Na tarde da última quinta-feira (19), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024 teve sua votação concluída pelo Congresso Nacional, com a apreciação de dois destaques[1]. A LDO orienta a elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA), decidindo como deve ser o Orçamento do próximo ano. Definir a distribuição de recursos orçamentários é definir as prioridades políticas do Estado brasileiro: onde devemos investir? Quais políticas devem ser prioridade? Para onde queremos caminhar?
O primeiro destaque, apresentado pela liderança do PSOL, foi rejeitado[2]. Ele buscava a meta de déficit fiscal de zero para 1% do PIB. No espelho da emenda, a justificativa indicada seria a própria irrealidade de uma meta de déficit zero, em um contexto de amplas necessidades de promoção de políticas públicas, além de se arriscar o próprio cumprimento do programa de governo do Executivo. O relator do Projeto de Lei do Congresso Nacional n° 4, de 2023 (PLDO 2024), deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), “foi contrário porque, segundo ele, a prerrogativa de fixar a meta é do Executivo”. Faz sentido, mas para quem?
É importante entender como o próprio Executivo apresentou uma proposta orçamentária, no mínimo, de baixa capacidade transformadora. Há quem argumente que um Congresso Nacional conservador como o atual não aprovaria propostas ousadas, que a negociação “de balcão” é difícil, que é necessário ser realista etc. Seja como for, é preciso registrar que o novo pacote orçamentário, de extrema austeridade, vem com a assinatura do próprio governo, sob a justificativa da “responsabilidade”. É sempre bom refletir que, em um cenário pró-democracia, não é irrelevante descobrir a quem o compromisso da responsabilidade foi confiado.
Para além desta grave questão, que atravessa centralmente toda a proposta orçamentária de 2024 e traz mais sufoco orçamentário ao povo brasileiro, a decisão da LDO 2024 trouxe consigo a aprovação de um outro destaque, sustentado pela liderança do PL. O destaque, cuja ementa em espelho é denominada “MST/Ideologogia de Gênero” [sic], foi aprovada em plenário eletrônico[3] e traz a justificativa de que “a União respeite a propriedade rural” e “a educação singular de cada família em relação às suas crianças”, sendo incorporada à LDO 2024.
O processo de decisão das diretrizes orçamentárias de 2024 foi utilizado pelo Congresso Nacional para impor a agenda inconstitucional de perseguição a direitos promovida pelos setores neoconservadores. A emenda é nomeada a partir do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que é um dos maiores movimentos sociais do mundo e o maior produtor de alimentos orgânicos do continente. Vale lembrar o fiasco da “CPI do MST”, que ocupou espaço da agenda de 55 parlamentares por 130 dias.
Outro ponto central é que a emenda à qual o destaque aprovado se refere também é nomeada “ideologia de gênero”. Sem entrar aqui em um debate detalhado sobre a criação deste sintagma estratégico usado por grupos neoconservadores para destruírem direitos e promoverem injustiças, o fato é que se vedou o gasto público com situações ilegais. O que poderia parecer um erro ou um paradoxo é, na verdade, um impeditivo à efetivação de políticas de igualdade de gênero e de garantia do aborto legal.
A cruzada contra a igualdade de gênero, no Brasil e no mundo, adotou a agenda antigênero. Na sua vertente antitrans, o objetivo é tornar ainda mais precária a existência da população mais vulnerável do país, cuja expectativa de vida é de 35 anos – o Brasil, pelo 14º ano seguido, é o país que mais mata pessoas transsexuais, travestis e transgênero no mundo.
Na deliberação da LDO 2024, foram mobilizadas pelo destaque aprovado uma notável mentira sobre a possibilidade de realização de cirurgias de modificações corporais para processo transexualizador em pessoas menores de 21 anos, o que não é (e nunca foi) permitido no Brasil. Entraram na LDO 2024 outros temas abertamente contrários à população LGBTI+, como a restrição do que pode ser considerado família na definição de investimentos em políticas públicas.
Além da LGBTfobia e misoginia própria dos movimentos antidireitos, a menção ao aborto legal nesse dispositivo é um recado ao Supremo Tribunal Federal. De novo, o Congresso camufla seus ataques à autoridade do STF. Nesse caso, o faz porque a ministra Rosa Weber iniciou o julgamento da ADPF 442/DF, ação proposta pelo PSOL que requer a descriminalização do aborto no Brasil.
A então ministra proferiu voto, em setembro, não apenas favorável ao pedido, mas com fundamentos robustos sobre justiça reprodutiva. Com a aposentadoria de Rosa Weber, assumiu a presidência da corte o ministro Roberto Barroso, que, seja como professor, seja como magistrado, tem posição clara sobre o direito à autonomia reprodutiva das mulheres e pessoas que gestam.
A mensagem do Congresso ao STF é decodificável: juízas e juízes podem garantir o direito dos grupos politicamente subalternizado, mas é o Legislativo que decidirá o orçamento para efetivá-las.
No caso do aborto, a literatura especializada aponta que, em cenários de criminalização e severa restrição de acesso à saúde sexual e reprodutiva, também o acesso ao aborto legal (nos poucos casos permitidos por lei) não se realiza.
A desinformação, o medo, a ameaça de punição penal e ético-profissional cria uma atmosfera na qual os profissionais de saúde e assistência não sabem sequer se podem dar às mulheres informações que impeçam o aborto inseguro. Seja por moralismo, preconceito ou desconhecimento, passam a atuar como profissionais da segurança pública, desconfiando de toda pessoa que precisa de assistência em situações de abortamento e pós-interrupção da gravidez de forma a garantir a concretização da mesma.
Não é preciso muito esforço para se identificar as consequência disso: no Brasil, segundo o Datasus, a cada 30 minutos, acontece um parto de meninas entre 10 e 14 anos. A maioria delas teve de 4 a 6 consultas de pré-natal, ou seja, muitos momentos em que poderiam ter acesso à informação de que teriam direito ao aborto legal.
Ao proibir o uso de recursos para políticas ou ações que extrapolem o aborto legal, protejam as famílias em sua diversidade e o gênero das pessoas, a LDO esvazia as políticas públicas existentes e impede ações futuras a serem desenvolvidas por um governo que foi eleito com o apoio destes grupos historicamente marginalizados.
O combo neoconservadorismo/austeridade fiscal normalmente caminha junto, mas não nos cansamos de nos surpreender. O que parece ser novidade para desatentos é a percepção mais evidente de que a agenda antidireitos LGBTI+ e de gênero nunca foi cortina de fumaça. A disputa pelo orçamento é o centro da deliberação dos projetos políticos.
As pesquisadoras do campo crítico de gênero têm sistematicamente mostrado as seletividades sexuais e de gênero desta combinação perversa. A decisão orçamentária desta semana mostra que combater os direitos das mulheres e das pessoas LGBTI+ não é um tema marginal, mas o eixo central do programa neoconservador que tem dominado as disputas políticas. Este eixo organiza conceitos, estratégias, planos e orçamento para a execução de seus projetos de poder autoritários.
[1] “Aprovado o Substitutivo, na Câmara dos Deputados, ressalvados os destaques, com os votos contrários do Novo, do Deputado Glauber Rocha, da Deputada Sâmia Bomfim e do Deputado Chico Alencar. Aprovado o Substitutivo, no Senado Federal, ressalvados os destaques, com o seguinte resultado: Sim 65, Não 2, Presidente 1, Total 68” (https://www.congressonacional.leg.br/materias/pesquisa/-/materia/156890).
[2] “Rejeitada a Emenda 14680023, destacada, na Câmara dos Deputados, com os votos contrários dos Deputados Lindbergh Farias, Bohn Gass, Chico Alencar, da Deputada Jandira Feghali, dos Deputados Tarcísio Motta, Pastor Henrique Vieira, Renildo Calheiros, Daniel Almeida, da bancada do PC do B e dos Deputados Tadeu Veneri, Guilherme Boulos e Alexandre Lindenmeyer; deixando de ser submetida ao Senado Federal” (https://www.congressonacional.leg.br/materias/pesquisa/-/materia/156890).
[3] “Aprovada a Emenda 30880002, destacada, na Câmara dos Deputados, com o seguinte resultado: Sim 305, Não 141, Abst. 2, Total 448. Aprovada a Emenda 30880002, destacada, no Senado Federal, com o seguinte resultado: Sim 43, Não 26, Presidente 1, Total 70” (https://www.congressonacional.leg.br/materias/pesquisa/-/materia/156890).