A República da África do Sul ingressou, em dezembro de 2023, com um pedido na Corte Internacional de Justiça (CIJ) visando a punição do Estado de Israel pela prática do crime de genocídio na Faixa de Gaza.
Formulou, ainda, pedidos antecipatórios contra o Estado de Israel consistentes, em síntese, na suspensão imediata das operações militares na Faixa de Gaza e na proibição de qualquer ato com a intenção de “destruir vida palestina” em Gaza[1].
No dia 26/01/2024 foi apreciada a admissibilidade do pedido perante a CIJ (ou seja, se o caso em concreto reúne os requisitos e pressupostos para ser julgado como crime de genocídio e, portanto, se CIJ é competente para a apreciação do pedido) e julgada a viabilidade das medidas antecipatórias, instrumentais e acautelatórias contra Israel.
A análise da decisão colegiada que apreciou as medidas antecipatórias se baseou nas seguintes “razões de decidir”[2]: (1) Admite que a operação militar de Israel na Faixa de Gaza foi uma reação ao ataque terrorista do dia 07/10/2023, que matou 1.200 pessoas e mantem em cativeiro (não se sabe se vivos ou mortos) 240 pessoas; (2) A operação militar provocou mortes de civis, destruição de infraestrutura e edifícios e deslocamento de população na Faixa de Gaza; (3) Os dados colhidos sobre o número de mortes foram fornecidos pelo escritório da ONU para assuntos humanitários e pela Agência de Refugiados Palestinos no Oriente Médio (UNRWA)[3]; (4) A intenção genocida da operação militar israelense se revela no discurso[4] de algumas autoridades do governo israelenses; (5) O Comissário Geral da UNRWA, Philipe Lazzarini, reconheceu que os ataques que o Hamas e outros grupos geraram um estado de extrema ansiedade e insegurança à sociedade israelense.
Com base nas premissas acima enumeradas, com ênfase em discursos de autoridades israelenses e estatísticas sobre as mortes de civis fornecidas pela UNRWA e destruição de infraestrutura, a Corte Internacional de Justiça, em julgamento não unânime (15 votos a favor e duas divergências[5]), admitiu o pedido da República da África do Sul e interpretou que os efeitos da operação militar israelense na Faixa de Gaza se enquadram em crime de genocídio.
Quanto às medidas antecipatórias ou cautelares, a CIJ não as concedeu, fazendo recomendações, como prevenir a morte, danos físicos e mentais aos “membros do grupo de palestinos em Gaza”[6].
Aharon Barak, apesar de acompanhar a maioria no tocante à recomendação acerca da manutenção de esforços (i) contra o incitamento verbal ao cometimento de genocídio contra os palestinos e (ii) concessão de assistência humanitária, diverge sobre a essência da demanda sul-africana, com voto esclarecedor quanto ao não enquadramento da conduta de Israel em crime de genocídio.
Barak enuncia, sob a perspectiva da ação militar israelense na faixa de Gaza, que o crime de genocídio apenas se caracteriza com a presença da intenção específico, inexistente no caso, pois a operação militar visa a extirpação do grupo terrorista Hamas e não do povo palestino ou da população de Gaza. Portanto, como explica Barak, o regramento legal a ser aplicado na hipótese se restringe às consequências do conflito em Gaza e, portanto, são as leis humanitárias (IHL) e o Direito Internacional de Guerra o arcabouço normativo aplicável, mas não a Convenção sobre Crimes Genocídio.
A distinção é fundamental, não apenas pelas sanções aplicáveis, mas, essencialmente, pela intenção que imanta a conduta do Estado em conflito. O que se acompanha na Faixa de Gaza são as consequências da ação militar de Israel provocada pelo fatídico e brutal ataque no dia 07.10.2023 contra Israel, perpetrado pelo Hamas.
Chama a atenção no voto de Barak a ponderação que o grupo terrorista Hamas[7] não está submetido a qualquer sanção internacional pelos atos bárbaros e macabros que praticou contra a população civil israelense em 7 de outubro de 2024 nem, tampouco, pela manutenção de reféns por meses, em situação de desumanização integral, enquanto apenas contra Israel se aplicam as regras da Convenção de Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio.
Dito de outro modo, a parte que deseja a extirpação de Israel e foi reconhecida pela própria CIJ como causadora da reação militar israelense, não se submete a nenhum regramento internacional sancionatório pelos atos bárbaros praticados. Apenas contra Israel há processo por crime de genocídio.
Fácil compreender que a impossibilidade de repressão do Hamas às regras que se pretende imputar a Israel, por si só, é a evidência clara da ausência de proporcionalidade e razoabilidade do julgamento em curso, o que impediria, em nosso sentir, a admissibilidade do julgamento por falta de pressuposto essencial (razoabilidade e proporcionalidade).
Mas, não é só.
Na esteira da falta de proporcionalidade, ressalto (inconformada) que a decisão da Corte Internacional de Justiça não enfatiza, inclui, sugere ou reprime os atos cometidos pelo grupo terrorista Hamas contra o Estado de Israel no dia 07/10/2023. Silencia, também, em relação ao condenável aparelhamento da autoridade pública palestina e órgãos internacionais (como UNRWA), comprovadamente envolvidos na deliberada campanha genocida do grupo terrorista Hamas e simpatizantes.
Dito de outro modo, a Corte Internacional de Justiça balizou a proteção internacional aos palestinos[8] e omitiu-se na observância de tais princípios aos israelenses. A decisão da Corte Internacional de Justiça não mensurou nem aplicou critérios proporcionais, deslocou o respeito aos direitos fundamentais apenas aos palestinos de Gaza, silenciando em relação à população de Israel. Não é difícil concluir que a decisão não é justa.
[1] As medidas antecipatórias, também denominadas “liminares” ou “cautelares” são decisões instrumentais, que visam garantir direitos durante a tramitação do processo, não se caracterizando como decisão definitiva, o que denomina “mérito”. No caso, o mérito é ao reconhecimento que Israel pratica crime de genocídio contra os palestinos na Faixa de Gaza.
[2] “Razões de decidir” (tradução da expressão latina “ratio decidindi”) significa quais foram os “motivos determinantes” que fundamentaram a conclusão dos julgadores.
[3] A mesma Agência que está sendo investigada em virtude do envolvimento direto de no ataque terrorista de 7 de outubro de 2023 e serem colaboradores do grupo terrorista Hamas (sobre o tema https://www.poder360.com.br/internacional/ue-pede-auditoria-em-agencia-da-onu-que-atua-em-gaza/).
[4] “Dehumanizing language”
[5] Divergências do Juiz Aharon Barak (juiz israelense que já foi Presidente da Suprema Corte de Israel, internacionalmente reconhecido por sua atuação judicial proativa e por suas obras sobre a intersecção entre o Poder Judiciário e Democracia e regras de interpretação normativa) e Julia Sebutine (juíza de Uganda).
[6] Lê-se do item 85 da Deliberação da Corte Internacional de Justiça sobre as medidas cautelares requeridas pela África do Sul contra Israel: “The State of Isarel shall (…) in relation to Palestinians in Gaza, to prevent (…): (a) killing members of the group; (b) causing serious bodily or mental harm to members of the group; (c) deliberately inflicting on the group conditions of life calculated to bring about its physical destruction in whole or in part; (d) imposing measures intended to prevent births within the group.”
[7] Incluo seus simpatizantes e colaboradores.
[8] A redação do tópico decisório – item 85, reproduzido na nota 3, refere-se a “in relation to Palestinians in Gaza”, redação que pode levar à monstruosa e teratológica interpretação que as recomendações deferidas pela Corte Internacional albergam, também, os membros do grupo terrorista Hamas. Temerariamente, a CIJ não individualizou a expressão “civis” palestinos.