Judicialização excessiva e seus efeitos sobre o setor aéreo

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O setor aéreo brasileiro passa por uma realidade desafiadora, marcada por um cenário jurídico intricado e custoso, que se adiciona à complexidade da própria operação aérea. Distanciando-se da prática global, as empresas aéreas no Brasil lidam com um volume de litígios e custos judiciais significativamente mais elevados do que seus pares internacionais sem evidências científicas que justifiquem tal tratamento pelas autoridades brasileiras.

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Dados revelam que, enquanto a demanda por viagens aéreas continua a crescer, a judicialização excessiva ameaça a eficiência operacional e a saúde financeira das empresas. Por exemplo, o setor aéreo no Brasil, que inclui duas das dez mais bem avaliadas companhias aéreas do mundo em termos de pontualidade, enfrenta custos judiciais acima da média global, em um país que tem conhecidas dificuldades logísticas. Além disso, empresas como a Azul, líder em pontualidade[1], viram seus custos com processos consumeristas quase triplicarem em um período de seis anos[2], o que destaca a magnitude do problema.

Essa situação não apenas eleva os custos operacionais para as companhias, mas também tem implicações diretas para os consumidores, potencialmente levando a preços mais altos de passagens e serviços reduzidos oferecidos no mercado. O desafio agora é buscar um equilíbrio entre a proteção dos direitos do consumidor idealizadas pelas autoridades brasileiras e a viabilidade econômica das empresas aéreas, garantindo que o setor continue a ser um motor de crescimento e conectividade no Brasil. Este artigo se propõe a dissecar essa dinâmica, explorando caminhos possíveis para uma solução equilibrada.

No cerne da turbulência jurídica enfrentada pelo setor aéreo brasileiro, reside uma tensão entre a aplicação dogmática e inconsequente  de princípios abstratos do Código de Defesa do Consumidor (CDC) -especialmente o reconhecimento de “danos morais” – e leis mais específicas do setor, como o Código Brasileiro de Aeronáutica e as convenções internacionais de Montreal e Varsóvia – das quais o Brasil faz parte. Esta dissonância normativa tem sido um dos principais catalisadores dos litígios excessivos que caracterizam o setor. Enquanto o CDC, segundo a leitura idealista de alguns, busca proteger os direitos dos consumidores, muitas vezes ele é aplicado à revelia das leis setoriais específicas que foram desenhadas pensando em consequências mais amplas, e que poderiam oferecer uma abordagem mais equilibrada e alinhada com padrões internacionais.

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A aplicação inconsequente do CDC, em detrimento de normativas específicas do setor aéreo e de uma interpretação pragmática e consequencialista da principiologia do CDC,tem levado a um aumento substancial nos custos legais para as companhias. O caso da Azul não é isolado. Essa corrida aos tribunais reflete uma tendência preocupante que cria mais obstáculos para a viabilidade financeira das empresas aéreas no país.

O setor aéreo brasileiro já opera no prejuízo. De acordo com o anuário da aviação da ANAC, entre 2009 e 2022 a indústria obteve margem operacional negativa em 7 dos 14 anos. Mas a divisão “ano sim, ano não” não significa que haja uma compensação na média, pois analisando em valores absolutos, a margem operacional dos anos positivos (2,7%) é menor que nos anos negativos (- 3,4%), mesmo excluindo os anos de pandemia (2020 e 2021).

Ao analisarmos a margem líquida, vemos um cenário ainda mais desolador. Apenas em 2009, 2010 e em 2017 houve resultado positivo para a margem líquida da indústria. A baixa margem deixa as aéreas sem muito espaço para lidar com crises e as obriga a operar endividadas. Após um tumultuado processo de Recuperação Judicial[3], a AVIANCA parou de operar no país em 2019. Hoje é a GOL. Neste cenário, as despesas judiciais adicionais impactam inevitavelmente nos serviços oferecidos aos consumidores, especialmente na forma de redução de oferta de voos.

Segundo dados da ANAC,[4] o setor de aviação civil comercial no Brasil suportou um custo com solução de conflitos com passageiros no valor de R$852 milhões de reais em 2022. Em 2020, ano de pandemia, esse valor ultrapassou 1 bilhão de reais, o equivalente a 3,2% de todos os custos e despesas do setor.

Porém, seria um erro achar que a judicialização excessiva afeta apenas os custos das empresas aéreas. Na verdade, ela afeta também os preços ao consumidor – e o resultado final deste impacto é uma redução na quantidade de passagens vendidas e redução das receitas das empresas aéreas.

Nessa esteira, estudos indicam que aumentos nos preços das passagens, muitas vezes resultantes de custos legais elevados, podem levar a uma diminuição significativa na demanda por voos. No Canadá, Gillen, Morrison e Stewart revisaram a literatura de elasticidades-preço da demanda no setor aéreo, identificando que — na mediana — um aumento de 1% no preço das passagens aéreas resultava em uma redução de 1,12% ou mais na quantidade de passagens demandadas. Para o mercado brasileiro, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revelou que um aumento de 1% no preço das passagens aéreas resultaria em uma diminuição de 1,15% na quantidade de passagens demandadas. A proximidade dos valores achados por pesquisadores independentes sugere que a elasticidade-preço da demanda neste setor é bastante estável. Com uma elasticidade-preço da demanda maior que 1, um aumento de preços pelas empresas aéreas causa uma redução de receitas.

Com base nessas informações, em um exercício de cálculo econômico simples, estimamos que supondo um aumento de preços na ordem de 3,2% devido aos custos da judicialização, teríamos uma queda na quantidade demandada de −3,68%, resultando em uma queda total de receitas  de -0,6%. Em 2022, isso significa que a judicialização excessiva impactou o setor com uma redução de receitas na ordem de R$333 milhões de reais – além dos outros custos.

Esta dinâmica do perfil de consumo do setor aéreo, com elasticidades-preço da demanda maiores que 1, coloca uma pressão constante sobre as empresas para manter preços competitivos e, ao mesmo tempo, gerenciar eficientemente seus custos. Assim, as decisões das empresas aéreas, como a suspensão de operações em determinadas regiões, são estratégicas e refletem uma compreensão pragmática dessa tensa realidade econômica.

No estado de Rondônia, que passou por uma crise no ano passado, vimos uma redução significativa no número de voos oferecidos pelas principais companhias aéreas, como reflexo das pressões econômicas e judiciais. Entre janeiro de 2022 e junho de 2023, a GOL, LATAM e Azul foram processadas 24.811 vezes no estado[5]. Essa situação exemplifica como as decisões judiciais, ao imporem custos adicionais às empresas, podem ter um efeito indireto na redução da oferta de serviços aéreos, afetando negativamente os consumidores e a economia local[6].

A chave para a resolução dos desafios enfrentados pelo setor aéreo brasileiro reside em alcançar um equilíbrio entre a proteção ao consumidor e a sustentabilidade econômica das companhias aéreas. As decisões judiciais, embora fundamentadas na principiologia da proteção dos direitos dos consumidores, devem considerar os efeitos econômicos e os incentivos que geram no contexto mais amplo da indústria aérea.

A interpretação e aplicação das leis especiais que estão alinhadas com as normas do setor, como o Código Brasileiro de Aeronáutica e as convenções internacionais, são vitais para evitar uma abordagem excessivamente paternalista e interventiva que possa, paradoxalmente, prejudicar os consumidores que se pretende proteger. Talvez inclusive tenha chegado ao momento de aplicar tão somente as normas e regras setoriais, deixando de lado a aposta em conceitos jurídicos indeterminados, que abrem espaço demasiado para a criação judicial.

Há um motivo para os países com setores aéreos maiores, mais baratos e de maior alcance que o brasileiro terem convergido para as normativas dos tratados internacionais e regras setoriais regulatórias. Cabe ao Brasil fazer sua lição de casa e trabalhar para competir com as melhores e mais eficientes regras setoriais conhecidas hoje.

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[1] CIRIUM, The on-time performance review 2022, New York: CIRIUM, 2023.

[2] Notas explicativas nas Demonstrações Financeiras Padronizadas da companhia.

[3] https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2019/04/24/voo-da-avianca-e-interrompido-e-passageiros-sao-retirados-de-aviao-em-salvador.ghtml

[4] Anuário da Aviação, 2022.

[5] G1. Azul foi processada 15 mil vezes em Rondônia em um ano e meio. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/ro/rondonia/retirada-voos-azul-processos-judiciais-exclusivo.ghtml>. Acesso em: 19 fev. 2023.

[6] G1 RO. Prefeitura entra na Justiça para que Azul e Gol retomem voos suspensos em Porto Velho. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2023/08/25/prefeitura-justica-azul-gol-retomem-voos-suspensos-cancelados-porto-velho.ghtml>. Acesso em: 12 set. 2023.