Recentemente, o debate nacional pautou-se na potencial aprovação de prospecção de petróleo na foz do rio Amazonas, uma região que abriga um dos ecossistemas mais importantes do planeta, assim como terras indígenas. Nesse contexto, houve críticas ao Ibama por falta de celeridade no processo de licenciamento e consequente emissão da licença autorizando essa atividade.
Esse tema é delicado e tem transcendido governos. A situação nos remete a um outro empreendimento que aguarda autorização para ser implementado na Amazônia.
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Desde 2012, a canadense Belo Sun Mining Corporation Ltd. tenta instalar a maior mina a céu aberto do Brasil, assim como uma planta de processamento, na Volta Grande do Rio Xingu, no município de Senador José Porfírio. A Volta Grande é uma curva natural de 100 km do rio Xingu, cujas águas são desviadas por diques e canais artificiais para geração de energia de Belo Monte.[1]
Na Volta Grande, habitam peixes ornamentais e outros que são a principal fonte de proteína para as comunidades ribeirinhas da região. Além disso, a Volta Grande tem também uma função recreativa e espiritual para seus moradores. O projeto de Belo Sun planeja ser instalado a 10 km de distância da barragem de Belo Monte, a quinta maior hidrelétrica do mundo.
De acordo com dados da Belo Sun, se instalada, a mina extrairá até 7 milhões de toneladas de ouro por ano, ocupando uma área de 2.400 hectares de terras na Volta Grande. Potencialmente, haverá a formação de uma barragem de rejeitos de 35 milhões de metros cúbicos.
A questão sobre o licenciamento desse projeto resurgiu recentemente nos noticiários ambientais, pois o TRF1 decidiu que o licenciamento de Belo Sun deveria voltar a ser conduzido pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (SEMAS/PA) em vez do Ibama, que emitiu as licenças de Belo Monte e atualmente monitora os impactos socioambientais da hidrelétrica.
Essa é apenas uma dentre outras ações judiciais envolvendo a Belo Sun, incluindo uma ação interposta pelo Ministério Público Federal questionando a emissão da licença de instalação do empreendimento, que se encontra suspensa.
Por ironia ou coincidência, embora os “belos” nos nomes desses dois empreendimentos nos induzam a pensar em algo bonito e harmonioso, há sérias dúvidas sobre essa realidade para as populações que vivem no entorno desses projetos.[2]
A coordenação e participação pública de atores interessados não foram “belas” desde o começo do licenciamento do projeto da Belo Sun. A mineradora planeja instalar seu empreendimento nas proximidades de três terras indígenas: Paquiçamba, Arara da Volta Grande e Ituna/Itatá.
Além disso, a área do projeto abrange terras públicas e de interesse do Incra bem como é uma área de incidência de malária de acordo com a Funasa. Assim, esses órgãos e a Funai deveriam ter sido consultados na elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) desde a elaboração do seu termo de referência. No entanto, não foi o que ocorreu nesse caso.[3]
Um exemplo de falta de ações articuladas e consulta pública se constata pelo fato de que, enquanto a Norte Energia, consórcio responsável pela implantação e operação de Belo Monte, tinha compromissos socioambientais na área da Volta Grande como parte do licenciamento da hidrelétrica, incluindo revitalizar uma escola e instalar saneamento no município de Senador José Porfírio, a mineradora Belo Sun teria que reassentar a população para então instalar seu projeto.
Ou seja, dois empreendimentos sendo instalados a 10 km de distância, com obrigações contraditórias: um deveria realizar melhorias na região e o outro deveria realocar a todos para outra região desfazendo todos os compromissos socioambientais do primeiro!
Esse exemplo já seria suficiente para demonstrar não só a falta de coordenação e planejamento territorial, mas também a ausência de participação de atores interessados no licenciamento de ambos os projetos. Se entre os proponentes dos projetos não houve uma comunicação adequada e participação pública planejada, imagine a consulta às populações da região?
O EIA e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) do projeto da Belo Sun foram disponibilizados para consulta pública na biblioteca da SEMAS, em Belém, que fica a 826 km de distância das comunidades afetadas pelo projeto, o que tecnicamente não fere a resolução que trata do EIA/RIMA (Resolução Conama 001/86).
Assim como requer a Resolução Conama 009/1987, a realização da audiência pública foi anunciada em jornal local e no Diário Oficial. Ademais, a SEMAS enviou convites a diversas entidades para participar da primeira audiência pública sobre Belo Sun, que seria em setembro de 2012, no entanto, todas estas entidades estavam localizadas em Belém.
Naquele momento, deixaram de ser convidados Centros Comunitários de Senador José Porfírio, Funai, Funasa e Incra e as autoridades municipais. Essa primeira audiência foi realizada na área urbana de Senador José Porfírio, distante de onde o projeto planeja se instalar e de onde as populações diretamente afetadas vivem. Portanto, muitas pessoas não puderam participar dessa audiência por conta da distância física e de problemas de locomoção.
Posteriormente, por interferência da Defensoria Pública do Pará e por requerimento da SEMAS, a Belo Sun anunciou na rádio local a realização de uma nova audiência pública em 2013, disponibilizou o EIA/RIMA em escola municipal de Senador José Porfírio, na Cooperativa de Mineradores e na prefeitura municipal, bem como espalhou cartazes pelo município informando sobre a consulta ao EIA/RIMA e a audiência de 2013.
O número de participantes na audiência pública de 2013 foi duas vezes maior que a de 2012. No entanto, as atas das audiências públicas de 2012 e 2013 revelam uma prática já consolidada na apresentação de projetos durante o licenciamento ambiental: uso de linguagem técnica de difícil compreensão, pouco tempo para realização de perguntas dos participantes e a ausência de grande parte das populações diretamente afetadas.[4]
Em resumo, o licenciamento de Belo Sun demonstra que embora haja legislação, na prática não há esforço para interpretar as resoluções Conama de modo a favorecer o acesso à informação e a participação informada das populações afetadas. Boas práticas foram realizadas quando a empresa Belo Sun anunciou no rádio a realização da segunda audiência pública e espalhou cartazes em Senador José Porfírio sobre a disponibilidade do EIA/RIMA. Infelizmente, essas práticas aconteceram depois de muitos distúrbios no processo de licenciamento, os quais também contribuíram para atrasos no planejamento de instalação do projeto, que até hoje está paralisado.
Notadamente, se não fosse por intervenção da Defensoria Pública e do Ministério público, o EIA/RIMA não seria disponibilizado no município, onde o projeto planeja se instalar, e nenhuma das ações que antecederam a audiência de 2013 seriam implementadas.
Ações estas que, embora tenham contribuído para um maior número de participantes na audiência, poderiam ser muito mais amplas para facilitar a participação de uma população composta por 30% de pessoas analfabetas, como a realização de reuniões prévias à elaboração do EIA, com pequenos grupos, as quais seriam úteis até mesmo para informar o desenvolvimento do próprio EIA.
Faz-se necessária uma reforma da legislação sobre participação pública no licenciamento. Breves sugestões incluem:
- Planejar a consulta às comunidades afetadas durante os estudos de viabilidade técnica dos projetos.
- Realizar workshops com pequenos grupos durante o desenvolvimento do termo de referência do EIA.
- Incluir mecanismos na legislação para preparar as comunidades para uma participação efetiva.[5]
Enquanto isso, seguimos ouvindo discursos que se referem à “lenga lenga” do órgão ambiental como se a prospecção de petróleo na Foz do Amazonas fosse algo corriqueiro. Existem outros “lenga lengas” que impedem a implementação de projetos na Amazônia.
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Este artigo é inspirado na tese do meu doutorado, defendida na American University Washington College of Law, sob supervisão do professor David Hunter, a quem agradeço a cuidadosa orientação e pelas enormes contribuições ao desenvolvimento internacional do Direito Ambiental.
[1] Cristiane Bená Dias, Getting Heard but Not Listened to: An Analysis of Public Participation in Environmental Impact Assessment (EIA) in Brazil. (2021) Lexington Books.
[2] Sobre atuais impactos de Belo Monte na Volta Grande do Xingu veja https://revistapesquisa.fapesp.br/belo-monte-e-estiagem-secam-volta-grande-do-xingu/
[3] Cristiane Bená Dias, Getting Heard but Not Listened to: An Analysis of Public Participation in Environmental Impact Assessment (EIA) in Brazil. (2021) Lexington Books.
[4] Cristiane Bená Dias, Getting Heard but Not Listened to: An Analysis of Public Participation in Environmental Impact Assessment (EIA) in Brazil. (2021) Lexington Books.
[5] Estas e outras propostas estão incluídas no livro Getting Heard but Not Listened to: An Analysis of Public Participation in Environmental Impact Assessment (EIA) in Brazil, (2021) Lexington Books.