradouros.
Diante dessas características inerentes aos contratos de parcerias, torna-se fundamental que a Administração Pública disponha de instrumentos adequados para gerir conflitos e ajustar o contrato às novas realidades. Nesse sentido, os meios alternativos de solução de controvérsias, como é o caso da mediação e do arbitramento desempenham um papel estratégico nesse desenho regulatório.
A mediação, disciplinada pela Lei 13.140/2015, possibilita que o Poder Público participe de soluções consensuais, respeitados os limites do interesse público. O Código de Processo Civil de 2015 também estimula a utilização desses mecanismos (art. 3º, §§ 2º e 3º). Tais práticas permitem respostas mais ágeis, menos onerosas e mais adaptadas à realidade dos contratos de longo prazo.
Robert Cooter e Thomas Ulen (2010, p. 245) sustentam que a mediação tende a produzir maior eficiência econômica por incentivar soluções voluntárias e mutuamente vantajosas. Da mesma forma, Ada Pellegrini Grinover defende que a mediação pública promove uma justiça colaborativa, capaz de legitimar as decisões e de reduzir a litigiosidade (Grinover, 2015, p. 656).
O arbitramento, por sua vez, tem por objetivo promover segurança jurídica entre as partes com celeridade e baixos custos financeiros, já que a decisão administrativa definindo a correta interpretação sobre a norma de referência da ANA pacifica o conflito na esfera administrativa. Nesse sentido, o arbitramento reforça a atuação estatal voltada à estabilidade contratual e à continuidade dos serviços. Como destaca Hans-Bernd Schäfer, contratos regulados requerem mecanismos institucionais que reduzam o oportunismo e promovam a confiança mútua (Schäfer; Ott, 2005, p. 370) – papel que a ação arbitral dispõe-se a cumprir.
Para tratar desses dois instrumentos e de outros litígios regulatórios que surjam na atuação da agência reguladora, a Procuradoria Federal Junto à ANA irá propor a criação de uma Câmara de Solução Alternativa de Controvérsias, que terá por objetivo prover um espaço seguro e tecnicamente qualificado para o tratamento consensual de disputas.
A experiência exitosa de outras agências, como é o caso da ANTT (solução mediadora) e da Anatel (arbitramento), para citar dois importantes exemplos de agências reguladoras, bem como a câmara da Previc e a Secex-Consenso, além de tantas outras boas experiências práticas já em funcionamento no âmbito da Procuradoria-Geral Federal, demostra os benefícios da abordagem colaborativa no âmbito regulatório.
A necessidade dessa iniciativa se acentua diante do novo ciclo de investimentos em saneamento básico decorrentes dos leilões realizados nos últimos quatro anos e daqueles esperados para 2025, com pelo menos 26 leilões previstos para ocorrer em diversas regiões do país. Esses projetos têm o potencial de atrair mais de R$ 70 bilhões em investimentos privados e beneficiar mais de 26 milhões de brasileiros em 849 municípios.
Entre os leilões mais relevantes destacam-se: (i) o do estado do Pará, realizado em 11 de abril, abrangendo 126 municípios e investimentos estimados em R$ 18,8 bilhões; (ii) o de Pernambuco, previsto para o terceiro trimestre, com expectativa de R$ 18,9 bilhões em investimentos; (iii) o de Rondônia, também para o terceiro trimestre, com R$ 5,8 bilhões estimados; e (iv) o da Paraíba, uma PPP voltada à prestação de serviços de esgotamento sanitário, com R$ 5,7 bilhões em aportes previstos.
Esse novo cenário evidencia a urgência de fortalecer estruturas institucionais capazes de promover segurança jurídica, padronização regulatória e resolução eficiente de controvérsias. Em setores regulados e institucionalmente complexos como o do saneamento básico, é imperativo que a atuação pública transcenda a rigidez normativa e adote instrumentos flexíveis, técnicos e colaborativos.
A atuação da ANA como entidade responsável pela emissão de normas de referência e, naturalmente, por estabelecer um padrão regulatório nacional, assume papel estratégico, especialmente ao disponibilizar aos atores do setor de saneamento básico mecanismos alternativos e céleres para tratamento de disputas complexas.
Nesse sentido, a criação de uma Câmara de Solução Alternativa de Controvérsias da ANA insere-se nesse novo paradigma, não como uma exceção, mas como uma concretização das melhores práticas regulatórias contemporâneas. Ao reconhecer a relevância dos meios alternativos de resolução de litígios e ao institucionalizá-los em sua estrutura decisória, a ANA se posiciona como uma agência reguladora moderna, capaz de equilibrar segurança jurídica, eficiência e interesse público.
ARAÚJO, Fernando. Teoria Econômica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2008.
Lei 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação como meio de solução de conflitos.
Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem.
Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito e Economia. São Paulo: Atlas, 2010.
GRINOVER, Ada Pellegrini. ‘Métodos Alternativos de Solução de Conflitos: Fundamentos da Justiça Conciliativa’. In: LAGRASTA NETO, Caetano; SIMÃO, José Fernando (Coord.). Dicionário de Direito de Família. São Paulo: Atlas, 2015.
SCHÄFER, Hans-Bernd; OTT, Claus. The Economic Analysis of Civil Law. Cheltenham: Edward Elgar, 2005.
MACNEIL, Ian. The many future of contracts. South California Law Review, vol. 47, p. 691-816, 1973- 1974, p. 720.