Lei que regula pesquisas com seres humanos no Brasil traz avanços e retrocessos

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Foi publicada a Lei 14.874, de 28 de maio de 2024, que dispõe sobre a pesquisa com seres humanos no Brasil e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

A nova lei, que vem substituir a atual regulamentação dada ao tema pelo Conselho Nacional de Saúde, possui 65 artigos e trata de temas sensíveis, sendo que alguns deles ainda demandarão regulamentação do Ministério da Saúde que detalhe alguns aspectos operacionais e que esclareça alguns dispositivos que ainda demandam detalhes para que possam ser corretamente interpretados e aplicados.

Em suas disposições gerais, após uma pródiga listagem de definições, a lei estabelece que a pesquisa que envolva seres humanos deverá atender exigências éticas e científicas, com destaque para o respeito aos direitos, à dignidade, à segurança e ao bem-estar do participante da pesquisa, que deverá prevalecer sobre os interesses da ciência e da sociedade.

Entre as exigências éticas destacadas nas disposições gerais da lei estão proteções essenciais como: a necessidade de embasamento em avaliação favorável da relação risco-benefício para o participante da pesquisa e para a sociedade; a garantia de participação voluntária, mediante consentimento livre e esclarecido do participante da pesquisa; o respeito à privacidade do participante da pesquisa e às regras de confidencialidade de seus dados, garantida a preservação do sigilo sobre sua identidade; o provimento dos cuidados assistenciais necessários em casos que envolvam intervenção; a adoção de procedimentos que assegurem a qualidade dos aspectos técnicos envolvidos e a validade científica da pesquisa e a condução da pesquisa em plena compatibilidade com as boas práticas clínicas.

Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos

A Lei 14.874/2024 cria o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, que contará com uma instância nacional de ética em pesquisa e instâncias de análise ética em pesquisa representadas pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP).

A instância nacional de ética em pesquisa será responsável por regulamentar a lei, devendo editar normas regulamentadoras sobre ética em pesquisa. Também estará incumbida, dentre outras atribuições, a credenciar, acreditar, acompanhar, apoiar e fiscalizar os CEPs. A instância nacional será responsável, também, por atuar como instância recursal das decisões proferidas pelos CEPs.

O CEP, por sua vez, foi definido na lei como o “colegiado vinculado à instituição que realiza a pesquisa, de natureza pública ou privada, de composição interdisciplinar, constituído de membros das áreas médica, científica e não científica, de caráter consultivo e deliberativo, que atua de forma independente e autônoma, para assegurar a proteção dos direitos, da segurança e do bem-estar dos participantes da pesquisa, antes e no decorrer da pesquisa, mediante análise, revisão e aprovação ética dos protocolos de pesquisa e de suas emendas, bem como dos métodos e materiais a serem usados para obter e documentar o consentimento livre e esclarecido dos participantes da pesquisa”.

Análise ética da pesquisa

Conforme previsto no artigo 7º da nova lei, a análise ética da pesquisa com seres humanos deverá seguir as seguintes diretrizes: proteção da dignidade, da segurança e do bem-estar do participante da pesquisa; incentivo ao desenvolvimento técnico-científico; independência, transparência e publicidade; isonomia na aplicação dos critérios e dos procedimentos de análise dos projetos de pesquisa, conforme a relação risco-benefício depreendida dos seus protocolos; eficiência e agilidade na análise e na emissão de parecer; multidisciplinaridade; controle social, com a participação de representante dos participantes da pesquisa; respeito às boas práticas clínicas.

Uma das principais normas a ser editada pela instância nacional de ética em pesquisa será a que regulamenta o processo de análise ética de pesquisa, definindo as informações e os documentos a serem apresentados pelos proponentes para aprovação ética das pesquisas envolvendo seres humanos. O integrante de CEP que tenha interesse de qualquer natureza na pesquisa ou que mantenha vínculo com o patrocinador ou com os pesquisadores ficará impedido de participar da deliberação acerca da pesquisa na qual esteja envolvido.

Proteção do participante da pesquisa

No capítulo dedicado à proteção do participante da pesquisa é dada uma grande ênfase ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), definido pela lei como sendo o “documento no qual é explicitado o consentimento livre e esclarecido do participante da pesquisa, ou do seu responsável legal, de forma escrita, com todas as informações necessárias, em linguagem clara e objetiva, de fácil entendimento, para o completo esclarecimento sobre a pesquisa da qual se propõe participar”.

Além disso, a lei assegura que a pesquisa será conduzida de forma a garantir o anonimato e a privacidade do participante, bem como o sigilo das informações. A privacidade do participante é considerada pela lei uma questão de foro íntimo, sendo que o sigilo das informações técnicas da pesquisa somente deverá ser levantado, no que for necessário, para análise de eventos adversos graves. Nestes casos, o participante, seus representantes legais ou seus sucessores poderão divulgar detalhes relativos à participação do primeiro na pesquisa.

Tratamento especial foi dado à questão de remuneração do participante de pesquisa. O artigo 20 da lei veda a remuneração do participante ou a concessão de qualquer tipo de vantagem por sua participação em pesquisa. No entanto, de acordo com a lei, não configuram remuneração ou vantagem para o participante da pesquisa: o ressarcimento de despesas com transporte ou alimentação ou o provimento material prévio; outros tipos de ressarcimento necessários, conforme o projeto de pesquisa.

Deixou-se uma porta aberta para ressarcimentos diversos aos participantes de pesquisa, abrindo-se um flanco delicado que, se não for bem regulamentado e fiscalizado, poderá servir como via tortuosa para a remuneração disfarçada de participantes de pesquisa. Em um país como o Brasil, com grande parte da população vivendo na miséria ou na pobreza, qualquer tipo de “ressarcimento” poderá ser utilizado como atrativo para que pessas participem de pesquisas clínicas em troca destes “ressarcimentos”.

Outra perigosa abertura para se possiblitar a remuneração de participantes de pesquisa está no § 2º do artigo 20 da lei, que autoriza a remuneração dos indivíduos saudáveis que participarem de ensaios clínicos de fase I ou de bioequivalência, observadas as seguintes condições: o participante integrar cadastro nacional de voluntários em estudos de bioequivalência e de fase I, na forma de regulamento; o participante não integrar, simultaneamente, mais de uma pesquisa; em caso de pesquisa para avaliação da dose máxima tolerada ou para avaliação da biodisponibilidade e da bioequivalência, o participante da pesquisa observar o prazo mínimo de seis meses da data de encerramento da participação na pesquisa antes de ser incluído em novo ensaio clínico.

A lei também trouxe novo regramento para o uso de placebos nas pesquisa clínicas com seres humanos. A partir de agora, de acordo com o artigo 21, o uso exclusivo de placebo somente é admitido quando inexistirem métodos comprovados de profilaxia, diagnóstico ou tratamento para a doença objeto da pesquisa, conforme o caso, e desde que os riscos ou os danos decorrentes do uso de placebo não superem os benefícios da participação na pesquisa.

Além disso, no caso de uso de placebo combinado com outro método de profilaxia, diagnóstico ou tratamento, o participante da pesquisa não poderá ser privado de receber o melhor tratamento disponível, ou o preconizado em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde, ou, subsidiariamente, em protocolos terapêuticos recomendados por sociedade médica especializada na área objeto de estudo.

Nos ensaios clínicos, tão logo constatada superioridade significativa da intervenção experimental sobre o produto de comparação ou placebo, o pesquisador-coordenador, o comitê independente de monitoramento ou o patrocinador avaliará a necessidade de adequar ou suspender o estudo em curso, de forma a atender ao melhor interesse do participante da pesquisa.

Outra proteção prevista foi a de que o participante será indenizado pelo patrocinador da pesquisa por eventuais danos sofridos em decorrência da sua participação na pesquisa e receberá a assistência à saúde necessária relacionada a esses danos.

Continuidade do tratamento pós-ensaio clínico

Um último ponto que merece ser destacado nesta coluna sobre a nova lei refere-se aos deveres dos patrocinadores da pesquisa no que se relaciona à garantia de continuidade do tratamento após a conclusão dos ensaios clínicos. A regulação vigente até a aprovação da nova lei previa a obrigatoriedade dos patrocinadores de garantirem os produtos derivados da pesquisa aos participantes da pesquisa pelo período necessário, conforme as necessidades de saúde do participante de pesquisa no que se referia ao produto inovador.

Pela nova lei, conforme previsto no artigo 30, o patrocinador e o pesquisador submeterão ao CEP plano de acesso pós-estudo, antes do início do ensaio clínico, no qual devem apresentar a justificativa da necessidade ou não de fornecimento gratuito do medicamento experimental após o término do ensaio clínico aos participantes que dele necessitarem. Ou seja, o fornecimento ou não será decidido, em um primeiro momento, pelos próprios patrocinadores da pesquisa.

Para tentar mitigar eventuais abusos de desassistência pós-estudo, o artigo 32 da nova lei prevê critérios de avaliação sobre a necessidade de continuidade do fornecimento do medicamento experimental pós-ensaio clínico, elencando os seguintes critérios: a gravidade da doença e sua ameaça à continuidade da vida do participante; a disponibilidade de alternativas terapêuticas satisfatórias para o tratamento do participante da pesquisa, considerada sua localidade; se o medicamento experimental contempla uma necessidade clínica não atendida; se a evidência de benefício para o participante supera a de risco com o uso do medicamento experimental.

Outras flexibilidades à obrigação do patrocinador de garantir o fornecimento gratuito do medicamento experimental aos participantes de pesquisa estão previstas no artigo 33, que prevê que “o fornecimento gratuito do medicamento experimental no âmbito do programa de fornecimento pós-estudo poderá ser interrompido, mediante submissão de justificativa ao CEP, nas seguintes situações:

decisão do próprio participante da pesquisa ou, quando esse não puder expressar validamente sua vontade, pelos critérios especificados no art. 18 desta Lei;
cura da doença ou agravo à saúde, alvos do ensaio clínico, ou introdução de alternativa terapêutica satisfatória, fato devidamente documentado pelo pesquisador;
ausência de benefício do uso continuado do medicamento experimental ao participante da pesquisa, considerados a relação risco-benefício fora do contexto do ensaio clínico ou o aparecimento de novas evidências de riscos relativos ao perfil de segurança do medicamento experimental, fato devidamente documentado pelo pesquisador;
ocorrência de reação adversa que, a critério do pesquisador, inviabilize a continuidade do medicamento experimental, mesmo diante de eventuais benefícios;
impossibilidade de obtenção ou de fabricação do medicamento experimental por questões técnicas ou de segurança, devidamente justificadas, e desde que o patrocinador forneça alternativa terapêutica equivalente ou superior existente no mercado;
disponibilidade do medicamento experimental na rede pública de saúde (ou seja, se o SUS incorporar a nova tecnologia o patrocinador da pesquisa deixa de ser responsável por esse custo, que passará a ser da sociedade brasileira).

Atenção à regulamentação a ser dada

Outros pontos inovadores sobre pesquisas clínicas em seres humanos foram trazidos pela nova lei, mas o espaço não me permite aprofundá-los.

Como consideração final, fica evidente a importância de um acompanhamento próximo da regulamentação a ser dada à Lei 14.874/2024, para que os avanços nela existentes sejam consolidados e fruídos pelos participantes de pesquisa e, principalmente, para que os retrocessos verificados limitem-se aos casos expressamente previstos na lei, em especial no que se refere ao uso de placebos e às obrigações dos patrocinadores de fornecimento das tecnologias para tratamento dos participantes da pesquisa mesmo após o término do estudo clínico.