Linguagem constitucional

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“No entanto, num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte, como em outros tempos não se queria reconhecê-lo nas situações em que ele entrava pelos olhos dentro, não é inútil lembrar que […] é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.[1]

Democracias são construídas sobre instituições, mas também sobre palavras. Isso porque as palavras têm importância no âmbito político e representam um exercício específico de poder simbólico, como foi destacado por Bourdieu. Especialmente em democracias liberais, onde a argumentação e a persuasão são elementos essenciais do processo político, a palavra é o principal instrumento de ação política.

Recentemente, Donald Trump concedeu uma longa entrevista à revista Time. Durante a conversa, o entrevistador Eric Cortellessa fez perguntas difíceis sobre os posicionamentos do ex-presidente e como o público poderia interpretar negativamente algumas de suas declarações.

Duas perguntas se destacam. A primeira abordou uma declaração anterior de Trump, durante uma conversa na Fox News, na qual ele afirmou, de forma jocosa, que queria ser ditador por um dia. Trump disse que não queria ser um ditador, exceto em seu primeiro dia, para fechar as fronteiras e impedir a imigração.

A segunda frase talvez seja ainda mais preocupante. Quando questionado por Cortellessa se ele não achava que muitos americanos veriam suas declarações sobre ditadura como contrárias ao espírito dos Estados Unidos, Trump respondeu: “[a]cho que muitas pessoas gostam da ideia”. Em seguida, ele acrescentou uma frase afirmando que tudo era uma brincadeira e que o povo entendia, mas a mídia não.

Classificar as declarações do ex-presidente como problemáticas certamente concorreria ao prêmio de eufemismo do ano. Os posicionamentos de Trump têm grande relevância para nós, no Brasil, por um motivo em particular: seu efeito demonstrativo.

Tomado emprestado da economia pela ciência política, o efeito demonstrativo descreve um fenômeno peculiar de exportação de ideias por países. Quando, por exemplo, uma revolução ou mesmo uma política pública ganha repercussão além-fronteiras, países vizinhos acabam propensos a tentar repetir o feito. A Primavera Árabe é um exemplo ilustrativo da ideia.

Uma nova vitória de Trump, portanto, tem o potencial de contribuir, novamente, para a onda de populismo autoritário que tem contaminado vários países como um vírus, porque, como apontaram Møller e Skaaning: “Quando forças democráticas predominam, efeitos demonstrativos pró-democráticos se proliferam e democracias florescem; quando forças autocráticas preponderam, efeitos demonstrativos antidemocráticos abundam e regressões democráticas dominam”.[2]

Nesse contexto, então, a linguagem constitucional ganha especial relevância. Seguindo as lições de Marcondes,[3] a linguagem pode ser tratada em três dimensões: sintática, semântica e pragmática. Na análise sintática, avalia-se formalmente a relação entre signos; na semântica, avalia-se o significado deles; e, por fim, na pragmática, tem-se o estudo da linguagem em uso corrente pelas pessoas. É neste último ponto que identificamos uma problemática na fala do ex-presidente americano.

A estratégia performática de Trump banaliza o uso de conceitos e ideias caras para as instituições democráticas. Trump flerta com o autoritarismo abertamente fazendo uso pragmático da linguagem, muitas vezes negando implicitamente sua dimensão sintática e semântica, sob o pretexto de conjecturas pessoais. Esse poder simbólico não pode passar despercebido e nem deve ser relativizado.

Em Sobre a tirania, Tim Snyder explica a necessidade de defendermos nossas instituições e como elas correm risco sem o respaldo popular. A sustentação de uma democracia, portanto, depende não só de suas instituições, mas também de seus cidadãos.

Dessa forma, uma sociedade sem cultura democrática corre risco de se perder – e esse risco se agrava quando líderes populistas abusam da linguagem antidemocrática. Quando pessoas em posições de poder, eleitas para representar o povo, passam a proferir discursos sem compromisso com a democracia, não demorará muito até que seus seguidores ecoem a mensagem.

A nova onda de autocratas – composta por figuras como Orbán e Bukele – repete um modus operandi dissimulado. Como apontou Kim Lane Scheppel, ao “invés de rejeitar a linguagem do constitucionalismo em nome de uma grande ideologia, como seus antepassados fizeram, os novos autocratas legalistas abraçam a linguagem constitucional e democrática enquanto se esquivam de qualquer compromisso com os valores liberais que dão significado a essas palavras”.

Trump parece continuar sua caminhada nesse sentido, valendo-se de uma linguagem dúbia para flertar de maneira cada vez mais ousada com valores contrários ao constitucionalismo liberal, que sustenta a estrutura política e social da mais tradicional democracia do mundo.

Muitas pessoas podem alegar que esse tipo de fala seja apenas uma espécie de bravata. Mas nenhuma avaliação íntegra de compromisso com os valores democráticos pode desconsiderar o elemento discursivo. Isso porque, segundo Foucault, “[…] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”.[4]

Assim, reconhecendo o discurso político como ferramenta de poder simbólico e como campo de ação política transformadora da realidade – para melhor ou pior –, sustentamos que comedimento no uso indiscriminado e positivo de conceitos como “ditadura” ou restrição a direitos de minorias na linguagem política ordinária é parte do dever público de líderes políticos – pelo menos se estivermos falando em democracias.

É só entendendo o poder que a linguagem desempenha em uma sociedade que nos tornamos capazes de enfrentar aqueles que buscam utilizá-la como instrumento de corrosão da democracia liberal.

[1] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 07.

[2] MØLLER, Jørgen; SKAANING, Svend-Erik; TOLSTRUP, Jakob. International Influences and Democratic Regression in Interwar Europe: Disentangling the Impact of Power Politics and Demonstration Effects. Government and Opposition, v. 52, n. 4, p. 559–586, 2017. p. 561.

[3] MARCONDES, Danilo. A teoria dos atos de fala como concepção pragmática de linguagem. Filosofia Unisinos, set/dez 2006.

[4] FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970. 20. ed. Tradução:  Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2010. p. 08-9.