Lojas Americanas, compliance e responsabilidade social corporativa

  • Categoria do post:JOTA

Qual a responsabilidade do setor privado em relação ao desenvolvimento de uma sociedade? Qual a importância da transparência na gestão quanto aos stakeholders, internos e externos, em relação aos acionistas, aos consumidores e à reputação da própria marca?

As perguntas são conhecidas, assim como as consequências econômicas e jurídicas por sua não compreensão. A par deste cenário tão debatido atualmente, a notícia de exemplos de consequências danosas para toda a sociedade não demoram muito para ressurgir com novos casos de escândalos surgidos de problemas graves em fases das cadeias produtivas, como trabalho escravo e o tráfico de pessoas, por exemplo, ou de empresas que requerem ao Judiciário sua recuperação judicial necessária em razão de fraudes contábeis. Ou sobre as quais são veiculadas notícias de violações a direitos fundamentais, à lei e à ética.

A globalização (hoje sob forte contestação) e a transnacionalidade das atividades corporativas impuseram, como consequências suas, padrões de conformidade (compliance) e de conduta ética claramente voltados ao combate à corrupção e ao respeito às diversas e distintas sociedades que consomem os produtos e serviços que não encontram fronteiras políticas, quando da conquista de novos mercados.

Assim, vender um sanduíche padronizado na sua concepção enquanto produto deve suscitar cuidados específicos por parte da companhia fornecedora para mercados compostos por populações diametralmente distintas quanto à sua cultura, crenças, hábitos e visões de mundo.

A intensidade das imposições oriundas dos processos de globalização de produtos e serviços acaba impactando também as empresas não transnacionais. Ora, o fato de uma dada sociedade boicotar uma marca por violações aos direitos humanos ou por maltratar animais, por exemplo, além de resultar de um processo gradativo e educacional do consumidor, certamente influenciará outras sociedades menos conscientes sobre o seu poder de mobilização, dada a instantaneidade e a capilaridade da circulação dos principais acontecimentos, hoje no mundo.

O caso que vem ocupando destaque nos noticiários e que envolve as Lojas Americanas, uma das mais conhecidas e antigas lojas de departamentos do Brasil. Fundada em 1929 por Max Landesmann, John Lee, Glen Matson, James Marshall e Batson Borger, a empresa chegou a empregar mais de 40 mil pessoas até 2021 para vender seus produtos no varejo e também para explorar o e-commerce, além de serviços em áreas como finanças e tecnologia. O caso reforça a importância das diretrizes de compliance e da adoção de códigos de conduta no âmbito corporativo, além das searas pública e do terceiro setor.

Ainda mais, alerta para a urgência no desenvolvimento de mecanismos de controle mais aperfeiçoados pelo mercado acionário, uma vez que a capacidade criativa de gestores fraudadores configura permanente desafio para as instituições e auditorias.

A variedade de técnicas fraudulentas aplicadas ao caso acima propositadamente mascarou a real situação financeira das Lojas Americanas e a levaram a uma situação muito grave, não apenas para a própria companhia, mas para seus empregados diretos e indiretos, além de gerar reflexos na própria economia.

E, no caso, as investigações em curso levam a crer que foi a própria cúpula diretiva da empresa que a fraudou, o que torna ainda mais difícil para os órgãos internos e externos a prévia detecção de ações ilícitas e não éticas.

Quando nos defrontamos com decisões ilícitas e antiéticas a partir das esferas deliberativas, torna-se improvável que as áreas de compliance ou jurídica identifiquem eventuais fraudes e, ainda que o façam, muitas vezes as estruturas hierárquicas das companhias servem de fator intimidatório. Em nossa experiência temos convivido com situações esdrúxulas, em que vítimas de assédios terminam por ser demitidas, em alguns casos após denunciar seus assediadores no ambiente corporativo, especialmente quando estes compõem esferas hierarquicamente superiores na estrutura orgânica da empresa.

O caso das Lojas Americanas projeta tal situação quando é noticiado que a área jurídica da empresa recebia balanços falsificados. A diretoria hoje acusada de fraudar a companhia, em seus relatórios, teria elevado o resultado da empresa em R$ 25,3 bilhões; some-se, ainda, a redução “maquiada” da dívida financeira bruta em R$ 20,6 bilhões.

Sob um cenário como o descrito no qual as esferas com poder decisório da companhia estão contaminadas pela ausência de ética, de honestidade e utilizam sua criatividade e seus poderes de gestão para locupletamento pessoal, torna-se quase inviável que mecanismos de detecção internos e, também externos, apontem eventuais fraudes.

Basta lembrar que nem mesmo a Comissão Parlamentar de Inquérito instalada pelo Congresso Nacional para investigação da situação real das Lojas Americanas chegou a qualquer conclusão, isto é, não conseguiu identificar responsabilidades pelo rombo bilionário sobre o patrimônio da empresa e que atingiu algo em torno de R$ 40 bilhões (como aponta o relatório final da CPI), ainda que alguns parlamentares tenham sugerido que colegas estariam protegendo empresários, caso a ser apurado nas esferas adequadas e competentes.

Fato é que a atividade empresarial gera riscos para a sociedade, para os consumidores e para a economia de um país, especialmente quando suas sociedades são empobrecidas e assimétricas, como é o caso do Brasil.

Ora, as Lojas Americanas tinham sua marca incorporada ao dia a dia dos cidadãos; sempre fez parte do cotidiano de distintas camadas de nossa população, especialmente no comércio varejista e no e-commerce.

A manipulação dos balanços durante anos a fio por parte de alguns componentes de sua diretoria, incluído seu CEO, bem demonstra a dimensão dos riscos impostos ao próprio mercado, aos parceiros, aos trabalhadores etc. pelas atividades empresariais e que devem ser considerados quando do estabelecimento das responsabilidades e imputabilidades criminais, à referida diretoria.

Como explicam Marco Aurélio Florêncio Filho e Rodrigo Camargo Aranha, “o fundamento material para a inserção do empresário como garante dos fatos típicos cometidos no desenvolvimento da atividade empresarial (…) decorreria da conceituação da empresa como uma fonte de perigo para a sociedade (…) Todavia os empresários pecam em não ver tais riscos” (Responsabilidade Penal dos Dirigentes, in Governança, Compliance e Cidadania, p. 215/216. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. Org.: Irene Patrícia Nohara e Flávio de Leão Bastos Pereira).

Ora, as inconsistências contábeis que chegaram a R$ 20 bilhões, o rombo que atingiu R$ 40 bilhões, cerca de 5.500 demissões até o final de 2023 e 95 lojas fechadas (estatísticas vigentes até janeiro deste ano) bem demonstram as graves consequências para toda a sociedade.

O detalhamento do caso Lojas Americanas faz também despontar a necessidade de aperfeiçoamento das ações preventivas tendentes à construção de uma cultura de probidade, ética, profissionalismo e conformidade, sempre um dos aspectos mais difíceis para a consolidação de um ambiente corporativo saudável: mudar culturas nocivas capazes de destruir, em curto espaço de tempo, a reputação de marcas solidificadas ao longo de décadas.

A transparência, importante fator para uma gestão empresarial saudável e comprometida com o desenvolvimento intra e extra empresa, tem a partir de agora um case sobre como não se deve administrar: além dos balanços falsos distribuídos internamente e ao mercado, o grupo de diretores fraudadores reunia-se com frequência numa sala denominada “sala blindada”, para estabelecer os próximos passos de suas falcatruas. Note-se: gestores da cúpula administrativa da companhia portadores de informações privilegiadas. “Sala blindada” para a tomada de decisões que afetam toda a empresa e seus stakeholders não é uma ideia compatível com governança e transparência.

A criação, pela diretoria hoje investigada, de uma empresa fictícia, promissora e em crescimento contrastava com a realidade das Lojas Americanas, denominada na correspondência trocada entre os fraudadores como “a vida como ela é”.

Diante de um quadro tão devastador e que inviabiliza uma grande empresa já sedimentada no mercado brasileiro e no dia a dia de todos, um exemplo que deverá sempre ser revisitado, qual a importância do estabelecimento de ações preventivas e propiciadoras de nova cultura corporativa?

É essencial a concepção de códigos de conduta, normas de conformidade e o constante treinamento de funcionários e colaboradores, incluídas as altas esferas decisórias, fornecedores e parceiros.

A conscientização de que a empresa com suas marcas saudáveis e sua credibilidade e reputação íntegras é algo que depende de cada setor e cada profissional já pode ser considerada um importante início para que os bens hoje considerados de alta relevância sejam valorizados, protegidos e, quando violados, ressarcidos. Consumidores mais conscientes não mais aceitam adquirir serviços e produtos de empresas que destroem a biodiversidade; que corroem com suas atividades os direitos sociais e, ainda, que não aplicam em suas cadeias produtivas os princípios e as boas práticas da governança.

Ideias como trabalho decente, crescimento econômico, inovação, redução das desigualdades, consumo e produção responsáveis, constituem objetivos para o desenvolvimento sustentável estabelecidos pelas Nações Unidas, no âmbito da Agenda 2030 (ver ODS 8,9,10 e 12) e guardam íntima relação com os escopos de uma empresa ética e sustentável.

A parceria com profissionais capacitados que possuem o conhecimento necessário para a construção de uma cultura corporativa ética e em conformidade com as leis vigentes, assim como o aperfeiçoamento de estratégias de controle acionário mais eficazes; estabelecimento e treinamento sobre códigos internos de conduta, são atualmente condições essenciais para o empreendedorismo mais promissor.

Afinal, os bons profissionais desejam atuar em empresas que sejam reconhecidas não apenas pelo valor de suas marcas, mas também como responsáveis por ações que transformem seu entorno e o mundo em lugares sustentáveis e melhores para se viver.

Já é passada a hora para que as empresas assumam de modo predominante tais responsabilidades.