Em um cenário no qual o acesso à justiça é um pilar fundamental da democracia, a integridade do sistema judiciário é constantemente desafiada por práticas abusivas que visam a manipular e distorcer os objetivos legais.
A litigância predatória pode ser definida como a prática abusiva e estratégica de utilização do sistema judiciário para fins espúrios (ilícitos), desviados ou egoístas, ou ilícitos, abusando de situações jurídico-processuais subjetivas (direitos, deveres, ônus, poderes e faculdades) e ignorando os escopos fundamentais do processo, comprometendo a integridade do devido processo legal e os princípios da cooperação e da lealdade processual.
Nessa direção, tais práticas representam a anticidadania, erodindo a boa-fé e fragilizando os serviços de justiça. No âmbito trabalhista, a Nota Técnica 001/2024, aprovada e publicada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT15) no mês de maio último, oferece um estudo atento e crítico a propósito desse fenômeno, propondo medidas concretas para sua identificação, prevenção e combate.
Ao explorar o vasto campo dos acessos possíveis à Justiça do Trabalho, a referida nota técnica não apenas delineia os contornos da litigância predatória nos processos trabalhistas, como também revela suas implicações mais profundas, como as arraigadas relações com o dumping social (quando empresas se valem de sua superioridade econômica para manipular o sistema judicial e adiar a quitação de obrigações trabalhistas, sobrecarregando o Judiciário e forçando acordos desfavoráveis aos trabalhadores). Essa prática insidiosa não só prejudica a parte adversa, mas também mina a confiança pública nos sistemas de justiça.
Como exemplos recorrentes de litigância predatória, cite-se a apresentação de ações judiciais temerárias ou sem mínimo fundamento legal, a distorção processual dos fatos, o uso de documentos fraudulentos e a multiplicação de ações similares por um mesmo autor, para reduzir as possibilidades de defesa do réu.
Essas práticas objetivam explorar os pontos fracos do sistema judicial para obter vantagens indevidas ou prejudicar a parte adversa; e, já por isso, demandam a necessidade de uma abordagem institucional coordenada, inclusive entre os vários tribunais do país, para identificá-las e combatê-las. Servem a esse propósito a edição de atos normativos específicos e a adoção de critérios claros para a identificação da litigância predatória.
É imprescindível, outrossim, a internalização de uma abordagem preventiva. Isso inclui a capacitação contínua de magistrados, servidores e advogados para reconhecerem e lidarem com a litigância predatória, bem como a implementação de mecanismos de monitoramento e controle para detectar essas práticas danosas já em seus estágios iniciais.
Para esse efeito, a referida Nota Técnica 1/2004 apresenta um fluxograma que envolve diversos segmentos das administrações e das áreas-meio dos tribunais regionais do trabalho (presidências, ouvidorias, corregedorias, departamentos de tecnologia da informação etc.), admitindo-se tanto as denúncias externas quanto o reconhecimento “ex officio”, pelo juiz oficiante da causa, das demandas predatórias.
Em paralelo, ademais, é imperioso promover uma cultura de litigância responsável e ética, assegurando-se a integridade e a eficiência do sistema judiciário trabalhista. O TRT15, em sua nota técnica, propõe a implementação de medidas educacionais e de conscientização interna e externa para fomentar essa cultura (incluindo a promoção de boas práticas entre advogados e partes litigantes e o incentivo à resolução de conflitos de maneira consensuada, justa e honesta).
No limite, o juiz da causa ou a administração do tribunal, pelos órgãos a tanto afetados, exercerá o poder-dever de comunicação da litigância predatória aos órgãos competentes, como a OAB (para a punição ético-disciplinar do advogado promotor de litigância predatória, por força do art. 34, III e IV, da Lei 8.906/94), os diversos órgãos do Ministério Público (em especial no âmbito do Ministério Público do Trabalho, em se tratando de ações trabalhistas) e as próprias corregedorias regionais. Poderá o juiz natural, outrossim, julgar extinto o processo sem exame do mérito (artigo 142 do CPC c.c. art. 769 da CLT), especialmente em casos nos quais haja falta de fundamento legal substancial ou quando se identifique a intenção clara de utilizar o Judiciário de forma abusiva e injusta.
Tal é a importância do tema que o XIV Congresso Internacional de Direito do Trabalho, organizado pela Academia Brasileira de Direito do Trabalho (ABDT) para os próximos dias 19 e 20 de setembro, em São Paulo, terá como tema nuclear, em uma de suas mesas, a litigância predatória, a fim de delimitar o seu conceito, buscar instrumentos aptos a garantir maior justiça e equidade nas relações de trabalho, proteger os direitos dos trabalhadores e reforçar a credibilidade da Justiça trabalhista.
Atribui-se a Tucídides, o maior dentre todos os historiadores da guerra do Peloponeso (até porque dela foi partícipe e testemunha), a afirmação de que a justiça não chegaria a Atenas até que aqueles que não foram feridos ficassem tão indignados quanto os tantos outros que foram feridos. Neste momento, vive-se algo semelhante quanto ao tema em destaque.
A litigância predatória pode parecer uma realidade distante de você, quase como se fosse uma cerebrina tese acadêmica. Mas os números revelam que essa chaga tem se alastrado; e, a par das hipóteses legais de litigância de má-fé e de atos atentatórios à dignidade da Justiça, a legislação em vigor não tem antídotos para essas práticas cada vez mais massificadas. Chegarão até nós. Neste momento, portanto, a resposta institucional não pode ter outra forma, se não a das boas políticas judiciárias, em perspectiva nacional (pelo Conselho Nacional de Justiça) ou regional (pelos tribunais). Antes que Atenas – ou quiçá Temis – sucumba por completo.
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