‘Já não esgotou esse tema?’ – a resistência ao debate sobre igualdade de gênero

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Semana passada conversava com um amigo – intelectual, das artes e pró igualdade de gênero – sobre eventos acadêmicos e ele me solta uma frase emblemática do momento que passamos: “eu acho que esse tema de gênero já esgotou, ninguém aguenta mais falar sobre isso”. Já esgotou? Será? Será que ninguém aguenta mais falar sobre isso porque o problema já está resolvido ou porque o tema de fato incomoda quem está vendo a estrutura patriarcal começar a balançar diante da atual recusa das mulheres em permanecerem em silêncio?

Vamos pensar na primeira hipótese: digamos que o problema está tecnicamente resolvido. Afinal, já temos um protocolo para julgamento em perspectiva de gênero, aprovado e que precisa ser necessariamente aplicado, depois que o CNJ o transformou na Resolução 492, de 17 de março de 2023. O CNJ também aprovou, em 31 de agosto de 2023, a Resolução 518, que alterou a Resolução 351/2020, para instituir a política de prevenção e enfrentamento de assédio moral, de assédio sexual e a discriminação, a fim de promover o trabalho digno, saudável, seguro e sustentável no âmbito do Poder Judiciário, que tem um forte viés de gênero, até porque decorrente do que foi estabelecido com a citada Resolução 492. Além disso, alguns dias atrás o mesmo CNJ sacramentou outra resolução que mexe com as estruturas de promoções nos tribunais: no dia 26 de setembro de 2023 foi alterada a Resolução 106/2010, que trata dos critérios objetivos para promoção de magistrados e magistradas, estabelecendo ação afirmativa para aumentar a participação feminina nos tribunais, que hoje é de cerca de 21%, embora elas sejam 38% da magistratura e 51% da população. A par disso, o Prêmio Nobel de Economia foi concedido, em 09 de outubro de 2023, para Claudia Goldin, professora de Harvard, por seus trabalhos sobre mulheres no mercado de trabalho, onde ela demonstra que as mulheres sofrem uma punição do mercado de trabalho por serem mulheres e mães[1]. Um detalhe: em 54 anos de premiação, ela foi a 3ª mulher a receber o prêmio.

Ocorre que apesar das diversas normativas a realidade se apresenta amplamente hostil à participação das mulheres no mercado de trabalho, inclusive nos meios jurídicos, que deveriam ser os primeiros a corrigir seu viés de preconceito. O que se observa é que existe uma ampla resistência a se pensar (e julgar) em perspectiva de gênero.

Analisando o entorno das discussões sobre a resolução que altera a promoção para os tribunais, verificou-se um amplo debate dentro e fora da magistratura sobre eventual inconstitucionalidade da norma. O que causa estranheza, pois as ações afirmativas, como políticas públicas temporárias adotadas para proteção de minorias, já vêm sendo aplicadas há mais de uma década no país, inclusive para acesso a cargos públicos. Até para a magistratura: a Resolução CNJ 203/2015 estabeleceu reserva de 20% das vagas oferecidas no âmbito do Poder Judiciário para pessoas pretas, a fim de prover cargos efetivos e ingresso na magistratura. Não me recordo, à época, de tamanha celeuma como a que causou a votação da alteração de critérios de promoção para aumentar a paridade de gênero nos tribunais.

Um exemplo da amplitude da discussão se deu no âmbito da magistratura federal: notícia divulgada na Folha de São Paulo de 11 de outubro de 2023[2] dá conta que um grupo de 22 juízes e juízas federais renunciou a postos numa comissão da AJUFE (Associação dos Juízes Federais) voltada às mulheres; a associação abrira uma consulta entre os magistrados sobre a nova resolução do CNJ, o que foi considerado violência de gênero real e simbólica, tendo em vista que 70% da classe é de homens.

Quanto ao julgamento em perspectiva de gênero, há regra que determina a obrigatória capacitação dos magistrados e magistradas. Mas grande parte dos cursos promovidos acabam sendo frequentados predominantemente por juízas, muito embora, como já dito acima, a maior parte da magistratura seja composta por homens. Será que os juízes não precisam dessa formação? Rememore-se que no dia 10 de outubro de 2023, quando se celebra o Dia Nacional de Luta Contra a Violência à Mulher, um desembargador manifestou-se de forma contrária ao pedido de adiamento de uma sessão de julgamento, feito com antecedência por advogada que estava com parto previsto para aquele dia e que pedira sustentação oral, ao argumento que “gravidez não é doença” e que “se adquire por gosto”[3]. Em meio ao debate levantado na sessão, e transmitido pelas redes sociais para todo o país, o magistrado ainda cerceou a fala da relatora, praticando o chamado manterrupting, que até mesmo a Ministra Cármen Lúcia já reiterou diversas vezes ter sofrido em plenário no STF[4]. A questão ganhou contornos nacionais e existe notícia que a Corregedoria Geral do CNJ abrirá procedimento administrativo para averiguar a conduta. Um detalhe: o pedido de adiamento não foi acolhido, muito embora o at. 313, IX, do CPC, estabeleça a hipótese de suspensão do processo por trinta dias em razão do parto, quando a responsável pelo processo constituir a única patrona da causa.

Todos os atos mencionados ocorreram no decorrer de um mês, apenas. São a ponta do iceberg de uma violência institucional que é praticada de forma reiterada contra mulheres em todas as instâncias da vida, mas que sempre restaram invisibilizadas e até mesmo normalizadas pelas próprias mulheres, que intimamente se questionam se não devem abrir mão de aspectos da vida privada, como a maternidade, para avançar na carreira, ou desistir de promover a própria carreira para que possam ser mães.

Então, dado esse contorno, sou obrigada a responder para meu querido amigo, que pessoalmente trata mulheres com igualdade e respeito, o que talvez o leve a pensar que essa é a situação geral: não, infelizmente o assunto não esgotou. O que esgotou foi a paciência das mulheres com esse mundo permeado de pessoas que ainda não dão a elas o respeito e reconhecimento devidos.

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[1] Nobel da economia vai para Claudia Goldin, por seus estudos sobre mulheres no mercado de trabalho. Portal G1, 09 de outubro de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/10/09/nobel-de-economia-2023-vai-para-claudia-goldin.ghtml Acesso em 16 out. 2023. Sobre os achados da pesquisadora, vide GOLDIN, Cláudia; KERR, Sari Pekkala; OLIVETTI, Claudia. When the kids grow up: women’s employment and earnings across the family cycle. Cambridge, August, 2022. Disponível em: https://www.nber.org/papers/w30323 Acesso em 11 out. 2023.

[2] Regra de Gênero no Judiciário gera racha em associação e renúncia coletiva de juízes. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/10/regra-de-genero-no-judiciario-gera-racha-em-associacao-e-renuncia-coletiva-de-juizes.shtml Acesso em 16 de outubro de 2023.

[3] Folha de São Paulo. Juiz vira alvo do CNJ ao negar pedido de advogada por adiamento: “gravidez não é doença”. Publicado em 11 de outubro de 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/10/juiz-vira-alvo-do-cnj-ao-negar-pedido-de-advogada-por-adiamento-gravidez-nao-e-doenca.shtml Acesso em 16 out. 2023.

[4] Jota, Redação. Não nos deixam falar, diz Cármen sobre ela e Rosa no STF. Publicado em 10 de maio de 2017. Disponível em: https://www.jota.info/jotinhas/carmen-lucia-eu-e-a-ministra-rosa-nao-nos-deixam-falar-10052017 Acesso em 16 out. 2023.