Quando concebida em 1943, a redação original do artigo 62 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) mencionava expressamente “os vendedores pracistas, os viajantes e os que exercerem, em geral, funções de serviço externo não subordinado a horário”, para excepcioná-los da obrigatoriedade do controle de jornada.
A referência deixava claro o racional por trás da exceção: estariam abrangidos os serviços externos que não são subordinados a horário. A redação foi alterada em 1994, para constar como a conhecemos atualmente no inciso I do referido artigo, adotando-se então a definição de que a atividade externa deve ser “incompatível com a fixação de horário de trabalho”.
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De lá para cá, muito já se discutiu na Justiça do Trabalho sobre o conceito dessa “incompatibilidade”, ainda mais considerando o desenvolvimento dos meios telemáticos ao longo desses 35 anos, que trouxe ferramentas que permitem monitorar e rastrear indivíduos a qualquer momento do dia. Mais recentemente, essas questões têm sido amplamente debatidas no Tribunal Superior do Trabalho (TST), especialmente no âmbito dos Incidentes de Recursos de Repetitivos e na formação de temas vinculantes.
A primeira discussão se iniciou com o julgamento do Tema 73, publicado em 08/04/2025, que trata da distribuição do ônus da prova nos casos levados ao judiciário e que envolvam empregados que exerçam jornada externa. Ao se debruçar sobre a controvérsia, o Tribunal Pleno do TST entendeu que, para que se possa aplicar o art. 62, I da CLT, caberia ao empregador o ônus de comprovar a impossibilidade de controle da jornada externa.
A consolidação deste entendimento traz para os empregadores dificuldades significativas na construção de suas defesas, sobretudo se considerado que impor a uma parte que comprove que determinado fato não ocorre – ou seja, que é impossível ser implementado o controle – tangencia a ideia da chamada “prova diabólica”, a qual, nas palavras do doutrinador Alexandre Câmara, é aquela “extremamente difícil, nenhum meio de prova sendo capaz de permitir tal demonstração”[1].
Ao fixar como sendo do empregador o ônus da prova da impossibilidade de controlar o horário do trabalhador externo – e não do empregado a incumbência de comprovar que, mesmo trabalhando externamente, tinha sua jornada efetivamente controlada – e passar a exigir que os empregadores produzam prova de que não haveria meios de controlar o horário, o TST torna, de certo modo, quase inaplicável o inciso I do art. 62 da CLT. Isso porque, impossível mesmo parece ser a produção da referida prova– especialmente nos dias atuais, em que, como já se disse, meios telemáticos permitem o acesso em tempo real a praticamente qualquer pessoa, inclusive da sua geolocalização.
Em outras palavras, a consequência prática que se extrai desse novo posicionamento jurisprudencial é a de que não seria mais relevante a verificação se havia ou não uma “incompatibilidade” de controle de jornada no caso concreto, mas sim, se o empregador comprovou nos autos do processo judicial que era realmente absolutamente impossível implementar qualquer tipo de controle – ainda que demonstrado, na prática, que não havia qualquer controle efetivo de horário. Ausente esta prova, a tendência da jurisprudência é a de afastar a aplicação do artigo ora em análise, com a consequente condenação do empregador ao pagamento de horas extras ao trabalhador externo.
A formação da jurisprudência do TST neste sentido desperta o debate jurídico acerca dos limites jurisprudenciais, na medida em que, tecnicamente, a impossibilidade de controle não é propriamente uma exigência legal para a incidência do art. 62, I da CLT, haja vista que a lei fala em incompatibilidade com o controle de jornada, e não em impossibilidade.
Considerando que o Tema 73 é bastante recente, ainda são aguardados os reflexos desse novo posicionamento nas decisões dos Tribunais Regionais e suas respectivas Varas do Trabalho.
Enquanto isso, outra discussão em torno do trabalho externo foi definida no âmbito do TST. No dia 25.08.2025, o Tribunal Pleno do TST entendeu pela afetação do Recurso de Revista nº 0011672-65.2022.5.15.0042, nos seguintes termos: “TRABALHO EXTERNO. AUSÊNCIA DE CONTROLE. PREVISÃO EM NORMA COLETIVA. a) É válida norma coletiva que exclui a obrigação de controle de jornada dos trabalhadores externos para os fins do art. 62, I, da CLT? b) a possibilidade de controle indireto da jornada afasta a incidência da norma coletiva e do art. 62, I, da CLT?”
Com a aprovação da afetação, a referida controvérsia se tornou o Tema 300 do TST e, conforme disposição do art. 896-C, da CLT, o Presidente do Tribunal Pleno expedirá comunicação para os Presidentes das Turmas do TST para que afetem outros processos com a mesma matéria para o julgamento conjunto, além da determinação de que sejam suspensos pelos TRTs os processos de casos idênticos.
Este debate é permeado diretamente por outra discussão bastante comentada desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) pacificou, por meio do Tema 1046, a validade das normas coletivas que limitam ou restringem direitos trabalhistas não assegurados constitucionalmente.
Neste julgamento, o STF consagrou a regra incluída em 2017 na CLT que privilegia a negociação coletiva, o que vem sendo refletido em boa parte da jurisprudência do próprio TST, ao reconhecer a validade da autonomia da vontade coletiva das partes para negociarem direitos constitucionalmente disponíveis.[2]
Na esteira do conceito estabelecido pelo Tema 1046, e não se tratando de matéria legalmente vedada de ser objeto de negociação coletiva, seria razoável esperar que, ao julgar esse novo tema, o TST conclua pela validade da cláusula normativa que exclua determinados grupos de empregados com trabalho externo do controle de jornada, com base na previsão do art. 62, I da CLT. Resta saber como será tratada a questão da “possibilidade” de controle indireto para afastar a validade da norma, considerando o histórico da jurisprudência do TST e especialmente o teor do Tema 73.
Sobrevindo uma decisão favorável à validade da cláusula normativa, parece-nos que, ao menos nesta hipótese, o encargo do empregador de provar a impossibilidade do controle de jornada deveria estar superado – e, nesta situação, voltaria então a incumbir ao empregado a tarefa de comprovar o efetivo controle por parte do seu empregador.
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Logicamente, para que esta solução se confirme como um caminho viável, será necessário que as discussões acerca da segunda parte do tema afetado confluam para a confirmação das diretrizes do Tema 1046 do STF. Em outras palavras, que a norma coletiva tenha plena validade e que a possibilidade de existir um controle indireto de jornada não afaste sua aplicação à relação de trabalho.
Do contrário, teremos tão somente um mero desdobramento do entendimento já consagrado pelo Tema 73, sem o devido prestígio do negociado sobre o legislado, além de uma possível violação ao artigo 611-A da CLT, bem como ao princípio constitucional do reconhecimento das normas coletivas de trabalho, esvaziando, por completo, o seu conteúdo material.
Ainda não há previsão para o julgamento do Tema 300, quando então teremos uma definição mais concreta do cenário no âmbito do TST e a confirmação quanto a ser a negociação coletiva um caminho possível para solucionar a questão da jornada externa, tão comum e intrínseca a diversos ramos da atividade econômica do país. Por ora, os efeitos do Tema 73 seguem como um importante desafio a ser estudado pelas empresas que possuam, em seus quadros, empregados lotados em atividade externa.
[1] CÂMARA, Alexandre Freitas. “Doenças Preexistentes e ônus da Prova: o Problema da Prova Diabólica e uma Possível Solução”. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: Dialética, 2005, n. 31, p. 12.
[2] Veja, por exemplo, recente decisão proferida nesse sentido pelo TST no Ag – Agravos 0101850-05.2017.5.01.0243; Relator(a): Breno Medeiros; Órgão Julgador: 5ª Turma; Data da Decisão: 14/05/2025; Data de Publicação: 19/05/2025.