Julgamento de (in)constitucionalidade da EC 103/19

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A constitucionalidade da reforma da Previdência operada pela Emenda Constitucional 103/2019 vem sendo objeto de julgamento conjunto em 13 ações diretas de inconstitucionalidade. Iniciado o julgamento em sessão virtual em setembro de 2022, a matéria quase teve uma conclusão bastante nociva aos regimes próprios de previdência social (RPPS) na sessão presencial de 19 de junho – encerrada por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, último a votar.

São cinco os principais temas controvertidos nas ações: 1) a progressividade das alíquotas de acordo com o valor da base de contribuição (artigo 149, §1º, da CF/88); 2) a ampliação da base de cálculo da contribuição previdenciária, em caso de déficit, para alcançar proventos de aposentadoria e pensões que ultrapassem o valor do salário-mínimo (artigo 149, §1º-A, da CF/88); 3) a instituição de contribuição extraordinária por período determinado (artigo 149, §§1º-B e 1º-C, da CF/88); 4) a aposentadoria de mulheres servidoras públicas sem os critérios reduzidos das trabalhadoras vinculadas ao regime geral de previdência (artigo 40, §1º, inciso III, da CF/88); e 5) a nulidade de aposentadorias que tenham sido concedidas ou que venham a ser concedidas por RPPS com contagem recíproca do RGPS, mediante o cômputo de tempo de serviço sem o recolhimento da respectiva contribuição ou da correspondente indenização (artigo 25, §3º, da EC 103/2019).

O ministro relator, Luís Roberto Barroso, votou pela constitucionalidade de todas as regras da EC 103/2019 em debate, estabelecendo apenas alguns parâmetros para a ampliação da base de cálculo da contribuição previdenciária sobre proventos de aposentadoria e pensões. Ainda no plenário virtual, o ministro Fachin abriu divergência para declarar a inconstitucionalidade de todos os cinco tópicos listados acima. O julgamento no plenário virtual foi remetido aos debates presenciais por pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes.

Já no plenário presencial, o julgamento foi retomado com o voto do ministro vistor e terminou com 10 votos já proferidos. O saldo final da sessão do dia 19 foi bem relatado em matéria do JOTA.

Merece destaque a ampla adesão dos ministros que já votaram quanto à declaração de inconstitucionalidade da regra que nulifica as aposentadorias que tenham sido concedidas ou que venham a ser concedidas por RPPS com contagem recíproca do RGPS mediante o cômputo de tempo de serviço sem o recolhimento da respectiva contribuição ou da correspondente indenização. Apenas o ministro Barroso entendeu a regra constitucional.

Os debates demonstraram que o dispositivo em análise afeta sobretudo membros do Ministério Público e da magistratura que computaram como tempo de serviço o período em que exerceram a advocacia, sem recolher as respectivas contribuições – respaldados nas regras pretéritas à EC 20/1998 e em parecer do Tribunal de Contas da União exarado em 2019. Uma camada bastante privilegiada dentre os afetados pela EC 103/2019, como bem ressaltou o ministro Gilmar Mendes em sua manifestação.

Conquanto o tema da aposentadoria de mulheres não tenha emocionado tanto os Ministros quanto a aposentadoria de magistrados e promotores, foram 7 votos pela inconstitucionalidade da regra da EC 103/2019 que excluiu das servidoras públicas a aposentadoria diferenciada que beneficia as mulheres filiadas ao RGPS (pela constitucionalidade, apenas os ministros Barroso, Nunes Marques e Cristiano Zanin).

É interessante acompanhar a tendência da corte em prestar observância ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5 da Agenda 2030 da ONU, relativo à igualdade de gênero e ao empoderamento de meninas e mulheres, mesmo depois do conservadorismo demonstrado no (não) julgamento do direito de pessoas transexuais utilizarem banheiros públicos conforme sua identidade de gênero e na (não) concessão de licença-maternidade para mãe não gestante em relacionamento homoafetivo.

Contudo, tais pontos não despertam tanto interesse dos RPPS estaduais. Como ressaltado nos debates, a nulidade da aposentadoria por tempo de contribuição afeta uma parcela muito pequena de segurados e beneficiários. Já no caso das mulheres, uma aposentadoria com critérios mais benéficos pode ser compensada com a possibilidade de continuar cobrando contribuição previdenciária na inatividade, notadamente quando considerada a base de cálculo alargada pela emenda.

O que efetivamente preocupa os entes políticos instituidores de RPPS é o impacto meteórico na sobrevivência do sistema se for declarada a inconstitucionalidade da contribuição previdenciária incidente sobre o valor de proventos de aposentadorias e pensões que ultrapassa o salário-mínimo.

Neste contexto, 21 estados (AC, AM, AP, BA, CE, ES, GO, MA, MT, MS, MG, PA, PR, PE, PI, RS, RO, RR, SP, SE e TO) ingressaram como amici curiae na ADI 6.361. A atuação dos entes federativos se dá de forma articulada e consorciada, através da Câmara Técnica do Colégio Nacional de Procuradores Gerais dos Estados e do Distrito Federal (Conpeg).

O papel da União em defesa da sobrevivência financeira dos estados também foi notada nos autos, com deferência expressa feita pelo ministro relator em seu voto complementar. Disse o ministro Barroso que “[…] pautado o feito para continuidade de julgamento, a Advocacia Geral da União apresentou memoriais complementares. Aponta ressalvas ao entendimento proposto, uma vez que a adoção de alíquotas progressivas não seria um meio idôneo, na maior parte dos entes federativos, para lidar com o rombo previdenciário – ao contrário, traria redução arrecadatória. Pede, assim, que seja permitida a majoração da base de cálculo quando efetivamente demonstrada que a adoção da alíquota progressiva seria inútil ou mesmo prejudicial às contas públicas”.

A partir da premissa apresentada pela AGU, o ministro ajustou seu voto anterior – pelo qual a ampliação da base de cálculo dos inativos só poderia ser instituída se mantido o déficit depois de vigentes as alíquotas progressivas – para esclarecer que a exigência pode ser considerada satisfeita caso o ente público demonstre que a progressividade da contribuição acarretará, em concreto, agravamento da situação das contas públicas.

Mesmo que a progressividade das alíquotas tenha o potencial de conferir efetividade e refinamento ao princípio da capacidade contributiva e represente importante elemento de justiça fiscal, o impacto orçamentário e atuarial de tal medida não é suficiente para superar o déficit dos regimes próprios.

A adoção de alíquotas progressivas reduz a arrecadação advinda dos segurados da menor faixa salarial, compensando-se com o aumento de alíquotas sobre os salários maiores. Concretiza-se a capacidade contributiva, mas não se tem um incremento significativo de arrecadação.

O grande número de inativos no Brasil, somado à alta expectativa de vida da população (85 anos para brasileiras e 82 anos para brasileiros) demanda a implementação de ambas as medidas: progressividade de alíquotas e ampliação de base de cálculo da contribuição previdenciária para inativos e pensionistas. Não sendo suficiente para sanear as contas da previdência, terá lugar a contribuição extraordinária.

A perspectiva é respaldada pelas premissas estabelecidas no acórdão da ADI 7.051, de relatoria do ministro Barroso, a partir de projeções feitas pela ONU: houve um aumento substancial na expectativa de vida brasileira, de forma que em 2100 o Brasil será o 10º país do mundo em proporção de idosos; a queda na taxa de fecundidade leva à diminuição progressiva da população em idade ativa, o que reduz o número de segurados ativos para custear o pagamento dos benefícios; o déficit previdenciário teve piora significativa nos últimos anos e o pagamento de aposentadorias e pensões consome fatia relevante do PIB e do orçamento estatal; reformas na Previdência Social que reduzam o endividamento público podem ter impactos macroeconômicos positivos, como o estímulo ao consumo e à produção.

Note-se que a manutenção do caráter solidário da previdência – cuja constitucionalidade é questionada na ADI 6.271 – vem referendada por todos os dez Ministros que votaram até agora. Isso implica que não há, nem precisa haver, correspondência exata entre o valor contribuído e o valor percebido, o que fundamenta e autoriza o aumento da base de cálculo da contribuição dos inativos e pensionistas.

Neste sentido, a jurisprudência firmada nas ADI 5.944 e 6.496, ambas de relatoria do ministro André Mendonça, autorizou o incremento de alíquotas de contribuição previdenciária sobre inativos e pensionistas, inclusive tendo por base de cálculo valor dos proventos que supere o salário-mínimo – tal como previsto na EC 103/2019.

Se, por um lado, a fixação de alíquotas progressivas é justamente o mecanismo que viabiliza que a austeridade das novas regras previdenciárias não recaia exclusivamente sobre aposentados e pensionistas, a medida – sem a expansão da base de cálculo da contribuição de inativos e pensionistas – não é suficiente para equacionar o problema orçamentário e atuarial do regime próprio de previdência.

No âmbito das contribuições ordinárias, o escalonamento de alíquotas de acordo com a faixa salarial ou com o valor dos proventos de aposentadoria e pensão que ultrapasse o salário-mínimo parece ser um caminho adequado – atende-se à capacidade contributiva sem descuidar da solidariedade do sistema, que demanda um incremento das fontes de custeio de previdência para sobrevivência dos regimes próprios.

O panorama atual do julgamento é de 5 votos pela inconstitucionalidade da alíquota progressiva e 5 pela constitucionalidade. 7 votos pela inconstitucionalidade da contribuição extraordinária e da ampliação da base de cálculo da contribuição previdenciária de inativos e pensionistas – ministros Fachin, Moraes, Dias Toffoli, Luiz Fux, Mendonça e ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia. Destes, 3 foram advogados públicos. O ministro Gilmar Mendes ainda não votou.

Cabe às advogadas públicas, então, trabalhar para conquistar o voto do ministro famoso por suas análises consequencialistas do direito e para reverter 2 dos votos sobre os demais pontos.

É a advocacia pública em defesa dos estados contra o meteoro que virá abater seus regimes próprios de previdência acaso declarada a inconstitucionalidade das regras da EC 103/2019.