Legal Operations e o Direito Regulatório

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Que o Legal Operations está transformando a forma como times jurídicos entregam valor, você provavelmente já sabe. A Gartner[1] lançou um relatório bastante interessante, que revela como o time jurídico pode ajudar o negócio a operar em meio a um cenário de altíssima volatidade, reforçando que nunca foi tão necessário que os profissionais jurídicos entreguem rápido, sejam uma bússola orientativa para lidar com os riscos e garantam uma tomada de decisão mais assertiva.

A pesquisa coloca o time jurídico no centro, sendo o provedor de insights estratégicos e o catalisador de uma cultura dinâmica, empoderada por tomadores de decisão que saibam se adaptar, sejam flexíveis e invistam em pessoas, tecnologia e conhecimento. De acordo com a pesquisa, seis grandes mudanças precisam ser feitas para que o jurídico seja protagonista até 2025:

Todos os direitos são reservados à Gartner, Inc. e/ou suas afiliadas – o conteúdo acima foi traduzido de forma literal com exclusividade ao JOTA apenas para fins acadêmicos e jornalísticos

Naturalmente, o relatório se aprofunda em cada um dos seis tópicos mencionados acima. Entretanto, queremos destacar que nada adiantará focar nesses pilares se não houver preocupação em montar um time com a força de trabalho mais inclusiva, inovadora e, por tabela, mais eficiente. Um time diverso possui uma inteligência coletiva fora de série, são melhores tomadores de decisão e resolvedores de problemas.

Segundo um artigo publicado na Harvard Business Review[2], alguns times precisam se provar mais do que outros; determinados líderes possuem maior tolerância com alguns comportamentos questionáveis e mulheres com filhos veem seu comprometimento e competência serem consistentemente questionados ou até mesmo enfrentam desaprovação por serem mais focadas na carreira.

Ser um grande gestor jurídico perpassa por ser um grande removedor de vieses. O artigo escrito por Joan C. Williams e Sky Mihaylo orienta a:

ser persistente e exigir um time diverso;
estabelecer critérios objetivos, definindo o que é “adequação à cultura” e exigindo determinadas responsabilidades;
limitar contratações por indicações (estourar a bolha!);
reconhecer a importância das contribuições de menor impacto;
pedir a opinião das pessoas;
explicar como as decisões sobre treinamento, promoção e remuneração são tomadas. Essas são algumas das ideias, no texto você poderá encontrar inúmeras outras.

Até aqui, trouxemos ideias no campo aspiracional. Os objetivos estratégicos expostos pela Gartner ou as orientações de condutas compartilhadas no artigo mencionado acima certamente também fazem parte de uma metodologia interessante ensinada pela Harvard Law School[3]. A ambição da instituição americana é fazer com que os alunos de Direito sejam empreendedores, apresentando a eles boas práticas de mercado ao compartilhar um roteiro demonstrativo sobre como a tecnologia pode mudar a profissão jurídica.

Estudantes, times jurídicos internos, escritórios de advocacia e demais agentes do setor. Até este momento, o presente artigo divide com o leitor iniciativas instigantes sobre como a transformação jurídica vem impactando o mercado. Mas… e especificamente no Direito Regulatório?

Empresas cujos produtos ou serviços são controlados ou fiscalizados por pessoas jurídicas de Direito Público – as agências reguladoras – devem ter uma pessoa especializada em Legal Operations para atuação voltada à proteção dos seus negócios, se querem atuar com maior autoconhecimento e em conformidade regulatória com as normas e regras específicas das suas atividades.

O cuidado deve ser redobrado em organizações onde a área regulatória fica separada do time jurídico. Geralmente quando isso ocorre, o jurídico fica com os processos administrativos sancionadores e as ações judiciais. Por sua vez, a área regulatória se responsabiliza pelos processos de registro, notificação, análise de conformidade (como rotulagens e composição). Não é raro a área regulatória ser somente composta de técnicos e sem advogados.

Nesse cenário, a participação de um profissional de Legal Operations faz toda a diferença. A distribuição clara de competências e de assuntos que necessitam do envolvimento do jurídico, da validação da área regulatória ou quando um é responsável ou somente aprovador perpassa pela criação de uma RASCI – que é um acrônimo derivado de 5 funções-chave em um projeto ou iniciativa:

Responsável: é a pessoa com a responsabilidade de alcançar os resultados pretendidos e lidera o projeto no dia a dia
Autoridade: no inglês fica como accountable, mas traduzimos como “autoridade” por falta de melhor alternativa. É quem dá a última palavra no projeto e orienta o responsável com contextos e informações gerais;
Suporte(s): são pessoas, que podem representar suas áreas, ativas no projeto, dando suporte com tempo e esforço;
Consultado(s): são impactadas pelo projeto/iniciativa e precisam ser consultadas no desenho do escopo;
Informado(s): é qualquer um que precise ser informado sobre o progresso ou decisões.

Funciona como uma espécie de matriz de responsabilidades e facilita o trabalho de todos os envolvidos, para trazer os principais stakeholders para as discussões realmente relevantes. Ter uma RASCI estruturada permite uma comunicação mais rápida, transparente e eficaz – e é especialmente mais relevante quando se trata de projetos cross, entre diferentes áreas.

Naturalmente, em situações em que a área regulatória e o jurídico estejam unidos sob uma mesma direção a RASCI apresenta o seu valor. Quanto mais governança com papéis e responsabilidades bem definidos, melhor, justamente porque é fundamental evitar que qualquer área assuma riscos que não foram mapeados ou dimensionados. Abaixo, ilustraremos com três exemplos de como algumas agências reguladoras já estão monitorando suas atividades com o apoio de profissionais de Legal Operations.

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT)[4] compartilha sua agenda regulatória para o biênio 2023/2024 sob um formato de dashboard, estabelecendo relatórios, gráficos, indicadores, demonstrativos da execução de projetos e detalhamento de atividades, deixando claro para as entidades reguladas e o cidadão que existe uma agenda em cumprimento e em que fase ela está. Veja abaixo:

Print do PowerBi da Agenda Regulatória ANTT, o chamado ‘Painel de Acompanhamento’, extraído em 20/04/2024

A ANTT também possui outras apresentações de dados nesse sentido, como o controle de linhas e seções de transporte rodoviário de passageiros.

A Anvisa divulga a sua agenda regulatória com status de cada um de seus projetos[5]. Um desses temas é a revisão dos padrões microbiológicos aplicáveis a alimentos, que está em fase de consulta pública[6]. A Anvisa também disponibiliza um painel interativo sobre aditivos alimentares. Navegando pelo painel e apertando os botões, a pessoa interessada pode ter acesso a uma gama de informações em poucos cliques.

A imagem da esquerda é a 1ª tela. Já a imagem da direita aparece quando se clica em ‘categorias de alimentos’

O Sistema de Informações de Geração da Aneel tem seus dados atualizados de forma constante, incluindo ainda um marcador de quando as informações são renovadas e uma área específica que funciona como um manual e glossário.

A imagem da esquerda é a 1ª tela. Já a imagem da direita aparece quando se clica em ‘capacidade de geração do Brasil’

As iniciativas acima são louváveis e indicam que as agências reguladoras estão cada dia mais preocupadas em assegurar e simplificar o acesso à informação. Contudo, há ainda muito a se fazer. O cenário normativo regulatório evolui de forma bastante célere e acompanhar essa evolução não é tarefa das mais simples. Sem dúvida, um dos maiores desafios das agências reguladoras é o desenvolvimento de ferramentas que facilitem o acompanhamento dos processos de criação e alteração de atos normativos do setor. E não é só.

É fato que, em muitos casos, não há ferramentas adequadas para o acesso às decisões já proferidas por agências reguladoras, o que dificulta a avaliação dos riscos regulatórios envolvidos em empreendimentos e projetos desenvolvidos por empresas do setor.

Tais circunstâncias tornam essencial que as empresas possuam advogados internos especializados no tema. Ainda que esse advogado possa ser assessorado por escritórios externos, é essencial que haja um interlocutor entre o consultor externo e os órgãos decisórios da empresa não só para garantir alinhamento entre a cultura e os valores da empresa com os resultados do trabalho, mas também a preservação do histórico.

Lideranças jurídicas e corporativas precisam ser competentes – e sobretudo visionárias – para passar a acompanhar, com cautela, suas operações por meio de dados e indicadores. O Poder Público já está se preparando na estratégia de dados abertos para fazer valer o regramento normativo brasileiro. O Direito está passando por profundas transformações e, contar com Legal Operations no mapeamento, remediação e administração dos indicadores que envolvem a operação já não é mais um diferencial. É algo fundamental.

Caso ainda não tenha, comece pela criação e atualização de uma planilha simples, com dados envolvendo o histórico de autuações, controle de licenças, permissões, registros (e suas datas de validade), identificação da necessidade de elaboração de procedimentos operacionais padronizados (os famosos “POPs”), o controle periódico de auditorias, bem como mapeamento de futuros cenários regulatórios à luz das agendas divulgadas pelas agências reguladoras competentes.

Com Direito Regulatório não se brinca. O “simples que funciona” e “comece fazendo o básico bem-feito” são frases clichê que merecem ser usadas aqui. E elas fazem todo o sentido quando encerramos com a citação atribuída a Zig Ziglar[7]: “você não tem que ser grande para começar, mas você tem que começar para ser grande”.

[1] Encontre o relatório da Gartner “Legal Operations: transforme como seu departamento jurídico entrega valor”, no original “Legal Operations: Transform How Your Legal Department Delivers Value” disponível em <https://www.gartner.com/en/legal-compliance/topics/legal-operations>. Acesso em 20/04/2024.

[2] “Como os melhores chefes interrompem o preconceito em suas equipes” no original “How the Best Bosses Interrupt Bias on Their Teams”, artigo publicado na Harvard Business Review e disponível em <https://hbr.org/2019/11/how-the-best-bosses-interrupt-bias-on-their-teams>. Acesso em 20/04/2024.

[3] Iniciativa extraída do site “Harvard Law Today” disponível em < https://hls.harvard.edu/today/we-want-to-show-students-how-to-be-entrepreneurs/>. Acesso em 20/04/2024.

[4] Saiba mais sobre a ANTT em seu site oficial, com endereço disponível em: <https://portal.antt.gov.br/sistemas>. Acesso em 20/04/2024.

[5] Disponível em  https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/regulamentacao/agenda-regulatoria/agenda-2024-2025/construcao-da-agenda-2024-2025. Acesso em 22 abr. 2024.

[6] Disponível em https://antigo.anvisa.gov.br/consultas-publicas#/visualizar/516042. Acesso em 22 abr. 2024.

[7] Autor norte-americano.