A Constituição Federal reconhece o direito à alimentação inserto no título dos direitos e garantias fundamentais. O seu conceito recebeu, durante décadas, a influência de diversas outras normas sociais, das condições geoespaciais, do direito internacional, com destaque para a Food and Agriculture Organization (FAO), organização que concentra insumos informacionais das experiências de outros países, inclusive o Brasil, como no caso do Programa Fome Zero.
Três perspectivas cardeais dirigem o conceito de direito à alimentação dos nossos dias e, consequentemente, os seus indicadores de efetividade: disponibilidade, quantidade e qualidade. Ou seja, o alimento necessita (i) estar disponível, (ii) em quantidade suficiente e (iii) em qualidade suficiente. Não basta o afastamento da fome e da desnutrição, as pessoas não podem adoecer. É assim que uma alimentação se apresenta como adequada.
O modo de produção e as condições ecológicas integram a devida compreensão do direito e o modo como as regulações que lhe são conexas devem ser dirigidas. Na prática, apesar de estarmos vivenciando a 4ª Revolução Industrial, o mais basilar dos insumos para estarmos vivos e atuantes, o alimento, ainda não é acessível a todos, e a fome e a má alimentação permanecem entre nós[1].
Um dos principais fatores que afeta uma alimentação adequada é a água. Há íntima relação entre insegurança hídrica e insegurança alimentar, sendo a agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura responsáveis por 97% do consumo de água, segundo dados do IBGE e da ANA de 2020.
Além disso, a água que precisamos não é uma água qualquer. Cursos d’água poluídos, inclusive com plásticos que, além de não se degradarem, são invisíveis, cursos d’água com micro-organismos nocivos às plantas, ao animal humano e aos demais animais, cursos d’água com resíduos não tratados atacam, literalmente, a base da alimentação adequada não somente nossa, aqui e agora, como também das novas gerações.
Cursos d’água servem de vias que podem ser poluídas e, portanto, devem ser fiscalizadas. Cursos d’água também podem ser contaminados pelo mercúrio usado nas atividades minerárias, especialmente nas ilegais. Cursos d’água devem, ou deveriam, privilegiar o consumo humano, embora, a cada dia, mais e mais tecnologias exigem e dependem de água, como os datas centers (aqueles que fazem a Inteligência Artificial acontecer com suas máquinas e números superlativos de dados) que consomem quantidades astronômicas e com um reuso minimizado. São situações reais que acontecem no âmbito de competência de diferentes reguladores, como ANA, Antaq, ANM, Ministério da Saúde, Ministério da Pesca e Aquicultura e Ministério das Cidades, apenas para citar alguns.
Ademais, há os municípios e suas competências sobre os seus territórios, o que inclui sua autonomia legislativa. Cursos d’água cortam cidades assimétricas, mais ou menos inteligentes e com governos mais ou menos aptos, nas quais umas se comprometem com o tratamento dos seus resíduos e por consequência, com o incremento da qualidade dos seus cursos d’água e os seus usos. A questão é que, sem uma legislação coordenada que leve em conta competências e cenários regionais, há a necessidade de medidas legislativas de coordenação, também dos Estados.
Nossos Legislativos andam fugindo da discussão e a legislação de temas relevantes acumula casos de omissão legislativa, mora legislativa, lacunas etc. Mas não percamos a esperança, instituições com experiências funcionais costumam ser maiores do que personalismos.
Há boas práticas na estrutura processual da decisão para legislar. Matérias complexas pedem uma tramitação em comissões com temas diferentes porque existe uma conexão, ou um vínculo, que permite a melhor compreensão de um problema público, ampliando a sua inteligência e as possibilidades de soluções adequadas e factíveis, capazes de alterar a realidade. Não só a realidade do agora, mas da viabilidade do futuro, a menos que assumamos o risco de uma desigualdade atávica a segregar acessos a alimentação adequada.
Há também bons exemplos de busca por ação concertada multinível de iniciativa de agências reguladoras, como o Programa de Estímulo a Divulgação de Dados de Qualidade de Água, o Qualiágua. O Programa, de adesão voluntária, foi criado pela ANA em 2014 e se baseia em premiações (financeiras) aos estados pelo alcance de metas. O Programa tem sido responsável tanto pela ampliação espacial do monitoramento da qualidade da água no Brasil como pelo avanço no uso dos dados pelos órgãos estaduais de recursos hídricos em sua tomada de decisão.
Destaca-se que o Executivo federal trouxe oportunidades de concertação. Ressalvamos dois decretos que dispõem sobre um desenho para gestão decisória com seus princípios dirigentes, orientando a elaboração normativa ministerial, autárquica ou fundacional. O Decreto 9.203/2017 dispõe dentre as suas diretrizes “articular instituições e coordenar processos para melhorar a integração entre os diferentes níveis e esferas do setor público, com vistas a gerar, preservar e entregar valor público”. Também, o Decreto 10.046/2019 (alterado pelo Decreto 11.574/2023) trata do compartilhamento de dados e elenca, dentre seus fins: “orientar e otimizar a formulação, a implementação, a avaliação e o monitoramento de políticas públicas”; “aumentar a qualidade e a eficiência das operações internas da administração pública federal”.
Apesar das ementas dos decretos não mencionarem o §19 do art. 37 da Constituição (“os órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, devem realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados, na forma da lei”) ambos realizam uma densificação normativa conforme à Lei Fundamental.
Atribuir a existência e a insistência de problemas complexos, como a fome ou o desenvolvimento econômico, à uma falha do modelo de agências é uma hipersimplificação de suas causas que pouco contribui para a construção de soluções viáveis. Problemas complexos ou perversos exigem multirreferências e saberes em rede para superar dualidades e ampliar os horizontes da sua interpretação. O processo legislativo-regulatório necessita de maior concertação entre agentes reguladores diante de problemas públicos transversais e intergeracionais e, portanto, de alto impacto. O “como” promover essa ação concertada é o grande desafio, para o qual os casos de sucesso (e de fracasso) podem oferecer valiosos subsídios.
[1] De acordo com dados do IBGE, 27,6% (ou 21,6 milhões) dos domicílios brasileiros encontravam-se em situação de insegurança alimentar em 2023.