Lei que tributa trusts no exterior ainda precisa de ajustes

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No dia 13 de dezembro de 2023 foi publicada a Lei nº 14.754. Um dos objetivos da nova lei foi o de tributar os rendimentos auferidos no exterior por pessoas físicas residentes no Brasil. As novas regras se aplicam tanto aos rendimentos obtidos diretamente por pessoas físicas quanto aos rendimentos obtidos através de entidades controlados no exterior, mais comumente conhecidas como offshores.

Acabaram recebendo menos atenção, por outro lado, as regras sobre tributação de trusts constituídos no exterior. Regras essas que também foram retratadas na Lei nº 14.754 e têm potencial de causar grandes dificuldades de aplicação.

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O trust é um importante mecanismo de planejamento patrimonial e sucessório em países como os Estados Unidos. Ele é uma das ferramentas preferidas dos profissionais especializados em planejamento. Entre os motivos dessa preferência podem ser mencionados a enorme flexibilidade que o direito norte-americano confere ao instituidor do trust (o grantor ou settlor) para definir os termos do trust, a proteção patrimonial contra ações de credores do instituidor e as vantagens tributárias no âmbito da tributação de doações e heranças pelos Estados Unidos.

Grosso modo, o trust é como uma pessoa jurídica cuja existência é reconhecida pelo Direito de alguns países. Ele envolve pelo menos três figuras distintas: o instituidor, que é quem define as regras de funcionamento e transfere bens para o trust; os beneficiários (ou beneficiaries), que são as pessoas naturais ou jurídicas com direito de receber distribuição de rendimentos ou de bens do trust; e o trustee, a quem cabe a administração dos bens do trust em conformidade com as regras definidas pelo instituidor.

Um dos problemas da maneira como o Brasil escolheu tributar os rendimentos e os ganhos de capital relativos aos bens e direitos objeto do trust é que a Lei nº 14.754 pressupõe que esses bens e direitos pertencem ou ao instituidor ou aos beneficiários. Não existiria outra opção. Nesse sentido, o art. 10 prevê que os bens e direitos serão considerados de titularidade do instituidor, podendo ser considerados de titularidade dos beneficiários caso ocorra uma das seguintes situações:

(i) distribuição de bens ou rendimentos para o beneficiário;

(ii) falecimento do instituidor; ou

(iii) abdicação, pelo instituidor, em caráter irrevogável, do direito sobre parcela do patrimônio do trust. Já a titularidade dos rendimentos é consequência automática: serão atribuídos ao titular dos bens ou direitos dos quais decorre o rendimento.

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Um exemplo pode facilitar a compreensão do que a lei quis dizer. Digamos que o instituidor transfira um imóvel comercial para o trust, colocando seus filhos como beneficiários, e que esse imóvel seja alugado por terceiros. De acordo com a Lei nº 14.754, é o instituidor quem continuará declarando o imóvel comercial em sua Declaração de Ajuste Anual – DAA, assim como os aluguéis decorrentes do imóvel. Se, porém, o instituidor abdicar do imóvel comercial em caráter irrevogável, a lei exige que os filhos passem a declarar o bem em suas próprias declarações, além dos aluguéis posteriores à abdicação. Só que essa é uma visão simplista e irreal.

A lei convenientemente desconsidera que existem classes diferentes de beneficiários. Alguns beneficiários têm o direito de receber apenas rendimentos (os income beneficiaries), outros beneficiários têm o direito de receber bens e existem ainda beneficiários que podem receber os dois. Tudo depende do que prevê o documento que rege o trust, tratado pela Lei nº 14.754 como escritura do trust ou trust deed. Inclusive, é possível, e aliás ocorre com frequência, que esse documento crie uma categoria de beneficiários com direito de receber apenas os bens que sobrarem no trust quando ele for dissolvido (é o chamado remainderman).

Por isso, o simples fato de o instituidor ter abdicado de maneira irrevogável aos bens contidos no trust não faz com que o beneficiário automaticamente adquira a titularidade sobre esses bens. Se uma pessoa tiver direito de receber apenas rendimentos, ela recebê-los-á independentemente de quem seja o titular dos bens que geraram esses rendimentos. Se uma pessoa tiver direito de receber apenas bens, mas não rendimentos, será dona das coisas, mas não dos rendimentos que elas produzem. Não é difícil prever que haverá inúmeras situações em que ninguém saberá, diante do que diz a legislação brasileira, quem deve declarar o quê.

Usando novamente um exemplo, imagine-se que o instituidor transfira para o trust, de maneira irrevogável, ações que ele possui de uma sociedade anônima. A escritura do trust poderá prever que o filho A terá direito de receber $ 50.000,00 (cinquenta mil dólares) de rendimento por ano e, caso não haja rendimento suficiente para isso, o restante do valor será complementado com distribuição das próprias ações ao filho A. A escritura poderá dispor ainda que decorridos 10 (dez) anos o trust será dissolvido e tudo aquilo que restar de patrimônio será entregue ao filho B.

Nesse cenário, o instituidor já rompeu qualquer laço com os bens e os rendimentos deles decorrentes. O filho A adquirirá os rendimentos quando distribuídos, mas não terá a titularidade sobre os bens, porque não lhe pertencem (a menos, é claro, que tenha ocorrido distribuição de patrimônio nos termos descritos na escritura do trust). Já o filho B não terá direito sobre nenhum rendimento e somente com a dissolução do trust é que será possível identificar o que foi efetivamente recebido (se é que sobrou alguma ação).

Um outro problema, e talvez ainda mais sério que o anterior, é que mesmo tendo direito a receber distribuição de rendimentos ou de bens, a decisão sobre distribuir ou não compete ao trustee. Não compete nem ao beneficiário, nem ao instituidor decidir a respeito. É verdade que a mesma pessoa pode ocupar a posição de instituidor e de trustee, ou de beneficiário e de trustee ao mesmo tempo.

Porém, especialmente quando o patrimônio é vultoso, essa não é uma prática comum. O trustee será normalmente pessoa diversa tanto do instituidor quanto dos beneficiários, e de preferência alguém experiente na administração de bens. Existem diversos fundos e instituições cujas atividades consistem precisamente na administração do patrimônio transferido para trusts. Nesses casos, a decisão sobre distribuir ou não rendimentos e bens é do trustee. Sobre ele nem o instituidor, nem os beneficiários possuem qualquer ingerência. O trustee deve obediência apenas à escritura do trust. A escritura poderia dispor, por exemplo, que o trustee deve distribuir rendimentos apenas quando entender necessário.

Se a escritura dispõe que a distribuição está sob absoluta discrição do trustee, não existe nenhuma possibilidade de qualquer pessoa o forçar a fazer uma distribuição se ele não estiver convencido de que tal medida será feita no melhor interesse da administração e preservação do patrimônio. Nem mesmo mediante ordem judicial. Os bens dentro do trust podem até gerar rendimentos, mas se o trustee entende, com base no que dispõe a escritura, que não é caso de fazer uma distribuição, esses rendimentos serão simplesmente acumulados dentro do trust e serão declarados pelo trustee em nome do próprio trust.

Ocorre que a lei brasileira quer obrigar o instituidor ou o beneficiário a declarar esse rendimento como se deles fosse. Em outras palavras, deverá declarar um rendimento que não lhe pertence. Para piorar, a Lei nº 14.754 ainda contém três previsões com grande potencial de se tornarem letra morta:

(i) o instituidor e o beneficiário deverão requisitar ao trustee a disponibilização dos recursos financeiros e informações necessárias para viabilizar o pagamento do imposto de renda no Brasil;

(ii) o instituidor ou os beneficiários deverão alterar a escritura do trust para fazer constar redação que obrigue, de forma irrevogável e irretratável, o atendimento, por parte do trustee, das disposições estabelecidas na Lei nº 14.754; e

(iii) caso nem o instituidor, nem os beneficiários tenham poderes para alterar a escritura do trust, os beneficiários deverão enviar comunicação formal a respeito da obrigatoriedade de observância ao disposto na Lei nº 14.754 e requerer a disponibilização das informações e dos recursos financeiros necessários para o cumprimento do disposto nessa lei.

Considerando que, como visto, o instituidor e os beneficiários não têm poder de obrigar o trustee a fazer uma distribuição quando a escritura do trust tiver lhe conferido discrição, a requisição de recursos financeiros prevista na Lei provavelmente será uma mera formalidade.

As outras duas previsões legais são no mínimo ingênuas. Se o trustee não possuir nenhuma relação com o Brasil, como geralmente é o caso de trustees institucionais, ele não tem nenhuma obrigação de obedecer às leis brasileiras, nem o Brasil tem mecanismos para forçá-lo a obedecer às suas leis.

Resta ver se, diante dos impasses que as novas regras podem causar, é a pessoa física residente no Brasil que acabará sendo prejudicada por não ter alternativas.