É chocante constatar que ainda vivenciamos uma disparidade tributária entre pais e mães durante a licença parental.
Graças ao julgamento em Repercussão Geral do Tema 72 pelo STF, as empresas puderam deixaram de recolher contribuições previdenciárias sobre os valores pagos às mães nos 120 dias de salário-maternidade – e posteriormente sobre os 60 dias adicionais da prorrogação facultativa garantida pelo Programa Empresa Cidadã, pela correta interpretação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) no Parecer SEI 1782/2023/ME.
Conheça o JOTA PRO Trabalhista, solução corporativa que antecipa as movimentações trabalhistas no Judiciário, Legislativo e Executivo
Contudo, ainda há controvérsia acerca da aplicação do entendimento firmado pelo STF com relação aos pagamentos a título de licença paternidade: 5 dias (ou 20 dias nos casos em que o empregador tiver aderido ao Programa Empresa Cidadã).
Atualmente, os contribuintes buscam no Judiciário a aplicação do entendimento fixado pelo STF no Tema 72, mas muitas decisões continuam validando a incidência das contribuições sobre os valores pagos a título de “licença paternidade”. Logo, no cenário atual, ainda há incidência de contribuições previdenciárias sobre a licença paternidade de 5 ou 20 dias, diferentemente do que ocorre nos casos de salário-maternidade.
Tal disparidade, contudo, carece de fundamento jurídico, e afronta princípios constitucionais como a isonomia e a proteção à família, gerando situação de incoerência jurídica, afinal, nos dois casos – maternidade e paternidade –, os pagamentos realizados durante o afastamento não detém natureza salarial, justamente por serem pagos durante o período de afastamento do empregado de suas atividades laborais.
Trata-se, portanto, de verba paga sem a correspondente prestação de trabalho, visando amparar o novo pai ou mãe nos cuidados com o recém-nascido. Por que, então, tributá-la diferentemente para o homem e para a mulher?
É bom relembrar que no julgamento do RE 576.967/PR (Tema 72/RG), o STF firmou um importante precedente ao declarar inconstitucional a cobrança de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade. O voto vencedor, de lavra do ministro Luís Roberto Barroso, enfatizou que o salário-maternidade possui nítido caráter não salarial, destinado a proteger a maternidade, não se tratando de contraprestação por serviço realizado pela empregada.
Afinal, durante a licença, a trabalhadora está afastada de suas funções, de modo que os valores recebidos nesse período não remuneram trabalho algum – trata-se apenas de um benefício assegurado em lei:
“Em outras palavras, o salário-maternidade não configura contraprestação por serviços prestados pela empregada no período de licença-maternidade e o simples fato de que a mulher continua a constar formalmente na folha de salários decorre da manutenção do vínculo trabalhista e não impõe natureza salarial ao benefício por ela recebido”.
Outro ponto crucial do voto foi a análise da base de cálculo constitucional das contribuições, a saber:
“Assim, por não se tratar de contraprestação pelo trabalho ou de retribuição paga diretamente pelo empregador ao empregado em razão do contrato de trabalho, não se adéqua ao conceito de folha de salários, e, por consequência, não compõe a base de cálculo da contribuição social a cargo do empregador, uma vez que a prestação não está inserida nas materialidades econômicas expostas no art. 195, I, a, da Constituição da República. Faz-se necessário, ainda, com base na referida tese fixada no RE 565.160, afirmar que não configura ganhos habituais da empregada, uma vez que há limitações biológicas para que a mulher engravide e usufrua de licença-maternidade com habitualidade”. g.n.
Nota-se que o STF interpretou que, durante o julgamento da natureza jurídica do salário-maternidade, a expressão “folha de salários” abrangeria apenas ganhos habituais do empregado que sejam efetiva retribuição pelos serviços prestados.
Nesse contexto, segundo o que restou decidido no referido julgado, não seria permitida a inclusão do salário-maternidade na base de cálculo previdenciária, já que isso seria equivalente à criação de uma nova fonte de custeio da seguridade não prevista na Constituição.
Assim, a verba – que é paga em razão de um dos eventos cobertos pela Previdência Social e sem trabalho em contrapartida – escapa à materialidade tributável delineada no art. 195, I, “a”, da Constituição. De tal forma, a inclusão do salário-maternidade na base da contribuição implicaria em inovação não contemplada originalmente na Constituição, que, além de ferir o conceito de folha de salários, ignora a exigência do art. 195, §4º, da CF, que demanda a edição de lei complementar para instituição de novas fontes de custeio da seguridade social.
Em razão de todos estes pontos, a cobrança de contribuições previdenciárias sobre o salário-maternidade foi declarada formalmente inconstitucional.
Pois bem. Se essas premissas estão hoje consolidadas em favor das mães, por qual razão a licença paternidade deveria receber tratamento tributário diverso?
Não há habitualidade, tampouco prestação de trabalho a justificar tratar a licença paternidade como remuneração. Pelo contrário, são verbas de caráter assistencial/previdenciário, vinculadas a um risco social coberto pela seguridade.
A extensão lógica do precedente do STF aponta para uma conclusão quase que inevitável, no sentido de que a verba paga durante a licença paternidade (inclusive sua eventual prorrogação de 15 dias pelo Programa Empresa Cidadã) também não deveria sofrer incidência de contribuições previdenciárias, já que a situação fática é essencialmente análoga à da licença-maternidade: o pai permanece alguns dias afastado para cuidar do filho recém-nascido, sem prestar serviços nesse período e, obviamente, sem auferir ganhos de natureza remuneratória habitual – pelo contrário, trata-se de um evento isolado, de curtíssima duração, concedido em razão de um fato da vida pessoal/familiar.
Não há contraprestação devida pelo empregado nesses dias de afastamento do trabalho, de modo que o pagamento efetuado pelo empregador possui natureza social de apoio à paternidade, com intuito familiar.
Nitidamente não se trata de salário pago em contraprestação ao trabalho. Nota-se que, assim como no caso das mães, falta à licença paternidade o elemento central que caracteriza o salário: a correspondência a um serviço prestado de forma habitual.
Portanto, do ponto de vista constitucional, a tributação da licença paternidade enfrenta essencialmente os mesmos óbices identificados pelo STF em relação à licença-maternidade: a limitação do conceito de folha de salários (art. 195, I, “a”, CF) – a licença paternidade não é remuneração por trabalho, e sim benefício de caráter eventual concedido em razão da paternidade, de forma que permitir essa incidência tributária implicaria legitimar uma nova base de cálculo não prevista explicitamente na Constituição Federal.
Vale lembrar que a própria Constituição Federal, no art. 7º, inc. XIX, assegura o direito à licença paternidade, atribuindo-lhe status de direito social, equiparando o direito dos pais ao das mães (maternidade, inc. XVIII). Não há, no texto constitucional, nada que sugira que a licença do pai deva receber tratamento menos protetivo. Ao contrário, a igualdade de gênero e o dever de proteção à família (arts. 5º, I; 226, §5º, CF) reforçam que pai e mãe são corresponsáveis pelo cuidado com os filhos, merecendo ambos o amparo do Estado para exercer a parentalidade.
Assim, manter tributação apenas sobre a verba paga ao pai (e não sobre a paga à mãe) fere o princípio da isonomia de maneira flagrante. Se a razão da dispensa de contribuição para as mães é a natureza não salarial do benefício, aos pais deve ser estendida exatamente a mesma lógica, pois a natureza jurídica do pagamento de sua licença é igualmente desvinculada de trabalho ou produtividade.
Ademais, num país que busca incentivar a participação dos pais na criação dos filhos e a divisão equilibrada das responsabilidades familiares, tributar o curtíssimo período de licença do pai envia um péssimo sinal à sociedade. Na prática, significa onerar a parentalidade masculina em comparação à feminina, como se o cuidado paterno fosse menos merecedor de proteção.
Essa diferenciação não se coaduna com a diretriz constitucional de especial proteção à família, à maternidade e à infância (art. 6º, caput, CF) – proteção esta que deve ser entendida de forma abrangente, incluindo o papel do pai no início da vida do filho.
A parentalidade é um valor a ser resguardado independentemente do gênero do cuidador. Logo, sob todos os enfoques – falta de habitualidade e de contraprestação, interpretação constitucional da base de cálculo e princípios de igualdade e proteção familiar – a conclusão jurídica aponta também para a não-incidência de contribuições sobre a licença paternidade (inclusive em sua forma estendida).
É importante, portanto, que haja equiparação, no plano fiscal-previdenciário, de situações que são iguais no plano material e constitucional, com revisão jurisprudencial unificando o tratamento de ambas as licenças no tocante às contribuições sociais, em respeito aos princípios de igualdade e com a própria ratio decidendi já adotada no caso do salário-maternidade pelo STF ao julgar o Tema 72.
Afinal, não há mais espaço, num ordenamento comprometido com a igualdade, para subsistir uma diferença tributária fundada exclusivamente no gênero do beneficiário da licença parental. Mães e pais devem ser parceiros na criação dos filhos, e o Direito do Trabalho e da Seguridade Social deve apoiar ambos de forma equivalente. Se o salário-maternidade não é salário (para fins tributários), a licença paternidade também não o é. Insistir no contrário é perpetuar uma anomalia jurídica que contraria a letra e o espírito da Constituição de 1988.
Fica o chamamento, portanto, aos tribunais e especialmente ao Supremo Tribunal Federal para reafirmar que o benefício pago aos pais não pode receber tratamento tributário diferenciado, sepultando de vez essa injustificável diferenciação fiscal, em prol de um sistema mais coerente, justo e verdadeiramente protetor da parentalidade.