Lei 14.873 e seus potenciais efeitos sobre a disponibilidade

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Para a maioria das empresas atuantes no mercado brasileiro, o aproveitamento de créditos tributários vinculados a ações judiciais é parte relevante de sua rotina devido ao grande número de ações tributárias. Esses créditos podem ser recebidos por precatório ou utilizados para compensação com tributos vincendos. Na última hipótese, surge uma importante dúvida: em que momento esses créditos devem ser oferecidos à tributação pelo IRPJ e pela CSLL?

Embora o STJ tenha, recentemente, entendido que isso deveria ocorrer quando do deferimento da habilitação do crédito[1], trata-se de precedente isolado que não representa posição consolidada do tribunal. Os contribuintes defendem que, na hipótese de o crédito ser compensado em diversas parcelas, a tributação deveria dar-se quando da entrega de cada respectiva declaração de compensação, porque apenas no momento de cada entrega ocorreria a efetiva disponibilização jurídica do recurso.

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A Receita Federal, no entanto, afirma que referidos tributos (IRPJ/CSLL) incidem quando do reconhecimento contábil desses créditos ou quando transmitida a primeira DCOMP, o que ocorrer primeiro.

Este entendimento, já manifestado nas SC COSIT 183/2021 e 308/2023, baseia-se na ideia de que, havendo a “disponibilidade jurídica da renda” prevista no artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN), os créditos contabilizados ou transmitidos pelo contribuinte deveriam ser incluídos em sua apuração.

Em outras palavras: havendo montante líquido e certo disponível para aproveitamento por parte do contribuinte (tendo em vista que foi escriturado e/ou transmitida a primeira declaração de compensação), as autoridades fiscais entendem que o contribuinte deva oferecer todo o crédito à tributação.

Nesse contexto, recentemente foi editada a Lei 14.873/24 que, entre outras previsões, incluiu o artigo 74-A na Lei 9.430/96, estabelecendo um limite mensal para o aproveitamento creditório graduado em função do valor total do crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado”.

Referido dispositivo prevê, em suma, que :

  1. o limite mensal para compensação deve ser estabelecido pelo Ministério da Fazenda;
  2. (o limite mensal não poderá ser inferior a 1/60 (um sessenta avos) do valor do crédito;
  3. o limite mensal é aplicável tão somente a créditos oriundos de decisões judiciais e
  4. as referidas disposições aplicam-se tão somente a créditos superiores a R$ 10 milhões.

Em seguida, foi publicada a Portaria MF 14/2024, que estabeleceu limites mensais escalonados para compensação de créditos tributários superiores a R$ 10 milhões[2].

Quanto a essa novidade introduzida no ordenamento jurídico tributário, somos da opinião de que, estabelecida verdadeira proibição para o aproveitamento integral de direitos creditórios superiores a R$ 10 milhões de uma só vez, criando-se limites expressos à quantia a ser compensada pelo contribuinte, tais normas interferiram diretamente na disponibilidade jurídica desse crédito, o que deve impactar o entendimento sobre a partir de qual momento o crédito seria tido como “disponível” para fins de incidência de IRPJ e CSLL.

Para que se possa entender, exatamente, o conteúdo e alcance do artigo 43 do CTN, é preciso identificar o que viria a ser disponibilidade “jurídica ou econômica”, elementos que estão em linha com o princípio da realização, que se relaciona com as condições materiais para que a renda seja caracterizável como tributável em função de sua definitividade e mensurabilidade[3].

Para Bulhões Pedreira, a disponibilidade econômica seria “o poder de dispor, efetivo e atual, de quem tem a posse da renda”, fato que se daria a partir da “aquisição da posse da moeda”, enquanto a disponibilidade jurídica seria a “presumida por força da lei, que define como fato gerador do imposto a aquisição virtual quando já ocorrem todas as condições necessárias para que se torne efetiva”[4].

Dessa forma, a incidência do IRPJ e da CSLL sobre o valor principal deve observar o conceito de renda previsto no artigo 43 do CTN, que exige a aquisição de disponibilidade jurídica ou econômica. É preciso destacar que apenas a renda efetivamente disponível, ou seja, aquela que pode ser utilizada pelo contribuinte, é tributável, em consonância com o princípio da capacidade contributiva.

Nesta linha de raciocínio, é possível sustentar que somente haveria “disponibilidade jurídica” quando o contribuinte implementasse suas compensações via DCOMPs e na medida da confrontação entre seus débitos (vincendos) com a parte do crédito compensado. Antes do encontro de contas, não é viável para a empresa “dispor” do crédito ou utilizar-se dele. É quando do encontro de contas, viabilizado nas declarações sucessivas de compensação, que se dá a disponibilidade “jurídica da renda.

Ressalte-se que já houve reconhecimento, no passado, da possibilidade de tributar a receita apenas no momento da compensação, conforme demonstrado na SC SRRF 206/2003. Nessa ocasião, a RFB entendeu que os créditos reconhecidos judicialmente contra a União constituem receita tributável para fins de IRPJ, sendo a tributação exigível somente quando há efetiva disponibilidade da renda. Assim, tratando-se de compensação, a renda seria considerada disponível e, portanto, tributável somente à medida que [a]surgissem os débitos a compensar.

Quanto ao tema, o mencionado raciocínio em prol da sistemática defendida pelos contribuintes se torna ainda mais forte com a Lei 14.873/24 e a Portaria 14/24, que determinam legalmente a limitação da compensação dos créditos, ou seja, limitam o direito de o contribuinte livremente “dispor” de seus créditos visto que, havendo limitação legal, não há possibilidade de “dispor” do crédito.

Portanto, apesar das controvérsias, existem três momentos diferentes de tributação: no momento do reconhecimento contábil, na entrega da primeira DCOMP ou na medida das compensações efetivamente realizadas.

Na última hipótese, entendemos que a adoção dos limites previstos na Lei 14.873/2024 pode reforçar a defesa da tributação proporcional à compensação. Isso, porque, ao instituir limites mensais para compensações de créditos federais, a nova legislação impactou diretamente a materialização de sua disponibilidade jurídica e, por consequência, o momento da tributação.


[1] REsp n. 2.071.754/SC, relator ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 12.3.2024, DJe de 15.3.2024.

[2] “Art. 1º A utilização de créditos decorrentes de decisão judicial transitada em julgado para compensação de débitos próprios do sujeito passivo, relativos a tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), fica sujeita aos limites mensais estabelecidos por esta Portaria Normativa.

§ 1º Quando se tratar de créditos decorrentes de decisão judicial transitada em julgado, o valor mensal a ser compensado fica limitado ao valor do crédito atualizado até a data da primeira declaração de compensação dividido pela quantidade de meses conforme os incisos abaixo:

I – créditos cujo valor total seja de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) a R$ 99.999.999,99 (noventa e nove milhões, novecentos e noventa e nove mil e novecentos e noventa e nove reais e noventa e nove centavos) deverão ser compensados no prazo mínimo de doze meses;

II – créditos cujo valor total seja de R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais) a R$ 199.999.999,99 (cento e noventa e nove milhões, novecentos e noventa e nove mil e novecentos e noventa e nove reais e noventa e nove centavos) deverão ser compensados no prazo mínimo de vinte meses;

III – créditos cujo valor total seja de R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais) e inferior a R$ 299.999.999,99 (duzentos e noventa e nove milhões, novecentos e noventa e nove mil e novecentos e noventa e nove reais e noventa e nove centavos) deverão ser compensados no prazo mínimo de trinta meses;

IV – créditos cujo valor total seja de R$ 300.000.000,00 (trezentos milhões de reais) e inferior a R$ 399.999.999,99 (trezentos e noventa e nove milhões, novecentos e noventa e nove mil e novecentos e noventa e nove reais e noventa e nove centavos) deverão ser compensados no prazo mínimo de quarenta meses;

V – créditos cujo valor total seja de R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais) a R$ 499.999.999,99 (quatrocentos e noventa e nove milhões, novecentos e noventa e nove mil e novecentos e noventa e nove reais e noventa e nove centavos) deverão ser compensados no prazo mínimo de cinquenta meses; e

VI – créditos cujo valor total seja igual ou superior a R$ 500.000.000,00 (quinhentos milhões de reais) deverão ser compensados no prazo mínimo de sessenta meses.”

[3] SILVEIRA, Ricardo Maitto da. A realização da renda à luz do Código Tributário Nacional. In: ZILVETI, Fernando Aurelio; FAJERSZTAJN, Bruno; SILVEIRA, Rodrigo Maito da (coord.). Direito tributário: princípio da realização no imposto sobre a renda – Estudos em homenagem a Ricardo Mariz de Oliveira. São Paulo: IBDT, 2019, p. 93.

[4] PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Imposto sobre a renda: pessoas jurídicas. Rio de Janeiro: Justec, 1979, v. 2, p. 196-197.