‘Máquina de moer gente’: a falta de racionalidade na prova de reconhecimento pessoal

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Em 14 de maio passado, no julgamento do Habeas Corpus n. 870.636/SP, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) absolveu um homem preso há 12 anos por uma série de estupros que não cometeu. “Eu não teria essa serenidade”, disse a ministra Daniela Teixeira, em referência ao bom comportamento de Carlos Edmilson da Silva no estabelecimento carcerário por mais de uma década; e assim concluiu: “Um pedido de desculpas […] é o mínimo que o Poder Judiciário pode fazer.”

Silva foi condenado com fundamento em reconhecimentos realizados pelas vítimas. O caso foi investigado pelo Innocence Project Brasil, com o auxílio do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), em Barueri. Após solicitarem o exame do vestígio coletado das vítimas, descobriram que o DNA não correspondia ao perfil genético de Silva. E mais: segundo o Instituto de Criminalística do Estado de São Paulo, o vestígio batia com o de outro homem que já se encontrava preso.

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Além do caso de Silva, o STJ julgou no ano passado um habeas corpus em prol de Paulo Alberto da Silva Costa, acusado em 62 processos criminais, a maioria por roubo. Em todos esses casos, a única prova era o reconhecimento pelas vítimas. Conforme explica o relatório elaborado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) — que atuou como amicus curiae no Habeas Corpus 769.783, impetrado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro —, as imagens de Costa constavam de álbuns de “suspeitos” e até mesmo em murais de “suspeitos” da 54ª Delegacia de Polícia de Belford Roxo, Rio de Janeiro. Todas elas foram irregularmente extraídas de redes sociais. Costa foi condenado diversas vezes sem nunca ter sido ouvido pelas autoridades policiais, e sem que nenhum objeto roubado fosse encontrado em sua posse ou residência.

Em 10 de maio de 2023, todos os ministros criminais do STJ reuniram-se para dar uma solução definitiva ao caso de Costa. Além de ser absolvido no processo que deu origem ao recurso sob análise, o réu ainda recebeu, de ofício, em razão da diversidade de etapas em que se encontravam os outros 61 processos criminais, ordem de soltura imediata. O STJ também determinou que Juízos, Tribunais e Juízos de Execução reavaliassem se as dinâmicas probatórias contidas nesses processos eram a mesma — isto é, se o conjunto probatório se reduzia ao reconhecimento do acusado. Finalmente, a decisão ainda determinou que a Corregedoria de Polícia do Estado do Rio de Janeiro fosse oficiada para apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos.

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“Nós fazemos parte desta ‘máquina de moer gente’, e durante muito tempo aceitamos isso, mas temos procurado de alguma forma corrigir esses rumos. Não é possível que pessoas continuem sendo encarceradas de uma forma tão primitiva do ponto de vista da racionalidade”, declarou o ministro Rogerio Schietti Cruz, do STJ, durante lançamento de um livro sobre falhas na prova de reconhecimento.

Um cenário alarmante

As condenações errôneas de Silva e de Costa foram revisadas, mas provavelmente há muitos outros inocentes presos ou condenados devido a reconhecimentos falhos no sistema de Justiça criminal brasileiro. Sabemos que, das 6 condenações errôneas revertidas pelo Innocence Project Brasil, 4 tiveram como fundamento a prova de reconhecimento equivocado. Embora haja poucos dados disponíveis sobre o cenário brasileiro, já temos motivos para ter preocupação.

O Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (CONDEGE) publicou relatório a partir de casos coletados entre novembro e dezembro de 2020, tendo como base informações encaminhadas por defensores públicos de dez estados. O objetivo era verificar a frequência de casos que se encaixavam em três condições: reconhecimento realizado por fotografia na delegacia; posteriormente não confirmado em juízo; e seguido de sentença absolutória. No total, foram coletados dados a respeito de 28 processos, a maioria do Rio de Janeiro e relativos a crimes de roubo. A amostra é muito pouco representativa do universo de casos que envolvem reconhecimento pessoal no país, mas parece útil para ilustrar a problemática deste artigo.

Primeiro, nota-se que a prisão preventiva foi decretada em 60% dos casos, sendo que o tempo médio de prisão foi superior a 9 meses – o maior período superou 2 anos. Esse uso indiscriminado da prisão preventiva agrava ainda mais a situação do suspeito reconhecido injustamente. Como disse Costa, quando [você] vai para o Fórum, vai sujo, fedendo, do jeito que sai dali”.

Outro dado alarmante: 83% dos reconhecidos eram negros. Esse dado corrobora a hipótese de que existe racismo sistêmico nos reconhecimentos de suspeitos. Seria interessante cruzar este último dado a respeito da raça com a informação que também consta do relatório de que, em alguns casos, a vítima havia afirmado inicialmente que estava escuro e não poderia reconhecer o suspeito. Foram essas vítimas, em condições de visibilidade reduzida, as que reconheceram suspeitos negros? Também se destaca, em referência aos fundamentos indicados nas sentenças absolutórias, que nenhum deles explicitamente reconheceu falhas no procedimento de reconhecimento – a maioria mencionou “ausência de provas” de maneira genérica.

Outra pesquisa recente, realizada por iniciativa do gabinete do ministro Rogerio Schietti Cruz, do STJ, reforça as indicações acima. Durante todo o ano de 2023, as 5ª e 6ª Turmas do tribunal em questão reformaram 377 julgados nos quais condenações e prisões preventivas estiveram fundamentadas unicamente em reconhecimentos. Ou seja, no período de um ano, foram verificados 377 erros judiciários que poderiam ter sido evitados por policiais, promotores, juízes de primeiro grau e tribunais de justiça.

Apesar dos números acima, os dados sobre prisões e condenações resultantes de reconhecimentos falhos no Brasil ainda são escassos. Nos Estados Unidos, onde há mais tempo se tem lutado por um sistema de Justiça baseado em evidências científicas, existe maior disponibilidade de dados. Segundo o relatório mais recente do Registro Nacional de Exonerações dos Estados Unidos, relativo ao ano de 2023, das 153 absolvições de pessoas anteriormente condenadas, 50 tiveram como fator contributivo o reconhecimento errôneo. Ainda, de acordo com os dados do Innocence Project daquele país, das 375 primeiras absolvições obtidas com a ajuda de exames de DNA, 69% envolveram erros na prova de reconhecimento — mais do que qualquer outro meio de prova.

A psicologia e suas aplicações no sistema de Justiça criminal

De todas as áreas do conhecimento científico, talvez a psicologia seja aquela que há mais tempo vem realizando investigações relevantes para a reforma do nosso sistema de Justiça criminal. Pelo menos desde a década de 1970, psicólogos conduzem experimentos científicos que alertam as autoridades sobre os riscos de erro no reconhecimento pessoal. Tais conclusões seriam confirmadas nas décadas seguintes pelas centenas de mudanças de julgados com base em exames de DNA: como se indicou acima, nos Estados Unidos, mais da metade das condenações errôneas revertidas estavam fundamentadas no reconhecimento.

Em um artigo muito citado de 1978, Gary L. Wells propôs uma distinção fundamental para a área da psicologia aplicada, que tem como foco o sistema de Justiça criminal. Segundo Wells, as pesquisas sobre reconhecimento pessoal podem trabalhar com dois tipos de variáveis: de estimativa e de sistema.

Variáveis de estimativa são aquelas que não podem ser controladas pelas autoridades, como acuidade visual da vítima ou testemunha; raça, sexo e estatura do criminoso; duração do evento; grau de iluminação; proximidade da testemunha do local do delito; emprego de arma de fogo; pluralidade de agentes etc. São chamadas de variáveis de estimativa porque aquilo que os julgadores podem fazer com elas é apenas estimar a sua influência em casos individuais.

Embora o sistema de Justiça não tenha o poder de controlar tais variáveis, é preciso conhecê-las. Por exemplo, o juiz deve considerar com cautela o reconhecimento feito por uma vítima quando o crime ocorreu em um ponto de ônibus mal iluminado, com assaltantes que desceram rapidamente de uma moto e apontaram uma arma para ela. Policiais, promotores, defensores e juízes precisam conhecer e saber estimar o papel dessas variáveis na distorção da memória humana.

Variáveis de sistema, por outro lado, são aquelas produzidas no interior do próprio sistema de Justiça criminal. Diferentemente das de estimativa, que só podem ser conhecidas e cujos efeitos podem ser tão-somente estimados, as variáveis de sistema foram assim nomeadas porque são de inteira responsabilidade do sistema de Justiça. Dentre essas variáveis, está a forma pela qual o procedimento é realizado.

Nas práticas investigativas no Brasil, é comum enviar fotos de suspeitos por aplicativos de mensagens para que vítimas ou testemunhas os identifiquem. Isso cria uma familiaridade inicial com o rosto mostrado. Quando a vítima ou testemunha encontra a pessoa da foto, sente que já a conhece, sem saber se é da cena do crime ou da imagem recebida. Essa prática contribui para falsos positivos, mas pode ser controlada. Pesquisas nessa área ajudam a evitar erros, desenvolvendo métodos mais confiáveis para provas de reconhecimento pessoal.

Enquanto as variáveis de estimativa representam fatores incontroláveis que os julgadores podem apenas estimar em casos específicos, as variáveis de sistema oferecem uma oportunidade para intervenção e melhoria do sistema de Justiça criminal. Manipulando as variáveis de sistema, as autoridades podem implementar práticas mais rigorosas e eficazes para minimizar erros no reconhecimento pessoal. Pesquisas nessa área são essenciais, pois fornecem insights valiosos que auxiliam na criação de procedimentos mais confiáveis.

Showup, lineup e álbum de “suspeitos”

Voltemos ao caso de Costa. De acordo com o relatório “Suspeito em série: como as fotos de um homem negro se transformaram em mais de 60 acusações criminais injustas”, produzido pelo IDDD, diferentes fotografias que Costa publicara em sua página do Facebook eram apresentadas ao reconhecimento das vítimas a partir das mais variadas descrições. Algumas vítimas disseram que o criminoso tinha bigode, outras que tinha cavanhaque; algumas que ele era preto, outras que era pardo; algumas disseram ainda que ele tinha cabelo “raspado”, enquanto outras mencionaram “crespo na cor preta” e inclusive “com reflexos loiros”. Com base nessas distintas descrições, as autoridades exibiram a fotografia de Costa por meio de um procedimento conhecido como showup.

O showup é um procedimento de reconhecimento de pessoas que consiste em apresentar para a vítima ou testemunha uma única pessoa suspeita, seja presencialmente ou por meio de fotografia. Este método é comum e realizado de diversas maneiras, inclusive com fotografias enviadas por aplicativos de telefone celular (como há pouco se mencionou) ou até mesmo com o suspeito exibido dentro de uma viatura policial. Embora o showup possa oferecer vantagens, como a tentativa de testar rapidamente a memória, este método é altamente sugestivo e demonstra um alto potencial de erro.

O showup tem sido consistentemente demonstrado como o procedimento com maior risco de resultar no reconhecimento de pessoas inocentes. Ao apresentar apenas uma pessoa para ser reconhecida, o procedimento se torna sugestivo, influenciando a vítima ou testemunha a identificar o suspeito com base em fatores externos, e não em sua memória do evento. Por exemplo, uma vítima ou testemunha pode reconhecer um suspeito inocente apenas porque ele está vestindo uma roupa parecida com a do autor do crime, ou porque ele possui características físicas semelhantes.

O lineup, também conhecido como alinhamento, é uma alternativa ao procedimento de showup, recomendado por vários estudos como sendo mais confiável. Neste, o suspeito é apresentado em conjunto com outras pessoas sabidamente inocentes, chamadas de “preenchimentos” (fillers) ou “dublês”. O objetivo do alinhamento é fornecer alternativas para que a vítima ou testemunha possa comparar diferentes rostos antes de tomar a decisão. Aumenta-se a probabilidade de que o reconhecimento seja baseado na memória da vítima ou testemunha, e não na sugestionabilidade de um procedimento como o showup.

Uma prática disseminada nas delegacias do país e sem previsão legal é o reconhecimento a partir de um álbum de fotografias, que passou a ser conhecido como álbum de “suspeitos”. Fotografias de pessoas catalogadas como suspeitas por terem antecedentes criminais ou por qualquer outra razão que tenha levantado a suspeita das autoridades são incluídas nesses álbuns. Não existe critério para a inclusão de fotografias no álbum de suspeitos, nem controle que permita a sua exclusão. No caso de Costa, tudo indica que ele foi incluído porque o condomínio onde trabalhava era dominado por uma facção criminosa.

Do ponto de vista da memória humana, a exibição de fotografias em um álbum de suspeitos é semelhante à realização de múltiplos showups. A vítima ou testemunha é induzida a reconhecer o suspeito entre vários rostos de possíveis autores de um delito. Ainda, uma vez que este rosto é reconhecido, ele tende a ser reconhecido novamente pela mesma vítima ou testemunha, mesmo que se esteja utilizando um procedimento adequado como o alinhamento. Uma meta-análise, revisando diferentes estudos sobre álbum de suspeitos, verificou que 61% das testemunhas que haviam reconhecido um suspeito inocente no álbum de suspeitos voltaram a reconhecê-lo no lineup. 

“Tenho certeza absoluta de que ele é o criminoso”

Em 1984, no estado da Carolina do Norte, Estados Unidos, um agressor invadiu o apartamento de Jennifer Thompson e a estuprou. Durante o ataque, ele permitiu que Jennifer fosse ao banheiro. Ela aproveitou a oportunidade para observar bem o seu agressor e até acendeu brevemente a lâmpada do quarto para vê-lo melhor.

Thompson identificou Ronald Cotton, primeiro a partir de uma sequência de fotografias e depois pessoalmente. Em juízo, ela afirmou estar certa de que Cotton era o homem que a atacou, resultando em sua condenação à prisão perpétua. Anos depois, Cotton foi novamente condenado pelo estupro de outra vítima ocorrido na mesma noite, em localidade próxima. Inicialmente, essa segunda vítima havia reconhecido um homem diferente; no entanto, após a identificação de Jennifer, ela afirmou com certeza que Cotton era o responsável pelo ataque.

Antes do segundo julgamento, Cotton foi informado por outro detento que um homem chamado Bobby Poole afirmava saber que ele era inocente, pois confessava os crimes. No entanto, quando chamado a testemunhar, Poole negou tudo. Cotton só conseguiu reverter sua condenação errônea depois de 10 anos de prisão. Ele enviou inúmeras cartas declarando sua inocência e conseguiu convencer um professor de Direito e advogado, Richard Rosen, a recuperar e testar o sêmen preservado da cena do crime. O exame de DNA não só inocentou Cotton, mas também incriminou Poole.

Um fato curioso do erro judicial é que as vítimas não demonstraram sinais de mentira em nenhum dos depoimentos. E mesmo anos depois de aceitar a inocência de Cotton, Jennifer Thompson disse: “Ainda é o rosto de Ronald Cotton que eu vejo… Ainda hoje, quando tenho pesadelos com o estupro, ainda não vejo Bobby Poole”.

No caso de Cotton, os procedimentos do sistema de Justiça tiveram um grande impacto em sua confiança. Registros mostram que o primeiro reconhecimento de Cotton foi marcado por um longo período de hesitação e indecisão, terminando com um reconhecimento com baixo grau de certeza. Jennifer respondeu: “Eu acho que é ele”. Após essa resposta inicial, a vítima perguntou aos policiais: “Eu me saí bem?”; e os policiais responderam “Você foi excelente”. Ao dizer isso, o policial que conduziu o procedimento, sem saber, deu um feedback confirmatório, indicando que a testemunha acertou ao reconhecer o suspeito. Este tipo de feedback tem sido demonstradamente responsável por aumentar a confiança das testemunhas em reconhecimentos posteriores. Como visto no caso de Cotton, Thompson demonstrou um alto grau de certeza durante o julgamento.

Casos como o de Cotton destacam o risco do reconhecimento feito até mesmo pela vítima ou testemunha mais sincera e convicta. Em regra, o alto grau de certeza informado por uma vítima ou testemunha não deve ser tratado como um indicador da fiabilidade de seu relato. Indicadores mais relevantes da acurácia do reconhecimento são as variáveis de estimativa e as variáveis de sistema, descritas anteriormente.

O reconhecimento deve ser repetido em juízo?

Até pouco tempo atrás, o sistema de Justiça considerava o reconhecimento de pessoas como um tipo de prova repetível. O procedimento realizado em delegacia era repetido em juízo. Contudo, pesquisadores hoje são unânimes em mostrar que, uma vez que uma testemunha reconheça o rosto de uma pessoa, sua memória para momentos posteriores é alterada.

Isso acontece porque a memória é flexível e tende a “aprender” que o rosto reconhecido é o do autor do crime. Por isso, é importante seguir as recomendações dos especialistas em psicologia do testemunho desde o primeiro procedimento de reconhecimento. Se esse primeiro reconhecimento for feito de forma inadequada, qualquer tentativa posterior de o corrigir resultará em um resultado não confiável. Um segundo reconhecimento não eliminará as interferências causadas pelo primeiro.

Neste ponto, vale a pena esclarecer que a suposição de que o reconhecimento deva ser repetido em juízo decorre de uma interpretação do art. 226 em conjunto com o art. 155 do Código de Processo Penal (CPP), que estabelece que “o juiz formará a sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. Assim, para que o reconhecimento pessoal pudesse servir de fundamento para uma condenação, seria necessário que a identificação feita na delegacia fosse confirmada pela vítima ou testemunha perante o juiz — sem isso, nada feito. O art. 155 busca garantir o direito de defesa, mas repetir o reconhecimento em juízo atrapalha mais do que ajuda. O próprio sistema de Justiça expõe o rosto do suspeito mais de uma vez. Com efeito, para fins de aplicação do art. 155 do CPP, o reconhecimento pessoal deve ser considerado como um meio de prova não repetível.

Um caso trágico que mostra os prejuízos da repetição do reconhecimento é o de Jerome White, injustamente preso aos 19 anos de idade. Em 1979, na Geórgia, Estados Unidos, uma senhora de 74 anos foi espancada, estuprada e roubada por um homem. Com base na sua descrição, foi feito um esboço da imagem do criminoso. White era investigado por outra acusação, e o policial o achou parecido com o esboço. A vítima foi solicitada a reconhecer o suspeito, inicialmente por meio de um conjunto de fotografias e depois por meio de um alinhamento presencial. White foi a única pessoa a figurar nos dois momentos. A condenação de White à prisão perpétua fundamentou-se nos reconhecimentos. Sua inocência só foi comprovada muitos anos depois, quando um exame de DNA feito em pelos pubianos encontrados na cena do crime revelou que James Parham era o verdadeiro culpado. White tinha 48 anos de idade quando foi inocentado.

O caso de White possui um elemento emblemático: James Parham, o verdadeiro culpado, também estava entre os indivíduos alinhados com White no segundo reconhecimento. Isso mostra o quanto a vítima pode ganhar confiança após o primeiro reconhecimento, a ponto de não conseguir identificar o verdadeiro culpado, mesmo quando ele está diante dela.

Afinal, como deve ser feito o reconhecimento?

É comum que o uso de fotografias seja desaconselhado ao se discutir formas de resolver problemas na prova de reconhecimento. Contudo, o problema não está no meio utilizado (fotografia ou presença física), mas sim em como o procedimento é conduzido. O reconhecimento deve seguir o procedimento do alinhamento justo. Uma revisão de estudos comparando alinhamentos justos indicaram que o meio utilizado, fotográfico ou presencial, não parece ser determinante. Não foi encontrada superioridade de resultados de um método sobre o outro. Em outras palavras, quando realizados adequadamente, tanto o reconhecimento fotográfico quanto o presencial podem ser procedimentos não sugestivos e igualmente eficazes.

O método do alinhamento justo, seja com fotografias ou pessoas, envolve apresentar um suspeito ao lado de outros 5 a 7 pessoas sabidamente inocentes, na qualidade de fillers. O uso de dublês é crucial, pois não apenas protege um inocente, distribuindo os erros de identificação, mas também pode resultar em respostas prontamente descartáveis. Além disso, para garantir que o suspeito não se destaque, é importante que os dublês tenham características físicas similares às descritas pela vítima ou testemunha – como altura, idade e raça. Se o alinhamento é feito com fotografias, elas devem seguir também o mesmo padrão em termos de ângulo, iluminação e expressão facial.

O alinhamento pode ser feito de dois modos: simultâneo, mostrando todos as pessoas ou fotografias ao mesmo tempo; ou sequencial, mostrando uma pessoa ou fotografia de cada vez e pedindo uma resposta antes de passar para a seguinte. Durante algum tempo, o método sequencial foi considerado superior para reduzir os riscos de um reconhecimento errôneo. Apresentar pessoas ou fotografias de forma sequencial reduziria os erros de identificação, já que, em um reconhecimento simultâneo, a vítima ou testemunha sempre encontraria alguém mais parecido com o perpetrador.  Hoje entende-se que não há diferença significativa sobre qual método deve ser considerado superior, e não há dúvidas de que tanto o alinhamento sequencial quanto o simultâneo são mais eficazes do que o simples showup.

Também é importante considerar as instruções fornecidas pela autoridade que conduz o reconhecimento. Antes de iniciar o procedimento, a autoridade deve esclarecer que o autor do crime pode não estar presente no lineup, e que a vítima ou testemunha não é obrigada a identificar alguém. Esse tipo de instrução tem se mostrado eficaz para evitar que a vítima ou testemunha faça suposições ou se sinta pressionada a reconhecer alguém. Além disso, é fundamental que a autoridade se abstenha de fazer qualquer tipo de comentário sugestivo. Comentários como “acreditamos que pegamos o culpado” ou “este indivíduo foi identificado por outro crime” podem influenciar a decisão da vítima ou testemunha, comprometendo a integridade do reconhecimento.

Uma maneira de evitar vieses por meio de instruções ou comentários sugestivos consiste na utilização do duplo-cego, no qual o procedimento é conduzido por uma autoridade que não sabe quem é o suspeito, nem sua posição no alinhamento. O duplo-cego diminui o risco de que informações fornecidas pela autoridade responsável pelo reconhecimento influenciem a escolha da vítima ou testemunha.

Após a testemunha ou vítima dar sua resposta, deve-se pedir a ela que indique, em suas próprias palavras, o grau de confiança em sua escolha. A declaração de confiança deve ser obtida de maneira aberta em vez de fechada — ou seja, é preferível uma pergunta como “qual o seu grau de confiança nessa resposta?” em vez de uma pergunta como “você tem certeza?”. Por fim, todo o procedimento deve ser gravado em vídeo contínuo, desde as instruções iniciais até a resposta final, garantindo que todo o processo seja transparente e verificável.

A primeira mudança de posição do STJ

“[A] pessoa, cujo conhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la” — esta é a redação do art. 226 do CPP. Durante muitos anos, a expressão “se possível” deu margem a uma interpretação que tornava dispensáveis todos os passos previstos na disposição normativa. O “se possível” foi interpretado como direta permissão para a dispensa dos requisitos legais. Esta foi a orientação expressada em dois precedentes do STJ, um de 2017 e outro de 2019:

“A teor dos julgados desta Corte Superior, não é obrigatória a repetição das formalidades do art. 226 do CPP em Juízo, na conformação do reconhecimento de pessoas na fase inquisitorial. Prevalece o entendimento de que as formalidades configuram mera recomendação e podem ser realizadas de forma diversa desde que não comprometida a finalidade da prova” (AREsp n. 1.175.175 /AM, 15/12/2017, Rel. Min. Rogerio Schietti).

“É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que é legítimo o reconhecimento pessoal ainda quando realizado de modo diverso do previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, servindo o paradigma como mera recomendação” (HC n. 474.655/PR, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 3/06/2019).

O cenário começou a mudar quando resultados conquistados pelo Innocence Project nos Estados Unidos, amparados em pesquisa científica no campo da psicologia, chegaram ao conhecimento da comunidade jurídica brasileira. Isso fez com que se passasse a considerar que o reconhecimento positivo — inclusive aquele em que a vítima afirma ter “100% de certeza” — não é prova conclusiva. A litigância estratégica de organismos como o Innocence Project Brasil e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa foi fundamental para a construção das condições necessárias a uma reflexão crítica do Judiciário brasileiro.

A mudança significativa ocorreu em outubro de 2020, quando o STJ julgou o HC 598.886/SC impetrado pela Defensoria Pública de Santa Catarina. O julgamento contou ainda com a atuação do Innocence Project como amicus curiae. A decisão trouxe nova interpretação ao art. 226 do CPP: em lugar de uma interpretação literal da expressão “se possível”, o Tribunal destacou a importância de ouvir os especialistas sobre a memória humana. O tratamento jurídico do reconhecimento de pessoas deve acompanhar a evolução da ciência. Afinal, hoje temos mais conhecimentos a respeito do regular funcionamento da memória do que tinha o legislador em 1941. A falibilidade das provas dependentes da memória deve ser levada em consideração por todos aqueles que atuam no sistema de justiça criminal brasileiro. Com essa motivação, a decisão estabeleceu que as formalidades do art. 226 são requisitos para a validade jurídica da prova de reconhecimento de pessoas.

O precedente trouxe avanços. Contudo, precisava de alguns ajustes, especialmente em relação ao item que afirmou o seguinte:

“O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.” (HC n. 598.886/SC, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 27/10/2020).

Como se vê, a corte determinou que o reconhecimento fotográfico fosse considerado uma etapa preliminar a eventual reconhecimento pessoal. Além disso, afirmou que o reconhecimento fotográfico não poderia ser utilizado como prova em ação penal, mesmo que confirmado em juízo. Há, aqui, pelo menos dois equívocos.

Primeiro, como mencionado anteriormente, estudos na área da psicologia sugerem que não há diferença significativa em termos de confiabilidade epistêmica entre o reconhecimento feito pessoalmente e aquele feito com fotografias, desde que ambos sigam os critérios do alinhamento justo. Logo, não é o reconhecimento fotográfico em si que é problemático, mas sim a maneira como ele é realizado. Se realizado corretamente, tanto o reconhecimento feito pessoalmente quanto o realizado por meio de fotografias podem ser incluídos no conjunto probatório de uma ação penal.

Além disso, nenhum reconhecimento, presencial ou fotográfico, deve ser considerado uma etapa preliminar a outro procedimento de reconhecimento – mesmo que tenha seguido os critérios do alinhamento justo. Isso contraria as evidências das pesquisas psicológicas mencionadas acima a respeito da repetição do reconhecimento. Portanto, tanto o reconhecimento pessoal realizado em etapa subsequente ao reconhecimento fotográfico quanto a repetição do reconhecimento em juízo devem ser consideradas práticas que aumentam as chances de condenações errôneas — não importa como foi realizado o reconhecimento inicial.

Assim, em meio a mudanças importantes, o julgamento do HC 598.886/SC deixou de considerar um aspecto crucial para a confiabilidade do reconhecimento de pessoas: sua não-repetição. Se pesquisas científicas indicam que a repetição pode levar a falsos positivos, um sistema de Justiça que busca reduzir erros precisa de motivos sólidos para manter essa prática.

Influenciando a mudança: a contribuição do STF

Em 22 de fevereiro de 2022, o Supremo Tribunal Federal se posicionou sobre o tema. No Recurso Ordinário em Habeas Corpus 206.846, impetrado pela Defensoria Pública da União, a Corte reforçou a necessidade de se observar as formalidades do art. 226 do CPP, citando pesquisas da área da psicologia. Nas palavras do relator, ministro Gilmar Mendes: “impõe-se a adoção de uma metodologia orientada por evidências científicas”.

Tendo as pesquisas psicológicas como referência, o voto avançou ao mencionar as instruções que devem ser oferecidas a vítimas e testemunhas, no sentido de que o autor do delito pode ou não estar entre as pessoas exibidas. Também afirmou que não devem ser oferecidos feedbacks confirmatórios pelas autoridades, além de prescrever a adoção do procedimento do duplo-cego pelas delegacias.

A decisão também avançou quanto ao tema da repetição do reconhecimento em juízo. A ementa deixa claro que “[a] inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em Juízo”.

Embora não tenha sido unânime — a maioria absolveu o acusado, ficando vencidos os ministros Ricardo Lewandowski, já aposentado, e André Mendonça —, essa decisão merece ser comemorada, pois representou reforço significativo à alteração do entendimento jurisprudencial da matéria em nosso sistema de justiça.

A segunda mudança de posição do STJ

A decisão do STF foi seguida pelo STJ menos de um mês depois, no julgamento do HC 712.781/RJ, impetrado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. O STJ finalmente revisou o entendimento de que o reconhecimento fotográfico seria um “ato preparatório” do reconhecimento pessoal. Agora, essa prática é vista como uma “inaceitável repetição do procedimento”. De acordo com a relatoria do ministro Rogerio Schietti, “a repetição realizada como espécie de ratificação encontra sérias e consistentes dificuldades epistemológicas”.

O acórdão também abordou outras questões importantes. Reconhecendo a falibilidade da memória e a influência de variáveis de estimativa (não controláveis), a decisão deixou claro que, mesmo quando realizado de acordo com o art. 226 do CPP, o reconhecimento não terá “força probante absoluta”. Trata-se de importante advertência feita pelo STJ com o objetivo de transmitir aos operadores jurídicos a necessidade de se buscar outros meios de prova além do reconhecimento pessoal. Investigações e processos criminais que se apoiem exclusivamente ou excessivamente sobre o apontamento de alguém não serão convalidados pelos tribunais superiores.

A trilogia composta, respectivamente, pelos HC 598.886/SC (STJ), RHC 206.846/RJ (STF) e HC 712.781/RJ (STJ) é responsável por um forte impulso de mudança no entendimento jurisprudencial da prova de reconhecimento em nosso sistema de Justiça criminal. Mas a mudança não se limitou aos tribunais superiores. Outras medidas foram implementadas para ampliar o apoio a essas mudanças por parte de outras instituições do sistema de justiça criminal brasileiro.

 A Resolução 484, do Conselho Nacional de Justiça

Diante de todos os avanços jurisprudenciais mencionados, faltava uma diretriz normativa sobre o assunto. Para atender a essa necessidade, em 2022, o Conselho Nacional de Justiça criou a Resolução 484, que estabelece diretrizes para o reconhecimento de pessoas no país. A resolução é um dos resultados de um grupo de trabalho formado por especialistas, sob a coordenação do Ministro Rogerio Schietti Cruz, do STJ.

Dentre outras coisas, a Resolução 484 prescreveu que a prova é irrepetível; que é necessário que o alinhamento seja justo; que se deve priorizar outros meios de prova; que o procedimento deve ser gravado; e que é necessário proceder a uma coleta prévia de autodeclaração racial da vítima ou testemunha para permitir a adequada valoração do chamado “efeito racial cruzado” — a tendência de todo ser humano de identificar de maneira mais precisa pessoas da sua própria raça.

Durante os primeiros seis meses de vigência da resolução, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro monitorou o seu cumprimento em 109 inquéritos policiais. É frustrante constatar que, apesar de todos os esforços institucionais, mais de 80% dos reconhecimentos continuaram a ser realizados por meio de fotografia, sem a observância das diretrizes assinaladas na Resolução.

 Outras iniciativas institucionais dignas de nota

O ano de 2023 trouxe mais duas iniciativas dignas de nota, nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo.

Em 18 de outubro do ano passado, o Rio de Janeiro promulgou a Lei Ordinária 10.141/2023. Além de abordar a preocupação com a forma como o reconhecimento é conduzido, a lei também prescreveu que os indícios de autoria usados para fundamentar um pedido de prisão preventiva não podem depender exclusivamente do reconhecimento (é necessário verificar, por exemplo, se o horário de trabalho do suspeito coincide com o momento do crime, ou cruzar dados com as operadoras de telefonia, entre outros procedimentos). O legislador estadual fez referência explícita à Resolução n. 484 do CNJ (art. 4, § 1º), buscando trazer bases científicas ao procedimento padrão realizado em suas delegacias.

O estado de São Paulo adotou medida semelhante, mas por meio de sua própria Secretaria da Segurança Pública, com a publicação em 30 de outubro de 2023 da Portaria 26 da Delegacia Geral de Polícia de São Paulo. O reconhecimento de pessoas é abordado na seção XV do documento. O detalhamento do procedimento — antes, durante e depois — merece destaque: ao longo de seus nove dispositivos legais, a portaria abarca desde a entrevista investigativa, na qual se deve obter a descrição do autor do delito de forma não sugestionada, até o alinhamento justo, seja pessoalmente ou por fotografia, tratando também de como o procedimento deve ser registrado, tanto a sua realização como o seu resultado.

Apesar de todas essas iniciativas institucionais, a continuidade dos reconhecimentos irregulares indica que ainda está por ser efetivado o dever imposto ao Ministério Público pela nossa Carta Magna. Ao tratar das funções institucionais que recaem sobre o MP, o art. 129, inciso VII, determina que lhe cabe “exercer o controle externo da atividade policial”. Na história do sistema de Justiça brasileiro, esse é um capítulo que ainda não foi escrito e pelo qual – não cabe negar – estamos ansiosos.

Quando a Justiça ignora a ciência

Esta reportagem é a quarta do projeto “Quando a Justiça ignora a ciência”, dedicado a discutir a rejeição ou mau emprego de evidências científicas no contexto criminal brasileiro. Na primeira reportagem, abordamos casos de condenações errôneas por falso positivo em exames de drogas. Na segunda, exploramos as limitações dos exames de DNA, demonstrando que nem mesmo o “padrão ouro” das provas periciais está isento do risco de condenar inocentes. Na terceira, analisamos o caso das provas psicografadas, um tipo de pseudociência que tem sido utilizada nos tribunais brasileiros, mas também em etapas preliminares da investigação policial.