Manifesto contra o PL 1904/2024

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Não é sobre mim ou sobre você. É sobre todas as mulheres e meninas que, infelizmente, se viram obrigadas a tomar a difícil decisão de interromper uma gravidez, em especial quando ela é resultado de uma violência covarde como o estupro. Deixemos de lado crenças e ideologias que pautam as nossas escolhas pessoais e enfrentemos o debate acerca do PL 1904/2024 sob uma perspectiva técnica e empática. Não é sobre ser contra ou a favor do aborto. É sobre não admitirmos que se amplie a sua criminalização. Firmes nessas premissas, nós da sociedade civil organizada nos manifestamos de forma contrária à proposta legislativa.

As mulheres e as meninas nem sempre tiveram os mesmos direitos ou mereceram a mesma proteção jurídica que os homens e os meninos no Brasil. Durante muitos anos, fomos impedidas de frequentar escolas, de votar, de escolher determinadas profissões. Há inúmeros exemplos sobre como somos subjugadas e impedidas de exercer a plena cidadania. Até hoje, ainda buscamos mudanças culturais e legais – sobretudo para mulheres negras, indígenas e periféricas – com vistas a obter a tão sonhada igualdade material prometida pela Constituição Federal de 1988.

É dentro desse contexto que situamos a perversidade do que se pretende com o PL 1904. O texto e o requerimento de urgência foram elaborados por deputados. A mudança no rito de tramitação também foi aprovada majoritariamente por homens. Eles propõem que, havendo viabilidade fetal, presumida a partir da 22ª semana de gestação, a prática do aborto seja punida com as mesmas penas aplicadas às hipóteses de homicídio simples, inclusive em caso de estupro. Estamos diante de grave ameaça de retrocesso e profunda violação de direitos fundamentais.

Desde 1940, o inciso II do art. 128 do Código Penal (CP) prevê que não se pune o aborto no caso de gravidez resultante de estupro. Nota-se que, mesmo na década de 40, quando vivíamos em uma sociedade cuja moral evoluiu sensivelmente, o Estado reconhecia a necessidade de se ressalvar essas situações. Afinal, o estupro é um crime bárbaro, repugnante e deixa cicatrizes que, lamentavelmente, nenhuma mulher ou menina é capaz de esquecer. Gerar um feto dessa relação não consentida seria ainda mais doloroso e traumático para a maioria delas. O legislador deu às vítimas dessa atrocidade uma opção: seguir ou não com a gravidez.

Para as meninas com menos de 14 anos, sequer é de fato uma opção. A decisão cabe aos responsáveis que só costumam descobrir a gravidez em estágio avançado, dado que, nessa faixa etária, elas não têm consciência do seu estado gravídico. Além disso, não se pode desconsiderar que, em 64,4% dos casos, os estupradores são os próprios familiares, o que dificulta a descoberta do abuso sexual infantil e de suas consequências. Não fosse esse cenário suficientemente assustador, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que, em relação a 2021, a taxa de estupro e de estupro de vulnerável “cresceu 8,2% e chegou a 36,9 casos para cada grupo de 100 mil habitantes” no ano de 2022.[1]

Esse crescimento foi responsável pelo nascimento de 14.293 crianças filhas de “mães” menores de 14 anos[2]. Ressoa, assim, a afirmação da ministra Rosa Weber no histórico voto proferido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442: “não basta ter vida, ela tem que ser digna em suas variadas dimensões[3]”. Não é demais afirmar que esses monstros roubam muito mais do que a infância delas. Levam consigo grande parte do futuro de cada uma e da nossa esperança em um mundo mais justo, solidário e fraterno.

Segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), as altas taxas de fecundidade nessas idades e na adolescência escondem enormes desigualdades que assolam o nosso país. E alerta para a ausência do Estado em proteger esses grupos: “adolescentes em situação de pobreza, com baixo nível educacional assim como indígenas, afrodescendentes ou de áreas remotas e rurais têm três vezes mais chances de riscos de engravidarem que meninas com educação escolar e de zonas urbanas[4]”. O PL 1904, portanto, golpeia de forma ainda mais dura meninas marginalizadas.

Também chamamos a atenção para o fato de que, na mesma semana em que o PL 1904 ganhou as manchetes dos jornais, um pai foi flagrado abusando sexualmente da filha menor de idade que estava internada em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Infelizmente, as estatísticas evidenciam que o triste episódio – para dizer o mínimo – não é incomum. Daí a ampla repercussão das campanhas que viralizaram nas redes sociais, vocalizando que “criança não é mãe” e “estuprador não é pai”.

O Brasil precisa investir em políticas públicas voltadas para meninas e mulheres, sobretudo as vítimas desse bárbaro crime que é o estupro. É urgente enfrentarmos as desigualdades estruturais de acesso ao sistema público de saúde e de educação que criam verdadeiros abismos entre a população feminina. Milhares morrem em decorrência de complicações após se submeterem a procedimentos clandestinos para interrupção da gravidez indesejada[5]. Ciente disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS)[6] elaborou um guia com recomendações específicas para a realização de um aborto seguro.

O tema é extremamente sensível e exige amplo e profundo debate, visto que permeia várias camadas de discussões do ponto de vista socioeconômico, das liberdades individuais e, principalmente, de saúde pública. Não há respostas simples para todas as indagações que nos provoca. Não podemos, então, julgá-lo sob uma ótica binária individualista. Há ponderações que precisam ser feitas diante de diversas constatações, como, por exemplo, a de que a criminalização do aborto nunca impediu que eles acontecessem. E nunca impedirá. O caminho não é enrijecer as penas, muito menos retroceder em garantias e proteção a direitos fundamentais das meninas e das mulheres brasileiras.

Por tudo isso é que somos contra o conteúdo e a forma como o PL 1904 está tramitando perante o Poder Legislativo. Qual seria a urgência em aprovar o texto se temos, ao menos desde 1940, uma lei mais protetiva às vítimas de estupro? Passados quase cem anos, o Brasil aderiu a inúmeras convenções e tratados que tangenciam o tema. Amplos consensos foram construídos no âmbito da comunidade jurídica internacional e não podem, a essa altura, ser ignorados pelo legislador interno. Essas convicções nos remetem ao chamado de Angela Davis: não podemos mais simplesmente aceitar as coisas que não podemos mudar. Precisamos mudar as coisas que não podemos mais aceitar.

Assinam o presente manifesto:

Ação Democrática Ampla – ADA
Advogadas do Brasil
Aliança Feminina pela Equidade
Aliança Jurídica pela Equidade de Gênero
Amigas da Corte
Associação Brasileira Elas no Processo – ABEP
Associação Brasileira de Advogadas – ABRA
Associação das Mulheres Advogadas de Alagoas – AMADA
Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras – AMDB
Associação de Mulheres de Carreiras Jurídicas – ABMCJ
Associação de Mulheres de Carreiras Jurídicas – ABMCJ/DF
Associação de Mulheres de Carreiras Jurídicas – ABMCJ/RS
BASE – Mulheres que movem
Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial – CMR
Carf com elas
Centro de Estudos das Sociedades de Advogados – CESA
Centro de Estudos das Sociedades de Advogados – CESA/DF
Coalizão Nacional de Mulheres
Coletivo Sankofa de Magistradas
Elas Discutem
Elas Pedem Vista
Estados Generais das Mulheres Brasil
Grupo de pesquisa Carmim Feminismo Jurídico
Indômitas Coletivas Feminista
Instituto de Juristas Brasileiras – IJB
Instituto Juristas Negras
Jurídico de Saias
LiderA
Movimento Independente 50-50 de Advogadas Gaúchas – MI50 50
Movimento Mulheres Negras Decidem – MND
Movimento Nacional pela Paridade no Judiciário
Mulheres do Mercado
Paridade de Verdade
Processualistas
Sabatina
Saint Paul | ABPW
Seraceo
Tributos a Elas
União das Mulheres Advogadas – UMA
Women in Antitrust – WIA
Women in Law Mentoring Brasil – WLM
Women in Leadership in Latin America – WILL
Women in Tax – WIT Brazil
Women on Board – WOB

[1] Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2023, p. 154; 158.

[2] Os dados são de 2022 do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), visto que os de 2023 ainda são preliminares. Disponível em <http://plataforma.saude.gov.br/natalidade/nascidos-vivos/>. Acesso em 17 jun. 2024.

[3] Disponível em <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/indispAplicacoes/anexo/Voto.ADPF442.Versa771oFinal.pdf>. Acesso em 17 jun. 2024.

[4] Disponível em <https://brazil.unfpa.org/pt-br/topics/gravidez-nao-intencional-na-adolescencia#:~:text=O%20UNFPA%20%C3%A9%20a%20ag%C3%AAncia,em%20n%C3%ADvel%20nacional%20e%20regional.>. Acesso em 17 jun. 2024.

[5] Confira-se: “Trends in maternal mortality 2000 to 2020: estimates by WHO, UNICEF, UNFPA, World Bank Group and UNDESA/Population Division”. Disponível em <https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/366225/9789240068759-eng.pdf?sequence=1>. Acesso em 17 jun. 2024.

[6] Disponível em <https://www.who.int/publications/i/item/9789240039483>. Acesso em 17 jun. 2024.