A igualdade salarial entre homens e mulheres não é uma novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Em verdade, desde a sua edição, em 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) determina que “(s)endo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá, igual salário, sem distinção de sexo” (cf. art. 461 da CLT em sua redação original; grifo nosso). Além disso, a Constituição Federal de 1988, por meio do art. 7º, XXX, alçou essa igualdade ao status de direito fundamental, tornando-se também cláusula pétrea.
A legislação também garantia à trabalhadora em situação de desvantagem o direito ao ajuizamento de uma ação de equiparação salarial para pleitear o pagamento das diferenças salariais acrescidas de multa (cf. art. 461, § 6º, da CLT, em sua redação de 2017). Essas garantias, porém, não foram suficientes para corrigir uma desigualdade que é sistêmica.
Realmente, apesar de seu status constitucional e de vigorar há mais de 80 anos, as estatísticas mostram que essa igualdade nunca foi materializada. Segundo dados de 2022 produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a diferença salarial entre homens e mulheres naquele ano foi de 22%, ou seja, muito aquém do preconizado pela norma laboral brasileira. Sob o prisma global, o país também não alcançou números significativos em termos de participação econômica feminina: ficou em 86 lugar em uma relação de 146 países avaliados pelo Fórum Econômico Mundial.
É neste contexto que surge a Lei 14.611/2023 (também conhecida como Lei de Igualdade Salarial), regulamentada por meio do Decreto 11.795/2023 do Presidente da República e da Portaria 3.714/2023 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
A despeito de não criar um novo direito, a Lei de Igualdade Salarial inovou em dois pontos centrais: (i) passou a exigir que empresas com mais de 100 empregados(as) publiquem semestralmente um relatório com dados sobre salários e critérios remuneratórios, conferindo maior transparência à sociedade (cf. art. 5º, caput); e (ii) determinou que, uma vez constatada a desigualdade salarial entre homens e mulheres, essas empresas deverão implementar programas e planos de ação para remediar a questão (cf. art. 5º, § 2º).
Em outras palavras: a lei determinou que empresas produzam dados capazes de identificar padrões sistêmicos de desigualdade e que adotem medidas para fazer frente às causas subjacentes a esses padrões. Conferiu, portanto, uma abordagem coletiva e estrutural à problemática da desigualdade salarial, buscando materializar direito que há tempos já era garantido do ponto de vista formal pela legislação trabalhista.
Para cumprir com a norma instituída em 2023, as empresas com mais de 100 (cem) empregados(as) precisaram apresentar, até 31 de março de 2024, dados referentes, dentre outras questões, (i) ao número total de pessoas empregadas separadas por sexo, raça e etnia com os respectivos valores do salário contratual e da remuneração mensal; (ii) à (in)existência de quadro de carreira e plano de cargos e salários; (iii) aos critérios remuneratórios para acesso e progressão ou ascenção dos empregados/as, incluindo critérios para a promoção a cargos de chefia; e (iv) à (in)existência de iniciativas ou programas que apoiem o compartilhamento de obrigações familiares (cf. art. 3º da Portaria MTE 3.714/2023).
A partir desses dados, extraídos do eSocial e do Portal Emprega Brasil, o MTE criou um dashboard com o resultado do primeiro levantamento. Explicitando a realidade de desigualdade de gêneros no mercado de trabalho nacional, os dados apontam a existência de uma diferença de cerca de 20% entre a remuneração média de homens e mulheres. Essa diferença é ainda maior para o caso de mulheres negras, que ganham cerca de 47% a menos do que homens não negros, confirmando pesquisas e dados relacionados ao racismo estrutural no país e à necessidade de atenção às interseccionalidades no mercado de trabalho.
Para as empresas que apresentaram dados em descompasso com o preconizado na norma brasileira (Lei de Igualdade Salarial e CLT), há, nos artigos 5º, § 2º, da Lei, 3º e 4º, II, do Decreto e 7º e ss da Portaria, a previsão para apresentação, no prazo de 90 dias, de um Plano de Ação “(…) para mitigar a desigualdade, com metas e prazos, garantida a participação de representantes das entidades sindicais e de representantes dos empregados nos locais de trabalho”.
Assim, considerando a necessidade de muitas empresas de promover não somente a adequação à norma, mas também de orientar suas práticas internas para maior igualdade de gêneros entre seus colaboradores, recomenda-se a adoção de quatro passos práticos essenciais para um plano de ação possível, efetivo e transformador.
Estes passos foram elaborados a partir dos Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos, pedra angular da temática de Empresas e Direitos Humanos no cenário internacional e brasileiro, e que serve como principal framework para a interpretação das normas já mencionadas de modo a dar mais concretude aos direitos em discussão.
Definição de prioridades e criação de metas e prazos
A definição de prioridades deve ser o primeiro passo para a elaboração de Planos de Ação robustos e em conformidade com a Lei de Igualdade Salarial (cf. art. 8º, I, da Portaria MTE 3.714/2023). Os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos definem, para a elaboração de avaliações de riscos e impactos e consequentes programas de ação, os critérios de severidade e probabilidade.
A severidade do impacto é definida a partir da sua escala (o quão grave é o impacto), do seu escopo (o quão disseminado é o dano) e da sua (ir)remediabilidade ou (ir)reparabilidade (caso o dano aconteça, o quão fácil é a sua reparação).
Dessa maneira, um exercício inicial deve ser feito: em quais espaços internos da empresa há maior disparidade salarial? Por quais motivos? Seria uma questão de capacitação interna ou individual das colaboradoras? Há problemas em momentos de licença (sobretudo em função da maternidade)? Ou o maior gap está nas promoções e potenciais vieses inconscientes? A partir deste diagnóstico é possível compreender a severidade dos impactos e pensar em medidas de mitigação e de construção coletiva para maior igualdade.
No que tange às metas e prazos (previstos no art. 3º, I, do Decreto e no art. 8º, II, da Portaria), é relevante que estes sejam possíveis e factíveis para uma mudança estrutural e cultural na empresa. Sendo assim, não basta preencher uma planilha com todos os requisitos indistintamente, mas sim construí-la a partir do diálogo com áreas internas da empresa, incluindo tais projetos nas metas corporativas gerais, bem como nos centros de custo.
Engajamento
Engajamento também é palavra de ordem neste momento. Para além da compreensão das prioridades para o alcance de maior igualdade salarial, é crucial o diálogo com os(as) colaboradores(as) e, principalmente, com os(as) representantes de sindicatos atuantes naquele setor, como prevê o art. 5º, § 2º, da Lei e o art. 3º, § 1º, da Portaria. Esta última determinação, apesar de necessária para o bom cumprimento da norma, também é essencial na observância aos Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos.
O engajamento multistakeholder permite que sejam encontrados pontos de atenção por vezes ignorados pelas áreas responsáveis pelo tema na empresa (por motivos inúmeros: desde vieses inconscientes até desconhecimento da pauta), bem como garante que a diversidade de ideias seja publicizada e posta em prática em benefício coletivo. Os(as) colaboradores(as) também ganham maior senso de pertencimento e participação ativa nos processos internos de melhoria, garantindo satisfação e, eventualmente, aprimorando seu engajamento nas atividades cotidianas.
Recomenda-se que, previamente à consulta com colaboradores(as) e sindicatos, seja realizado benchmarking de iniciativas de igualdade salarial realizadas por empresas parceiras, concorrentes e/ou do mesmo porte e ramo de atuação, a fim de que seja possível extrair conclusões e perguntas relevantes para o processo de engajamento interno.
Capacitação
A Lei de Igualdade Salarial e o Decreto e a Portaria que a acompanham são categóricos ao expressar a necessidade de programas de capacitação e formação internos para as lideranças e colaboradores(as) no que tange à paridade de gêneros no mercado de trabalho (o que naturalmente se refletirá em suas respectivas remunerações). Isso porque a desigualdade salarial é apenas um dos sintomas da desigualdade de gênero, e jamais será efetivamente superada se não houver um trabalho robusto para a atuação em relação às suas causas subjacentes.
Sendo assim, uma vez definidas as prioridades, é essencial a criação de espaços coletivos e individuais de capacitação e formação em temas diretamente relacionados à igualdade salarial, tais como Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), desafios da maternidade, vieses inconscientes e programas de mentoria para ascensão a cargos de liderança e capacitações em geral.
Neste ponto, e em conformidade com os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos, recomenda-se sempre a participação de consultorias independentes que possam acrescentar sua expertise técnica ao ambiente laboral (e de maneira customizada às necessidades de cada empresa).
Programas de aferição de resultados e comunicação de progresso
Um Plano de Ação bem estruturado e executado certamente renderá resultados positivos em relação ao período anterior. E a comunicação de progresso também será, além de fidedigna (e livre de “washings“!), mais alinhada aos ditames da Lei de Igualdade Salarial.
Nesse sentido, a Portaria que regulamenta a norma, em seu art. 8º, II, determina a necessidade de criação de mecanismos de aferição de resultados, de forma que as metas estabelecidas possam ser avaliadas de maneira periódica. Alguns mecanismos de aferição de resultados são a mensuração de indicadores-chave de desempenho (KPIs, na sigla em inglês), a realização de auditorias internas, o monitoramento de reclamações em canais de denúncia, entre outros.
Por fim, é essencial uma comunicação que demonstre efetivamente o engajamento da empresa para com a paridade de gêneros no ambiente de trabalho. Uma comunicação efetiva não somente reflete maior transparência nas informações prestadas, mas também gera maior senso de confiança dos stakeholders de que ações estão sendo implementadas para maior ganho coletivo.
Sob a perspectiva preventiva, uma boa aferição e comunicação de resultados permite indubitavelmente maior proteção a riscos corporativos sob o prisma judicial: evita-se ações judiciais promovidas por eventuais investidores (se empresa de capital aberto), consumidores e entidades da sociedade civil que se sintam prejudicadas pela divulgação de informações que estão em descompasso com as práticas corporativas.
Conclusão
A Lei de Igualdade Salarial teve o condão de garantir a efetiva aplicabilidade do art. 461 da CLT, bem como de colocar as empresas com mais de 100 empregados(as) sob os holofotes no que tange à discrepância abissal de salários pagos a homens e mulheres. Apesar de se restringir a um universo restrito de empresas no Brasil, é um mecanismo de excepcional importância na criação de uma cultura de maior transparência no pagamento de salários e de informação para a sociedade de trabalho.
Os passos apresentados podem e devem servir não apenas para empresas que estão sob os olhares do Ministério do Trabalho e precisam promover adequações imediatas, mas também para toda e qualquer organização que deseja alterar seus processos internos para garantir que a igualdade salarial seja uma regra. São estas etapas essenciais para a efetividade de medidas que busquem corrigir falhas sistêmicas, promovendo uma verdadeira mudança de cultura corporativa.