IOF-crédito em contratos de mútuo sem a participação de instituições financeiras

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Com base no voto do ministro Dias Toffoli na ADI 1.763/DF, o Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou em 2020 a constitucionalidade da incidência do IOF sobre operações de alienação de direitos creditórios à empresas de factoring. À época, destacou-se a atipicidade desta modalidade contratual pois, embora distintas das instituições financeiras, envolvem a cessão de créditos mediante alienação de faturamento com o objetivo de antecipar capital futuro que será empregado na atividade empresarial.

Anos mais tarde, a falta de respostas da Corte e da jurisprudência ordinária sobre aspectos gerais que regem a cobrança do IOF,  especificamente na interpretação que se deu ao artigo 153, inciso V, da Constituição, cujo teor pressupõe a tributação apenas de operações que tenham a participação de instituições financeiras, tornou premente a necessidade de também se avaliar a constitucionalidade do artigo 13 da Lei nº 9.779/1999, que prevê a incidência do IOF nas operações de mútuo praticadas entre pessoas jurídicas ou físicas independentemente da participação de uma instituição financeira.

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A esperança na busca de uma solução para o tema veio anos mais tarde, com a afetação do RE n. 590.186/RS, tema 104, à repercussão geral pelo STF em 29 de setembro de 2009. Em nossa visão, é inegável a correlação jurídica direta com a discussão travada na ADI 1.763/DF, que nasce de uma nova dificuldade no enquadramento do contrato – desta vez, do mútuo –, como operação de crédito, culminando no indevido alargamento da base de cálculo do IOF pela Lei nº 9.779/1999, pois tanto o CTN quanto a própria Constituição Federal restringem o campo de incidência do imposto às “operações de crédito, câmbio e seguro e sobre operações relativas a títulos e valores mobiliários”.

Sob esse enfoque, o STF concluiu em 6 de outubro, no julgamento do tema 104, por unanimidade e com base no voto do relator, ministro Cristiano Zanin, que é constitucional a incidência do IOF sobre operações de crédito correspondentes a mútuo de recursos financeiros entre pessoas jurídicas privadas, não se restringindo à participação de instituições financeiras. Como era esperado, o ministro utilizou em seu voto-base os mesmos fundamentos adotados no julgamento da ADI 1.763, consignando expressamente que a incidência do IOF sobre operações de crédito não poderia se limitar àquelas com participação de instituições financeiras, uma vez que “o mútuo é negócio jurídico realizado com a finalidade de se obter junto à terceiro recursos que deverão ser restituídos após determinado lapso temporal”.

Sob o nosso ponto de vista, para muito além do enquadramento do contrato de mútuo no conceito constitucional de “operações de crédito”, ressalvamos o fato de que o IOF é imposto de natureza extrafiscal e regulatória, originalmente instituído como mecanismo de regulação da política monetária e cambial e, portanto, não poderia incidir sobre operações que estão fora da regulamentação direta da União. É com base nessa função que lhe é conferida pela Constituição que, inclusive, admite-se a mitigação dos princípios da legalidade e anterioridade pelo Poder Executivo, por meio de intervenções no mercado com o intuito de, justamente, regular a política monetária.

O próprio conceito do IOF delimita seu campo de atuação às operações praticadas por instituições submetidas à regulação do Sistema Financeiro Nacional, de forma que a incidência sobre operações que, apesar de envolverem a cessão de crédito, estejam fora do campo regulatório fazendário, somente poderia ocorrer por meio de Lei Complementar, nos termos do artigo 154, inciso I, da Constituição.

Por essa mesma razão é que, sob o enfoque legislativo temporal, a inconstitucionalidade da Lei nº 9.779/99 se mostra ainda mais evidente. Isso porque o CTN, por meio do seu artigo 66, delegou à lei ordinária a competência para dispor sobre o sujeito passivo do imposto, sendo tal competência exercida por meio da Lei nº 5.143/66, que na redação originária dos seus artigos 4º e 5º indicou somente as instituições financeiras como contribuintes do imposto. Com o advento do Decreto-lei nº 914/69, foram alteradas as redações dos artigos e passou-se a prever como contribuinte necessário do IOF, o tomador do crédito, ao passo que a instituição financeira ocuparia posição de responsável tributária. Porém de toda forma sua participação seria obrigatória para a perfeita consecução da hipótese de incidência do imposto.

Sobrevindo a Lei nº 9.779/99, que autoriza a cobrança do IOF-crédito sobre as operações de mútuo realizadas sem a participação de tais instituições financeiras, torna-se incontestável a inconstitucionalidade. Ora, se o legislador determinou como obrigatória a participação das instituições financeiras nas operações que envolvam o IOF, deve-se conservar essa decisão normativa, mantendo-se incólume a hipótese de incidência tributária tal como traçada previamente. Entendimento contrário acaba por trazer à tona questões estruturais complexas do nosso ordenamento jurídico, ocasionando verdadeiro descontrole fiscal.

Cabe destacar, ainda, a tese subsidiária levantada pela Associação Brasileira de Advocacia Tributária (ABAT) e a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), ambas na qualidade de amicus curiae, no que tange à impossibilidade de incidência do IOF sobre contratos de conta corrente, firmados entre empresas de um mesmo grupo econômico, mediante a reunião de seus caixas individuais em caixa único para facilitar o pagamento de gastos e realização de investimentos.

De um modo geral, o tema atrai a necessidade de análise pela Corte em razão da diferença entre as modalidades contratuais. Isso porque nas operações de conta corrente, diferente do que acontece nos contratos de mútuo, não existem relações de natureza creditícia, nem a existência de correntistas, ou seja, credores e devedores. Porém, muitas vezes o Fisco interpreta essas operações como uma forma de mútuo entre a empresa captadora e as demais empresas do grupo, exigindo o IOF sobre os valores transferidos.

Ao adentrar o tema, considerando-o relevante para o debate, o relator entendeu não ser possível enfrentá-lo nos autos do paradigma, pois o objeto do recurso afetado se restringe aos contratos de mútuo e, portanto, a questão não estaria devidamente prequestionada, bem como que o enquadramento conceitual do contrato de conta corrente é matéria de competência das instâncias inferiores, que farão a devida análise à luz da legislação infraconstitucional e do arcabouço probatório apresentado pelas partes envolvidas.

Sendo o tema de extrema relevância para a economia empresarial e às relações de crédito de um modo geral, a jurisprudência peca em não aproveitar o momento para sanear a problemática. O desejável, quando se afeta determinado tema à repercussão geral pelo Supremo, seria que o plenário extrapolasse os argumentos levantados pelas partes envolvidas dentro da limitação da ratio decidendi, de forma a abordar todos os vieses que traz consigo a questão constitucional controvertida, diminuindo o impacto da ausência de respostas à todas as perguntas no contencioso tributário.

Por fim, muito embora o Plenário nada tenha tratado sobre a eventual modulação dos efeitos da decisão, não se pode descartar a possibilidade de que o contribuinte venha a pleiteá-la em sede de Embargos de Declaração. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal tem se posicionado a favor da modulação temporal das decisões firmadas com efeito erga omnes com o intuito de minimizar o impacto financeiro aos cofres públicos, decorrentes das ações ajuizadas pelos contribuintes para recuperar os valores indevidamente recolhidos nos anos anteriores, ao mesmo tempo em que se resguarda o direito daqueles que se socorreram ao Judiciário por meio do ajuizamento de ações até o início do julgamento de mérito.