Marco temporal, segurança jurídica e desenvolvimento

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Uma recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) trouxe inquietude para o agronegócio brasileiro e, indiretamente, para o ambiente de negócios em nosso país e para a sociedade brasileira como um todo – ou ao menos parte dela. No julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365 (Tema 1.031 da Repercussão Geral), a Corte Constitucional entendeu que o direito dos povos originários sobre as terras que ocupam ou tradicionalmente ocuparam independe da existência de um marco temporal.

Em breves linhas, a tese do marco temporal defende que os povos originários tenham direito à demarcação apenas das terras por eles ocupadas na data de promulgação da Constituição vigente, isto é, em 5 de outubro de 1988. Seria, assim, um critério objetivo para demarcação de terras no Brasil, em oposição à teoria do Indigenato, que prega ser o direito dos povos originários às terras ocupadas anterior à criação do Estado brasileiro, de forma que não poderia haver uma “data de corte” específica para fins de definição do que seria ou não uma terra passível de demarcação, independentemente de sua ocupação.

No caso concreto, o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina provocou a Corte Constitucional contra decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que havia determinado a reintegração de posse de área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), declarada como tradicionalmente de ocupação de povo originário pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). O STF entendeu, por maioria de votos, ser inconstitucional a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, rejeitando a data de promulgação da Constituição Federal vigente como critério para, conforme ocupação de áreas por povos originários, ocorrer a possibilidade de demarcação de terras. Nesse julgamento na Corte Constitucional, portanto, prevaleceu a teoria do Indigenato.

Inobstante qualquer juízo de valor sobre o mérito, é fato que essa decisão tem potencial explosivo para o setor do agronegócio, na medida em que poderá privar milhares de produtores rurais de suas terras produtivas, ainda que a ocupação da área tenha se dado de forma legítima e pacífica ao longo do tempo e que alguns direitos também constitucionais possam vir a ser conflitados, como, por exemplo, o direito de propriedade insculpido no artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal de 1988. Num caso específico de conflito de princípios e direitos, prevaleceu o interesse dos povos originários.

Sobre a decisão do STF, há algumas observações que, muito embora não tenham a pretensão de esgotar o debate sobre o tema (muito longe disso) ou visem contestar o entendimento dos ministros sobre a questão, necessariamente devem ser feitas. O julgamento está dado e, salvo uma reviravolta altamente improvável de mudanças de votos, não ocorrerá qualquer alteração de entendimento sobre o tema; isso, contudo, não impede uma análise sobre as potenciais consequências dessa decisão que, além de polêmica, mexe com as estruturas do Estado democrático de Direito. Há alguns pontos para análise.

Primeiro: a decisão cria um atrito entre Poderes, já que Judiciário, representado pelo STF, e Legislativo, na figura da Câmara dos Deputados e do Senado, entraram em rota de colisão por questões alheias aos interesses do país. O primeiro Poder tem a prerrogativa constitucional de interpretar a Carta Magna, ao passo que o Parlamento deve legislar sobre os temas que afetam a sociedade. No caso, o STF, na lacuna de uma definição pelo Parlamento acerca do tema, decidiu sobre a inconstitucionalidade do marco temporal, possivelmente adentrando a seara legislativa sobre a questão. O Senado, em reação, aprovou o PL 2903/2023, que deverá ser vetado pela Presidência da República. Um jogo de forças entre atores institucionais em que vácuo e excessos geraram uma situação de desconforto e insegurança.

Segundo: o resultado do julgamento gera um jogo de soma zero. Nem ganham os proprietários de imóveis rurais, potenciais “vitoriosos” no cenário da utilização do marco temporal, pois conviverão daqui em diante com enorme insegurança jurídica em relação às suas propriedades; nem ganham os povos originários, posto que mais terra não é garantia alguma de progresso, desenvolvimento ou reparação histórica (14% do território brasileiro, ou 118 milhões de hectares, já pertencem a 500 mil brasileiros descentes de povos originários, e essa vastidão de áreas nunca resultou em melhoria de vida efetiva para esses povos); nem ganha o povo brasileiro, que deverá arcar com indenizações prévias na casa dos bilhões, até trilhões, de reais pelas benfeitorias e pela terra nua dos proprietários de imóveis rurais alijados de suas áreas ocupadas de boa-fé, conforme definido pelo STF na formulação da tese.

Quem vai pagar essa gigantesca conta? Eu, você, todos nós, possivelmente com precatórios com prazos de pagamento a perder de vista. Se é que essa conta é passível de pagamento.

Terceiro: essa decisão submete um Poder – o Judiciário – à agenda partidária e ideológica de outro Poder – o Executivo –, sendo que estes deveriam ser independentes e harmônicos entre si, nos termos do artigo 2º da Constituição Federal. Há quem alegue que a ação julgada pelo STF foi proposta em 2019, o que é verdade, mas o timing do desengavetamento é bastante preciso com a agenda da Presidência da República. Não existem coincidências na política, e em Brasília, tudo e todos respiram política 24 horas por dia.

Quarto: o entendimento da Corte Constitucional desincentiva o investimento no campo, seja por brasileiros, seja por estrangeiros, em um momento em que novos entrantes – tais como os atores dos mercados financeiro e de capitais – começaram a olhar com mais atenção e carinho para o agronegócio e suas nuances. Essa insegurança jurídica criada em relação ao uso da terra e a relativização do direito constitucional de propriedade são apenas mais um dos elementos que afastam capital produtivo do nosso país, o que geraria desenvolvimento, criação de empregos e maior renda para a população. Essa decisão pode, inclusive, gerar demissões e desinvestimentos.

Quinto: o resultado do julgamento enfraquece sobremaneira um dos principais players da economia brasileira, que é o produtor rural, seja ele micro, pequeno, médio ou grande. Não é difícil perceber que a insegurança jurídica joga contra um dos principais e mais importantes segmentos da economia nacional, que nos orgulha mundialmente e nos faz sermos respeitados. Competimos com o mundo com máquinas e tecnologia de ponta? Salvo raras exceções, não. O que nos dá soft power no mundo e perspectiva de crescimento é a produção do campo, e jogar contra nossa galinha dos ovos de ouro é um tanto quanto peculiar. Afinal de contas, queremos crescer e nos desenvolver naquilo que somos bons ou preferimos atiçar conflitos desnecessários que não levam ninguém a lugar algum?

Por fim, sexto: a decisão em análise gera, conforme já mencionado, enorme insegurança, porém não apenas jurídica, mas também social, vez que prejudica o desenvolvimento econômico e favorece a ocorrência de embates por vezes violentos entre cidadãos brasileiros, como já observado em algumas regiões do país. Não há por que fomentar esses litígios, tampouco dar esperança de dias melhores com base em falácias. Os Poderes, especialmente o Judiciário, que dá a palavra final nas discussões em um Estado democrático de Direito, tem enorme responsabilidade em suas decisões, cujas consequências afetam gerações.

Como escrito acima, esse artigo não tem por objetivo esgotar o tema, tampouco ser a voz da razão. É, como se diz, um artigo de opinião, e há ótimos argumentos do lado dos defensores da não utilização do marco temporal. O que se busca aqui é apenas refletir sobre as consequências da decisão tomada. Se queremos uma democracia viva, um país próspero e uma sociedade justa e harmoniosa, precisamos pensar sobre as questões realmente relevantes do país. As futuras gerações, nossos filhos, netos e bisnetos, agradecem.