Limitações às cláusulas de eleição de foro

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No último dia 20 de maio, foi enviado para sanção presidencial o PL 1803/23[1], objetivando alterar a redação do art. 63/CPC para fazer constar, dentre outros elementos, que a eleição de foro somente produzirá efeitos quando guardar pertinência com o domicílio ou residência de uma das partes ou com o local da obrigação. Ainda, o PL considera o ajuizamento da ação “em juízo aleatório” como prática abusiva, e autoriza ao juízo do foro eleito que decline de sua competência. Após sancionada na última terça-feira (4/6), a Lei 14.879/24 está oficialmente em vigor.

De início, nota-se que, ao menos no campo dos contratos empresariais, a nova redação atribuída ao art. 63/CPC não objetiva modificações, acréscimos ou supressões no texto original, mas sim a sua total revogação, reafirmando-se as regras ordinárias de fixação de competência para litígios envolvendo obrigações e contratos privados (art. 53, III/CPC).

Ao estabelecer a possibilidade de o juiz, de ofício, negar vigência à cláusula de eleição de foro que contrarie as regras de competência relativa estabelecidas no art. 53, III, a Lei prestou-se a afirmar essas regras como se de competência absoluta fossem, de modo que qualquer cláusula de eleição de foro livremente pactuada será ou dispensável, ou viciada. Em outras palavras, se as partes desejam valer-se do foro do local de suas sedes, agências ou filiais, ou do foro do lugar do cumprimento das obrigações avençadas, a cláusula é supérflua, mas se desejam outro foro, é abusiva.

No mérito, a justificativa da Lei 14.879/24 baseou-se em dois argumentos centrais. O primeiro é que a eleição de foro, embora autorizada pelo CPC, não poderia ser “aleatória”, sob pena de violação das cláusulas gerais de boa-fé objetiva e lealdade processual.

Nesse ponto, apesar da vagueza dos termos utilizados pelo legislador, destaca-se que, de forma inusitada, esses conceitos – tipicamente utilizados para a defesa de interesses de particulares em suas relações jurídicas com outros particulares – foram invocados para a defesa de supostos interesses do Estado-juiz. A ideia de “prática abusiva” do novo art. 63, § 5º, não consiste em abuso de direito de um particular em relação ao outro, mas sim de ambas as litigantes para com o Poder Judiciário, o que nos parece inédito em matéria legislativa.

Como segundo argumento, a exposição de motivos aduz que o exercício da autonomia privada deveria ser limitado pelo interesse público na eficiência e na qualidade da prestação jurisdicional oferecida pelos tribunais – o exemplo dado é a suposta superlotação de processos no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), que teriam sido ali ajuizados em razão da celeridade do órgão para apreciação das demandas.

Ocorre que tais premissas, além de serem questionáveis, contrariam a lógica que rege os contratos empresariais, implicando grave retrocesso à liberdade de contratação. A todo sentir, há um contrassenso entre a motivação da Lei 14.879/24 e as tendências do direito empresarial contemporâneo de privilegiar [i] a autonomia das partes, em prol da segurança e previsibilidade nas relações comerciais e [ii] a especialização dos magistrados responsáveis pelo julgamento de litígios entre empresas, mediante a criação de varas e câmaras reservadas para a apreciação dessas matérias.

Em primeiro lugar, não há que se falar em escolha aleatória e abusiva do foro. O contrato empresarial, diferente dos contratos consumeristas ou civis, é marcado pela presença de contrapartes sofisticadas, presumidamente acostumadas ao giro mercantil e às suas peculiaridades. Fala-se, em suma, que o agente econômico presume-se racional e, como consequência, busca naturalmente o foro que lhe proporciona maior grau de segurança e previsibilidade em suas decisões[2].

O sistema de direito empresarial funda-se na sedimentação de uma série de princípios, como as liberdades de iniciativa e concorrência, o princípio pacta sunt servanda e a proibição de o juiz negociar pela parte[3]. Esses fundamentos da ordem econômica, em conjunto, indicam que, se as partes elegem determinado foro para dirimir as controvérsias advindas do contrato, essa escolha deve ser respeitada, sob pena de violação à sistemática que rege os contratos empresariais.

Em síntese, a lógica trazida pela nova Lei não pode ser transportada aos contratos empresariais sem prejudicar o fluxo de relações econômicas. Os agentes econômicos buscam a maximização de seus ganhos que, no âmbito da solução de controvérsias, significa celeridade e eficiência. Não por outra razão, o número de arbitragens instauradas no Brasil aumentou nos últimos anos[4].

Contudo, a Lei 14.879/24 ignora o reflexo da solução proposta na qualidade da prestação jurisdicional oferecida às empresas, à medida que a vinculação obrigatória dos agentes econômicos a certo foro não implica a especialização dos órgãos judiciários para o melhor atendimento do jurisdicionado. Ao desconsiderar essa realidade, a proposta desincentiva a realização de negócios de grande porte fora do eixo de negócios do Sudeste do país.

Ademais, é descabida a premissa adotada pelo legislador de que a cláusula de foro superlotaria tribunais alheios à controvérsia. Afinal, a exposição de motivos da Lei 14.879/24 nem sequer é fundamentado em números que permitam concluir qual a natureza das demandas comumente submetidas a outros tribunais e, principalmente, se o número de demandas “forasteiras” – se é que esta denominação é possível – é materialmente relevante.

Pelo contrário, a justificativa é limitada à narrativa de que o TJDFT “vem recebendo uma enxurrada de ações decorrentes de contratos que elegeram o Distrito Federal como foro de eleição para julgamento da causa, (…) pelo fato de que, no TJDFT, os processos tramitam mais rápido do que na maior parte do país”. A exposição de motivos não cita dados indicando que o montante de processos recebidos impactaria a qualidade dos julgamentos ou a celeridade do órgão. E não poderia ser de outro modo, uma vez que a realidade nega qualquer possibilidade de se argumentar nesse sentido.

Conforme apurado em pesquisa desenvolvida junto à FGV SP em 2023 sobre a especialização da Justiça em São Paulo, a criação de varas e câmaras específicas para julgamento de conflitos empresariais tende a aumentar a segurança jurídica para as empresas, sem comprometer a celeridade[5].

No caso de demandas de dissolução parcial de sociedade em São Paulo, por exemplo, concluiu-se que a duração dos processos é aproximadamente 37% menor nas varas especializadas, em comparação com as cíveis. Como consequência, o TJSP tornou-se referência, passando a ser polo de atração eleição de foro de diversas avenças empresariais celebradas em todo o país[6].

A Lei 14.879/24, ao buscar coibir vantagens indevidas para proteger o interesse público, contribui para o desmoronamento do ambiente propício aos negócios formados pelos tribunais que seguiram a Recomendação 56/2019 do Conselho Nacional de Justiça (“Recomenda aos Tribunais de Justiça que promovam a especialização de varas e a criação de câmaras ou turmas especializadas em falência, recuperação empresarial e outras matérias de Direito Empresarial”).

Em arremate, seja por falha na redação legislativa ou pelo escasso e pouco divulgado debate público, a Lei 14.879/24 implica graves retrocessos no âmbito dos contratos empresariais. Dentre as consequências da proposta, pode-se citar a diminuição da segurança e da previsibilidade nos mercados e o aumento da morosidade na solução de controvérsias, sem uma correspondente contribuição para a especialização da Justiça em matéria empresarial, conforme recomenda o CNJ.

Serve o presente comentário, pois, para iniciar reflexões sobre o tema e, com alguma sorte, reverter seus efeitos no âmbito do direito empresarial.

[1] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2355765.

[2] FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, pp. 109-185.

[3] Ibidem.

[4] V. a pesquisa “Arbitragem em Números”, desenvolvida pela Profª. Selma Ferreira Lemes. Disponível em https://canalarbitragem.com.br/wp-content/uploads/2023/10/PESQUISA-2023-1010-0000.pdf.

[5] V., por exemplo, o estudo da Dra. Ana Paula Nani junto à FGV São Paulo, objeto da matéria do Estúdio Jota intitulada “Varas focadas em conflitos empresariais são mais céleres e reforçam arbitragem: pesquisa com TJSP observou redução de 37% no tempo de julgamento e possibilidades de cooperação com câmaras arbitrais”, publicada em 07/11/2023 (https://www.jota.info/coberturas-especiais/seguranca-juridica-investimento/varas-focadas-em-conflitos-empresariais-sao-mais-celeres-e-reforcam-arbitragem-07112023). No mesmo sentido, a matéria de Joice Bacelo para o Valor Econômico, intitulada “Varas judiciais empresariais são mais céleres: tempo de tramitação das ações nas varas generalistas é o dobro, aponta pesquisa inédita”, publicada em 01/08/2023 (https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2023/08/01/varas-judiciais-empresariais-sao-mais-celeres.ghtml).

[6] Ibidem.

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