Litigância predatória de quem? O excesso de acesso de poucos e a falta de acesso de muitos

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Está pautado, para esta quarta-feira (22/11), o julgamento do Recurso Especial 2.021.665/MS, afetado para o tema 1198 de recursos repetitivos no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que definirá uma tese sobre a “possibilidade de o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários”.

Pela relevância da questão e os impactos negativos que podem gerar para o acesso à justiça, grupos de pesquisa credenciados no CNPq, envolvendo pesquisadores de todo o país, e núcleos de prática jurídica ligados a universidades (FDUSP, FDRP/USP, UNESP, UFMG, DIREITOGV/SP) pediram, pela primeira vez, seu ingresso como amici curiae, demonstrando a cautela que deve orientar a fixação desta tese, especialmente no que toca aos possíveis impactos dessa decisão sobre o acesso à justiça de grupos minoritários, vulneráveis e hipossuficientes. As considerações, apresentadas em manifestação escrita protocolada na última segunda-feira, 20/11, são extraídas de pesquisas que servem de embasamento às agendas de pesquisa dos grupos, todos ligados à discussão sobre acesso à justiça e desigualdades no contexto brasileiro atual.

A questão submetida a julgamento pela sistemática de recursos repetitivos sobre a litigância predatória envolve conceitos ainda não muito claros no nosso sistema de justiça e defesas veementes dirigidas a racionalização e limitação do exercício do direito de ação, embasadas no recente aumento de casos novos (10% entre 2021 e 2022), como relata o CNJ na última edição de sua publicação anual “Justiça em Números”, e exemplos pontuais em comarcas de diferentes estados da federação, que sofrem com o excessivo ajuizamento de demandas padronizadas e desprovidas de documentação essencial para a sua propositura.

Todavia, por si só, dados que dizem respeito ao volume de processos em trâmite no judiciário brasileiro e o índice de litigância repetitiva não são capazes de representar as características da litigância do nosso país. E dados sólidos indicando as nuances dessa litigância repetitiva.

Primeiro,  o painel dos grandes litigantes do CNJ: uma consulta no Estado de onde o recurso especial representativo é oriundo (Mato Grosso do Sul), citado inúmeras vezes como exemplo de tribunal com litigância em excesso, indica que há praticamente a mesma quantidade de demandas em que instituições do sistema financeiro figuram como autoras e rés. A exemplo do Banco Santander, recorrido no recurso representativo, ele é réu em 1.730 processos e autor em outros 1.240; o Banco Bradesco, por sua vez, é mais vezes autor do que réu: está no polo passivo em 7.763 processos e, no polo ativo, em 9.324 processos.[1] E nem por isso foi imputada à atuação destas instituições a prática de “litigância predatória”.

Pesquisa realizada pela DIREITOGV/SP e denominada “Litigiosidade, Morosidade e Litigância Repetitiva no Judiciário”[2] buscou identificar as causas do aumento da litigiosidade no Brasil, os atores envolvidos nos litígios, a repercussão causada pelos mesmos no Poder Judiciário e a resposta que é dada a eles. Concluiu que a atuação do Poder Público e de grupos econômicos, em grande parte, contribui para a geração de um ambiente propício ao aumento da litigiosidade. O relatório de pesquisa destacou a “forma de regulamentação das relações público-privadas e entre os próprios entes privados, marcada pelo excesso de normas e por ‘zonas cinzentas de regulamentação’ que favorecem o surgimento de conflitos interpretativos acerca do Direito aplicável a determinada situação de fato, bem como de oportunidades para a criação de teses jurídicas que chegam ao Judiciário”.

Tais conclusões dialogam com dados acerca do papel dos grandes litigantes e do impacto de sua atuação no cenário da litigiosidade no Brasil, apresentados em importante levantamento do CNJ divulgado no sempre citado Relatório dos “100 Maiores Litigantes” (2012), que demonstrava que 38,2% do total de ações ingressadas em 2011 envolvia, em um dos polos, um dos 100 maiores litigantes mapeados pelo estudo – INSS, bancos, concessionárias de serviços, Estados e Municípios: o retrato mais escancarado do oligopólio do uso da justiça no Brasil pelos grandes litigantes.

Corroborando os dados sobre o papel dos grandes litigantes na geração da litigiosidade no Brasil, pesquisa desenvolvida por Pedro Augusto Gregorini, sob a orientação da Prof. Maria Paula Bertran (FDRP/USP)[3], por meio de inteligência artificial, analisou cerca de 120 mil ações julgadas pelo TJSP em 2019, concluindo que, quando os bancos são réus, em apenas 26% dos casos o consumidor não tem qualquer razão, havendo sentença de procedência, parcial procedência e acordos nos demais casos.

Pelos dados acima expostos e outros apresentados na manifestação, é possível verificar que, ao contrário do discurso comum, os grandes litigantes despejam no Judiciário um volume significativo de demandas judiciais atuando no polo ativo.

Por outro lado, a premissa de que as regras e arranjos institucionais brasileiros levam a um cenário de “excesso de acesso” e até mesmo de “acesso abusivo” por parte de determinados grupos vulneráveis no Brasil é repetida com base em casos pontuais. Alguns dados sobre acesso à justiça no Brasil, porém, traçam uma realidade bastante diferente dessas afirmações.

O relatório da pesquisa “Global Insights on Access to Justice”, produzido pela World Justice Project, voltada à averiguação dos níveis de acesso à justiça ao redor mundo, aponta que 69% dos brasileiros experimentaram alguma forma de problema jurídico nos dois anos que antecederam a realização da pesquisa (2016-2017), superando a média global de apenas 49%. Desse montante, apenas 50% sabiam como obter informações acerca dos modos de resolução do problema, enquanto 43% sentiam que poderiam obter toda a informação necessária para tal. No entanto, meros 13% reportaram ter sido capazes de obter ajuda (em contraposição a uma média global de 29%), dos quais, majoritariamente, houve a busca de ajuda de amigos e/ou familiares (40%), contrapostos ao quase ínfimo impacto da Justiça, do Governo e da Polícia no provimento de informações relevantes às soluções dos problemas jurídicos enfrentados pelos brasileiros (7%).

Deste modo, a pesquisa mostra que o Brasil apresenta índices mais altos de conflitos jurídicos do que a média global, porém um índice consideravelmente inferior de pessoas que buscam algum tipo de ajuda nesses casos.

Esses dados apontam para trajetórias de conflitos sociais marcadas pela renúncia à busca por garantia judicial de direitos. No Brasil, certamente em função das abissais desigualdades sociais existentes, a chamada pirâmide da litigância é extremamente afunilada. Entre um degrau e outro desta pirâmide, uma quantidade significativa de pessoas que poderiam ter tido seus direitos violados são deixadas para trás.

Ao contrário do também muitas vezes sustentado pelo senso comum, não há, portanto, uma busca habitual e desenfreada dos cidadãos pelo Judiciário. Por mais contraintuitivo que possa parecer, a verdade é que é um pequeno percentual de conflitos que desemboca no Judiciário, a despeito do número de processos ser quantitativamente relevante.

É necessário dissociar a ideia de litigância predatória da premissa de excesso de acesso à justiça. O acesso à justiça no Brasil não é amplo, tampouco universal, sendo oferecido em grandes quantidades a muitos, e excluindo muitos grupos marginalizados. Litigância predatória e litigância repetitiva também não se confundem: igualar fraude e desvio de finalidade à estratégia e repetitividade é, para além de um equívoco conceitual, uma escolha gerencial perigosa e ilegítima.

Autores:

Camilo Zufelato – Professor titular de Direito Processual Civil (FDRP/USP). Membro do Centro de Estudos em Direito e Desigualdades da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP).

Susana Henriques da Costa – Professora Doutora em Processo Civil (FDUSP); coordenadora do grupo de pesquisa  Acesso à Justiça e Litigância Repetitiva (FDUSP); Secretária Especial de Políticas Cíveis e de Tutela Coletiva da Procuradoria-Geral de Justiça (MPSP); promotora de justiça (MPSP)

Maria Cecília de Araujo Asperti – Professora de Direito Processual da FGV Direito SP; Doutora em Direito Processual Civil (USP); coordenadora do Núcleo de Acesso à Justiça, Processo e Meios de Solução de Conflitos da FGV Direito SP; advogada orientadora do Departamento Jurídico XI de Agosto (USP) e do Centro de Assistência Jurídica Saracura (CAJU – FGV)

Thaís Amoroso Paschoal – Professora de Direito Processual Civil na UNESP – Universidade Estadual Paulista. Doutora e Mestre em Direito (UFPR). Membro integrante do IBDP e da Processualistas. Pesquisadora do CCons – Centro de Estudos da Constituição, e dos Núcleos de Pesquisa Direito Processual Civil Comparado e Meios adequados de solução heterônoma de conflitos, dentro e fora do Estado, do PPGD-UFPR, ambos integrantes da ProcNet – Rede Internacional de Pesquisa Justiça Civil e Processo Contemporâneo.

Renata Christiana Vieira Maia – Professora adjunta de Direito Processual Civil da UFMG; Diretora da DAJ – Divisão de Assistência Judiciária da Faculdade de Direito da UFMG; Co-coordenadora do Projeto Observatório do Judiciário da Faculdade de Direito da UFMG.

⁠Maria Elisa Cesar Novais – Doutora em Direito Processual Civil (USP); pesquisadora do grupo Acesso à Justiça e Litigância Repetitiva (USP); professora de graduação e pós-graduação (Universidade Presbiteriana Mackenzie); advogada.

Nubia Regina Ventura – Doutora em Direito Processual Civil pela FDUSP; Mestra pela FDRP-USP; pesquisadora integrada ao grupos de pesquisa “Acesso à justiça e litigância repetitiva – USP”; advogada.

Ananda Palazzin de Almeida – Mestre em Direito Processual Civil (USP); Especialista em Direito Processual Civil (FGV); pesquisadora do grupo Acesso à Justiça e Litigância Repetitiva (USP); advogada.

Bruna Guapindaia Braga da Silveira – Doutora em Direito pela USP; Mestra pela PUCSP; Professora de pós graduação do Cesupa/PA; pesquisadora integrada ao grupos de pesquisa “Acesso à justiça e litigância repetitiva – USP”.

Pedro Augusto Silveira Freitas – Doutorando em Direito pela USP; Mestrado pela UFMG; Diretor Executivo do IDPro; pesquisador integrado aos grupos de pesquisa “Acesso à justiça e litigância repetitiva – USP” e “Observatório do Judiciário – UFMG”.

Igor Moraes Rocha – Mestrando em Direito pela USP; pesquisador integrado aos grupos de pesquisa “Acesso à justiça e litigância repetitiva – USP” e “Observatório do Judiciário – UFMG”.

⁠Joao Vitor Leite Pessoa – Graduando em Direito pela USP; estagiário plantonista do Departamento Jurídico XI de Agosto; estagiário do “Núcleo de Acesso à Justiça, Processo e Meios de Solução de Conflito” da FGV Direito SP.

[1] Disponível em https://grandes-litigantes.stg.cloud.cnj.jus.br/. Acesso em 19 nov. 2023.

[2] CUNHA, Luciana Gross; GABBAY, Daniela Monteiro (Coord.). Litigiosidade, Morosidade e Litigância Repetitiva: uma análise empírica. Série Direito e Desenvolvimento (DIREITO GV). Saraiva: São Paulo, 2013. Trata-se de publicação de pesquisa realizada pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em  CUNHA, Luciana Gross; GABBAY, Daniela Monteiro (Coord.). Litigiosidade, Morosidade e Litigância Repetitiva: uma análise empírica. Série Direito e Desenvolvimento (DIREITO GV). Saraiva: São Paulo, 2013. Trata-se de publicação de pesquisa realizada pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em atendimento ao Edital de Seleção nº 01/2009 do CNJ, publicada também pelo próprio CNJ pela Série Demandas Repetitivas e Morosidade na Justiça Brasileira (Brasília: CNJ, 2011), mesma série de estudos do qual o estudo citado pelo Prof. Luciano Timm em audiência pública realizada no STJ, denominado “Demandas repetitivas relativas ao sistema de crédito no Brasil e propostas para sua solução”, foi publicado.

[3] GREGORINI, Pedro Augusto. Jurimetria aplicada aos litígios em massa: o perfil dos processos envolvendo os bancos na Justiça Estadual de São Paulo. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito de Rio Preto da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto: USP, 2021.