A transmissão intergeracional de patrimônio, do ponto de vista econômico, é uma das manifestações de riqueza mais óbvias a serem escolhidas para a tributação. Um relatório da OCDE de maio de 2021 destaca como argumentos favoráveis a este tipo de tributação o aumento da igualdade de oportunidades, fortalecimento da equidade horizontal e vertical, redução da desigualdade de riqueza, prevenção do aumento da riqueza dinástica, aumento da oferta de trabalho e poupança dos herdeiros, entre outros.
A tributação sobre heranças, no entanto, é refutada pela maioria da população em todo o mundo. Uma sondagem do YouGov (Reino Unido), por exemplo, concluiu que apenas 20% dos britânicos consideram esse um tipo justo de tributação. Considerando os altos limites de isenção no Reino Unido, podemos concluir que o imposto é mal visto até por pessoas que jamais receberiam patrimônio suficiente para qualificá-los como contribuintes. Trata-se de um imposto direto, muito mais visível que um imposto sobre consumo ou IR retido na fonte, por exemplo.
A aversão social a este tipo de tributação impede, ou pelo menos dificulta sobremaneira, que o ITCMD se apresente com um desenho normativo mais socialmente justo ou como uma alternativa à (parte da) tributação sobre o consumo que, por ser essencialmente regressiva, onera mais pesadamente os mais pobres.
A Emenda Constitucional 132 (reforma tributária) corrigiu três pontos possibilitando a melhoria do desenho normativo deste imposto:
Estabelecimento de elemento de conexão definidor da titularidade ativa do imposto incidente nas transmissões quando o doador tem domicílio no exterior ou quando o de cujus era residente, possuía bens ou teve o inventário processado no exterior (artigo 16 da ADCT);
Ampliação da imunidade para instituições sem fins lucrativos com finalidade de relevância pública e social (inc. VII do § 1° do artigo 155 da CF);
Obrigatoriedade de estabelecimento de progressividade em razão do quinhão, legado ou doação (Inc. VI do § 1° do artigo 155 da CF).
O primeiro ponto é uma questão de justiça fiscal. O texto original da Constituição reclamava uma lei complementar que não veio, mesmo já tendo passado mais de três décadas da sua promulgação. O resultado era uma porta aberta para planejamentos tributários para os mais ricos, que podiam se mudar, mesmo temporariamente, para outros países, e fazer doações aos filhos sem pagar o imposto, possibilidade inviável para aqueles com menores patrimônios.
O segundo corrige um erro crasso no desenho normativo ótimo do ITCMD. Se o objetivo do imposto é tributar a transmissão intergeracional de patrimônio e buscar efeitos extrafiscais, principalmente a distribuição de riqueza, não faz sentido tributar as doações a entidades do terceiro setor, que não são, em essência, transmissões intergeracionais, e cujas recebedoras já promovem, intrinsicamente, a distribuição de riqueza, na medida em que prestam serviços relevantes à sociedade, sobretudo à população de baixa renda, atendendo a demandas a que o Estado nem sempre consegue atender.
A tributação desse tipo de transmissão, em verdade, constitui-se um desserviço à sociedade uma vez que desincentiva as doações a estas entidades, dificultando sua subsistência, o que exige, por sua vez, que o Estado seja cada vez maior para resolver problemas que a sociedade civil poderia resolver sozinha por meio de suas organizações.
Os recados que alguns estados passam à sociedade por meio da tributação, inclusive, são contraditórios. O estado de São Paulo, por exemplo, enquanto tributa as transmissões às entidades do terceiro setor, exceto instituições de educação e de assistência social (imunidade) e entidades cujos objetivos sociais sejam vinculados à promoção dos direitos humanos, da cultura ou à preservação do meio ambiente (isenção) e doações abaixo de 2.500 UFESPs por ano, por outro lado, permite que elas recebam a destinação de parte dos valores do Programa Nota Fiscal Paulista.
Sobre o programa Nota Fiscal Paulista, inclusive, fazemos a crítica de que ele não cobra que seja feita uma prestação de contas pela entidade diretamente ao contribuinte responsável pelo pagamento do imposto constante da Nota Fiscal, tampouco incentiva o contribuinte a participar mais ativamente das entidades como colaborador permanente. Este programa, no entanto, deve ser descontinuado, com o fim do ICMS, já decretado pela EC 132.
O terceiro ponto, em que pese visar o atendimento ao princípio da capacidade contributiva conta com a justa preocupação dos contribuintes, nos estados onde a progressividade ainda não foi implementada, de que sua implantação venha acompanhada de aumento da carga tributária para alimentar o erário público, sempre faminto.
São Paulo, e alguns outros estados, precisarão promover a alteração de suas leis e, diante desse cenário, viemos aqui fazer uma proposta: o ITCMD Social.
Proposta:
Não incidência: fazer constar na lei estadual a não incidência para transmissões realizadas a instituições sem fins lucrativos com finalidade de relevância pública e social, eliminando de vez a tributação incidente sobre tais transmissões.
Destinação de parte do imposto: tomando como paradigma as doações feitas aos Fundos Municipais da Criança e do Adolescente, que podem ser abatidas do valor do imposto de renda a pagar, permitir que o donatário, herdeiro ou legatário doe parte do valor recebido a entidades previamente cadastradas junto ao estado, e que atendam às exigências impostas na legislação, abatendo até o limite de 10% do valor de ITCMD a pagar.
Operacionalização:
Para as entidades: as entidades fariam cadastro junto a Secretaria da Fazenda, demonstrando cumprir os requisitos necessários e se comprometendo com o atendimento das exigências da legislação, sobretudo com relação ao atendimento à fiscalização e à prestação de contas dos valores destinados;
Para os contribuintes: a Secretaria da Fazenda faria constar na declaração de ITCMD, a opção para o contribuinte destinar parte da herança ou doação recebida (em valor), dedutível do ITCMD a pagar, escolhendo a entidade em uma lista dividida, por exemplo, por município ou tipo de serviço prestado;
Para o estado: ao final do mês, faria a apuração dos valores a serem destinados a cada uma das entidades, uma vez verificado o recolhimento pelo contribuinte, e faria a entrega dos valores diretamente na conta corrente da entidade;
Exigências e ações complementares:
Além da habitual exigência de manutenção de escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão (artigo 14 do CTN) poderia (a nosso ver, deveria) ser exigido das entidades e do estado, ações do tipo:
Garantia de escolha ao contribuinte: criação, pelo estado, de site com apresentação dos trabalhos de cada uma das entidades habilitadas (as entidades seriam responsáveis por alimentar o website), permitindo que o contribuinte conheça previamente o trabalho executado por cada uma das entidades interessadas em receber sua doação;
Feedback: envio de correspondência ao doador com agradecimento em nome da entidade, demonstrando como foi gasto o dinheiro destinado pelos contribuintes;
Convite à participação permanente: junto com a correspondência de feedback, a entidade enviaria convite para que o contribuinte se torne um parceiro permanente, disponibilizando, inclusive, uma forma fácil para operacionalizar essa participação permanente (como, por exemplo, um QR Code remetendo para um lançamento periódico em cartão de crédito);
Prestação de contas do estado à sociedade: divulgação de listas de entidades beneficiadas com os valores recebidos e criação de vídeos institucionais para divulgação do trabalho das entidades, possibilitado pela destinação do imposto (incentivo fiscal), com ampla divulgação pelos meios de comunicação do governo;
Educação fiscal: envolvimento da equipe de educação fiscal estadual na realização de ações de divulgação.
Fonte de custeio:
criação de alíquota de 8% (ou ampliação, nos estados onde já existe tal alíquota) a incidir sobre uma faixa dos maiores valores de quinhões, legados e doações anuais que seja o estritamente necessário para arrecadar os 10% que seriam destinados às entidades por meio do ITCMD Social;
criação, para os contribuintes em geral, de um limite máximo (vitalício) de doações anuais isentas ou sujeitas à menor faixa de alíquotas, impedindo que um patrimônio grande possa ser dividido em diversas doações anuais menores, sujeitas à isenção ou alíquota menor.
Administração Tributária e Fiscalização:
a entidade se habilitaria junto à Secretaria da Fazenda estadual e seria inserida em relação pública de entidades beneficiadas;
os sistemas declaratórios de ITCMD dos estados seriam alimentados com esta relação de entidades beneficiadas de forma que quando uma herança, legado ou doação tiver uma das entidades cadastradas como beneficiária, o sistema emitiria automaticamente uma certidão atestando a condição de não incidência do imposto;
todas as transmissões feitas às entidades devem ser declaradas permitindo que o estado acompanhe os recebimentos de transmissões não tributadas. O cumprimento desta e de outras obrigações acessórias, inclusive, deve ser condição para a fruição da não incidência;
a administração tributária efetuaria a fiscalização das entidades e quando constatada qualquer irregularidade que prejudique a condição de entidade não tributada ou apta a receber a destinação de parte do imposto, a entidade seria imediatamente suspensa da relação de entidades beneficiadas e o valor do imposto destinado ou que seria incidente na transmissão seria lançado contra a entidade e/ou os responsáveis.
A implantação do ITCMD Social, tal como proposto, garantiria a um só tempo:
o atendimento aos ditames constitucionais, introduzidos pela EC 132 (reforma tributária);
a implantação da progressividade sem aumento do estado, uma vez que todo o valor arrecadado com a alíquota adicional de 8% seria integralmente revertido para entidades do terceiro setor;
o financiamento das entidades que perderão os valores hoje destinados pelo Programa Nota Fiscal Paulista (para o estado de São Paulo);
a eliminação de desincentivo que existe hoje às transmissões às entidades, em virtude da tributação;
a criação de incentivo à participação popular no financiamento de entidades da sociedade civil organizada que prestem serviços relevantes aos cidadãos;
a redução da rejeição social à tributação sobre heranças, que é o imposto economicamente mais justo de titularidade ativa dos estados.