Marco do Transporte Público Coletivo é central para mobilidade sustentável no Brasil

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Mais da metade dos municípios brasileiros enfrenta dificuldades para subsidiar o transporte público local, segundo pesquisa da Confederação Nacional de Municípios (CNM). Com isso, há mais de 28 milhões de habitantes que correm o risco de ver o serviço interrompido a qualquer momento. Além disso, o sistema, ao invés de se expandir, está encolhendo.

Com isso, como alerta o técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Carlos Henrique Carvalho, “o sistema de transporte público está passando por uma crise estrutural sem precedentes”. 

Ele diz que “nos últimos 30 anos, vimos uma redução de mais de 30% dos passageiros de transporte público, sem contar com a grande perda que tivemos nos anos de pandemia”.

Segundo pesquisa da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), o sistema de transporte público urbano por ônibus registrou queda de 24,4% entre 2019 e 2022 – uma perda acumulada de mais de R$ 40 bilhões. 

Em contrapartida, são inúmeras as políticas públicas de incentivo ao aumento da frota de automóveis: crédito facilitado, isenção de impostos, uso do espaço urbano de forma gratuita, entre outras. Como consequência, a frota de automóveis no Brasil cresceu 35% entre 2014 e 2023, segundo dados da Secretaria Nacional de Transportes (Senatran). 

Como consequência do aumento do transporte individual, um estudo realizado pela Universidade de São Paulo (USP) mostrou que, só na capital paulista, o transporte público coletivo perdeu 30% dos seus passageiros em dez anos – o que representa quase um terço do total de usuários. 

Em 2013, o sistema transportou 2,9 bilhões de pessoas; o número caiu para 2,04 bilhões em 2022. Para se ter perspectiva, no mesmo período, a população da cidade aumentou 3,2%, de 11,8 milhões de pessoas para 12,2 milhões, e a frota de automóveis cresceu 26%, segundo o Senatran.

“Estamos vendo uma perda cada vez maior da participação do transporte coletivo para os veículos motorizados individuais que, comparado aos outros, são os que mais produzem externalidades negativas como gases do efeito estufa e acidentes”, explica ele.

Como consequência dessa crise, é discutida, há mais de três anos, a necessidade de um Marco Legal do Transporte Público Coletivo por entidades no Fórum Consultivo de Mobilidade Urbana, com representação dos usuários, dos consumidores, dos estados e municípios e dos empresários de transporte, como a Confederação Nacional do Transporte (CNT). 

Uma nova proposta substituiu a contida originalmente no Projeto de Lei (PL) 3.278/2021 por trazer diretrizes mais modernas e abrangentes sobre o assunto e aguarda audiência pública no Senado Federal.

A discussão do marco regulatório é a base para criar um sistema de transporte público de maior qualidade, explica Carvalho. “Precisamos abordar primeiro o sistema de financiamento, já que o tarifário está completamente falido”, diz. 

“E, depois, precisamos entender melhor as questões de governança para termos contratos adequados que deem segurança jurídica para os empresários fazerem os investimentos na área, ao mesmo tempo que propicie ferramentas para o poder público exigir uma qualidade melhor das operações”, continua ele. 

Os benefícios do transporte coletivo

De acordo com Thiago Trindade, professor da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Observatório das Metrópoles, a discussão do Marco tornou-se urgente com as manifestações sociais em torno do tema no país na última década, somadas às mudanças climáticas. 

“Tornou-se urgente rever o funcionamento da mobilidade urbana em meio aos recentes eventos ambientais”, comenta ele.

Trindade explica que a construção de cidades com maior mobilidade sustentável passa, obrigatoriamente, pelo sistema público de transporte. “O que precisamos ver é uma mudança no sistema estadual e municipal, onde o ponto focal deixa de ser o do transporte individual para o da mobilidade coletiva e ativa”, explica Trindade.

Carvalho, do Ipea, concorda. “Cidades que têm maior mobilidade sustentável são aquelas que possuem menor participação de transporte individual motorizado, que geram mais externalidades negativas”, conta ele.

Essas externalidades negativas vão desde poluição até atrasos e acidentes com vítimas. “As cidades que têm maior participação do transporte público e do transporte não motorizado são justamente as que menos sofrem com questões como essa”, explica ele. “São aquelas que vêm investindo em maior capacidade, maior velocidade, maior competitividade e menores preços em seus sistemas de transporte público”.

Hoje, se entende que as políticas públicas para mobilidade urbana coletiva e ativa são, geralmente, acompanhadas do aumento na qualidade de vida para o cidadão. Isso porque são reduzidas as horas perdidas em congestionamentos e o estresse adjacente, além de queda em doenças respiratórias com menos poluição. Ainda, como consequência, as cidades onde isso acontece se tornam mais atrativas para investimentos do setor privado, geração de emprego e renda. 

Esses resultados partem do incremento de investimentos em infraestrutura que contemple a integração entre diferentes modais de transporte e priorize a coletividade, como com corredores e faixas exclusivas de ônibus ou BRT. O objetivo é que o uso da mobilidade urbana pública se torne uma escolha também pela qualidade e agilidade.

Como exemplo nacional de metrópoles que conseguiram enfrentar a questão, Carvalho cita o pioneirismo de Curitiba. “É um caso de sucesso não só no Brasil como no mundo. A cidade integrou os corredores de transporte coletivo de alta capacidade há mais de 30 anos e desenvolveu o sistema em torno do seu planejamento urbano”, diz o especialista.

Uma das principais megalópoles globais, São Paulo também encontrou soluções ao dar enfoque em sua malha ferroviária. “Sabemos que o sistema de metrô é um dos mais sustentáveis atualmente, já que transporta uma grande massa de pessoas e emitem a menor quantidade de poluentes”, diz ele.

Esse movimento começou na própria capital, mas deve se expandir para outras regiões do estado, com planos recentemente anunciados pelo governo estadual de expandir a conexão entre cidades por meio dos trilhos – com linhas rápidas para o litoral e também cidades como Campinas e Sorocaba (SP). 

Ainda, os especialistas ressaltam que, perto do potencial do país, os exemplos ainda são tímidos. “Sem dúvida nenhuma, um dos gargalos hoje para discutir mobilidade sustentável é o financiamento”, conta o especialista do Ipea.

Para mudar isso, seria preciso reestruturar o financiamento do transporte, atualmente pautado pelas tarifas pagas pelos passageiros e subsídios públicos, pois os municípios estão com dificuldades financeiras para prover um transporte público de qualidade ao cidadão,  

A pergunta que fica é: como reestruturar o financiamento do transporte coletivo a partir de novos modelos que fortaleçam a sustentabilidade?

Por fim, para virar o jogo da mobilidade no país, há que se priorizar o uso do espaço urbano para mobilidade urbana coletiva e ativa – o que só é possível com o reforço de investimentos em infraestrutura. 

“Muitas cidades foram construídas e divididas pensando no veículo individual. Se queremos aumentar o número de pessoas circulando de forma sustentável, precisamos pensar maneiras de facilitar esse acesso”, conclui Carvalho, do Ipea.