O recente pronunciamento do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), acerca da possível implementação da internação compulsória de usuários de drogas na cidade desencadeou debates acalorados nas redes sociais e na mídia, suscitando reflexões sobre as implicações dessa medida. A discussão ganha contornos ainda mais profundos ao ser analisada à luz das transformações na política de saúde mental, das questões jurídicas e constitucionais envolvidas, bem como dos desafios enfrentados pelo sistema de tratamento de dependentes químicos.
No contexto da obra clássica de Robert Castel A Ordem Psiquiátrica: A Idade de Ouro do Alienismo[1], o autor destaca que desde antes da Revolução Francesa os Poderes Judiciário e Executivo compartilhavam as responsabilidades da sequestração dos chamados “insanos”, sendo a internação o procedimento judiciário mais elaborado, similar ao adotado pelo código napoleônico. Mais de dois séculos depois e a uma vasta distância atlântica, parece que as coisas não mudaram muito.
No cenário brasileiro, respaldado nos dispositivos do art. 6º da Lei 10.216/01[2], o legislador ordinário, ao tratar da proteção e dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, referenciou três modelos de internação psiquiátrica: (i) a internação voluntária, com o consentimento do usuário; (ii) a internação involuntária, sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e (iii) a internação compulsória, determinada pela justiça.
Para discutir a internação compulsória, é essencial compreender o papel do Judiciário, do Executivo e do Legislativo nas internações psiquiátricas. O Art. 9º da Lei 10.216/01[3] estabelece a necessidade de uma decisão judicial para efetivar esse tipo de tratamento, garantindo o devido processo legal, contraditório e ampla defesa, mesmo com representação por curadores especiais.
A avaliação da capacidade civil emerge como ponto crucial na análise da internação compulsória, classificando os indivíduos como absolutamente ou relativamente incapazes, dependendo do estágio de sua dependência química. Essa classificação é relevante, pois afeta a liberdade de locomoção, a autonomia privada e a autodeterminação do paciente, evitando decisões precipitadas.
Enquanto o sistema enfrenta desafios notáveis no tratamento de dependentes químicos, como a escassez de leitos e instituições especializadas, a falta de ambientes adequados resulta em retrocesso na recuperação desses indivíduos. A distorção entre oferta e demanda provoca uma busca frenética pelo acesso ao judiciário como meio de viabilizar o tratamento, gerando um cenário de ativismo judicial.
Há de se reconhecer que algumas decisões judiciais podem apresentar equívocos e interpretações desalinhadas com a realidade social. No entanto, é inegável o papel dos juristas na promoção de direitos fundamentais, especialmente os relacionados à saúde. O ativismo judicial, ao exigir a implementação de condições materiais para a efetivação desses direitos, pode ser visto como uma resposta necessária diante das limitações enfrentadas pelo sistema de saúde.
Ao discutir a possível colisão de direitos na internação compulsória, é essencial considerar a vida como vetor primordial na ponderação de interesses. A legitimidade dessa medida reside na preservação do direito à vida, mesmo que outros direitos sofram restrição ou limitação. A vida humana, como pressuposto dos demais direitos, deve ser vista sob a dualidade do direito de estar vivo e do direito de ter uma vida digna.
No que se refere à competência para legislar sobre a matéria, os recentes pronunciamentos do prefeito Eduardo Paes remetem ao caso de Rio Claro (SP), que por meio da Lei Municipal 5.534, de 21 de setembro de 2021, instituiu o Programa de Internação Involuntária de Dependentes Químicos. Na ação declaratória de inconstitucionalidade proposta pelo procurador-geral da Justiça do Estado de São Paulo[4], o TJSP entendeu que a lei teria sido editada mediante invasão de competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, por regular matéria atinente à proteção da saúde.
Assim, nos termos do artigo 30º da Constituição Federal[5], o município só poderia legislar sobre o assunto se demonstrasse interesse local, ou seja, peculiaridades circunscritas ao território municipal que demandassem regras particulares. Além disso, a Lei Federal 13.840/19, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, não poderia ser contrariada por nenhuma lei municipal.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF), em conflitos envolvendo o Poder Executivo e o Judiciário, já firmou entendimento, mediante interpretação do artigo 196º[6] da Constituição Federal, de que é possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas[7]. Não haveria violação ao princípio da separação dos poderes, uma vez que, no confronto constitucional, deve prevalecer o direito à saúde, vinculado à dignidade da pessoa humana, em detrimento dos princípios administrativos de ordem financeira[8].
Em conclusão, a internação compulsória, embora deva ser a última alternativa, é uma possibilidade legítima de recuperação para usuários de drogas, desde que seja aplicada de forma a preservar a vida dessas pessoas. A compatibilidade com a Constituição Federal está condicionada à sua utilização como meio de recuperação, não como instrumento de higienização social.
O desafio está intrinsecamente vinculado à busca de um equilíbrio sensato entre a eficácia dos tratamentos propostos, o respeito às garantias individuais e a promoção da dignidade humana. Em meio a essa tríade de objetivos, a imposição de políticas públicas compulsórias de saúde mental para usuários de drogas emerge como um campo de contínua reflexão.
Evitar a transformação de hospitais psiquiátricos em “Cemitérios dos Vivos”, como alertava Lima Barreto em suas obras[9], requer da sociedade não apenas questionamentos sobre a conveniência dessas medidas, mas também sobre sua adequação diante da complexidade das raízes sociais que permeiam tais questões.
[1] Castel, Robert, and Maria Thereza da Costa “A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo.” A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. 1978. 329-329.
[2] “Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I – internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II – internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e
III – internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.”.
[3] “Art. 9º A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários.”.
[4] TJSP, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2125090-18.2022.8.26.0000, Relator Desembargador Moacir Peres, Órgão Especial, julgado em 01/03/2023.
[5] “Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; (…)”.
[6] “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
[7] STF, ARE nº 1015529/SE, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 19/12/2016.
[8] Parecer da Subprocuradora-Geral da República Cláudia Sampaio Marques no âmbito do Recurso Extraordinário nº 1.355.103/TO.
[9] O escritor Lima Barreto, do início do século XX, vivenciou de maneira intensa os bastidores de hospitais psiquiátricos, experiência que influenciou profundamente suas obras, destacando- se “Cemitério dos Vivos” e “Diário de um Hospício”. Enquanto a primeira retrata as mazelas sociais e as condições desumanas encontradas nos hospitais psiquiátricos da época, a segunda consiste em um relato autobiográfico no qual o autor registra suas próprias experiências durante um período de internação em um hospício.