No último dia 15 de agosto, o ministro Alexandre de Moraes determinou o afastamento imediato do procurador-geral do Estado do Maranhão, vedando sua nomeação para qualquer cargo ou função pública no âmbito dos três Poderes estaduais.[1] A decisão decorreu do descumprimento reiterado de ordens anteriores emanadas do Supremo Tribunal Federal, em contexto de nepotismo cruzado e afronta direta à autoridade da corte.
Mais do que a anulação de um ato administrativo, a medida assumiu caráter sancionatório, ao impor ao chefe do Executivo estadual a obrigação de exonerar seu procurador-geral imediatamente, enfatizando que “a repetição de nomeações com flagrante desvio de finalidade caracterizará crime de responsabilidade e improbidade administrativa”.
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Esse recente episódio destaca um tema relevante da jurisdição constitucional, qual seja, a efetividade das decisões das cortes constitucionais e a discussão acerca da necessidade de haver instrumentos concretos para assegurar sua execução perante autoridades resistentes.
No direito comparado, a análise da temática permite identificar ao menos quatro grandes modelos de mecanismos de execução de decisões de tribunais constitucionais: a) países em que as cortes são dotadas da competência para determinar os meios coercitivos que pretendem utilizar; b) países que possuem meios coercitivos especificados e delimitados em legislação própria; c) países que possuem meios próprios, mas também indiretos, podendo delegar sua execução ou seu monitoramento a outro órgão, como o Ministério Público; e, por fim, d) países que não possuem mecanismo coercitivo específico.
Tradicional exemplo de modelo que possui ampla discricionariedade para definir a forma como executará seus julgados é o alemão. O §35 da Lei do Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassunsgerichtsgesetz) indica que o próprio tribunal “pode estabelecer em suas decisões quem deve executá-las; também pode, no caso específico, definir o modo como será a execução”. Trata-se de competência que o transforma em “o Senhor da execução” (“Herr der Vollstreckung”), já que, com essa prerrogativa, não depende da atuação de outros órgãos para concretizar seus atos decisórios.[2]
Sobre o tema, o ministro Gilmar Mendes, em artigo para este Observatório Constitucional, realça como as sentenças do Tribunal Constitucional Federal são não apenas respeitadas em abstrato, mas efetivamente implementadas, graças à combinação de força normativa das decisões com a estrutura institucional da corte alemã.[3] Ele aponta que, uma vez proferida uma sentença, ela é imediatamente executável – sem necessidade de aguardar regulamentação adicional –, e isso ocorre justamente porque o tribunal, dotado de supremacia constitucional, é nomeado como autoridade executora de sua própria decisão.
Nesse sentido, a prática confirma que o § 35 não representa apenas um mandato formal, mas expressa uma cultura institucional em que a corte assume o comando direto da execução, consolidando-se como o real autor da efetividade das sentenças no país.
Já na Espanha, o art. 92 da Ley Orgánica do Tribunal Constitucional espanhol dispõe sobre as medidas que podem ser adotadas caso a corte entenda que uma decisão sua foi total ou parcialmente desconsiderada após prestadas as informações requeridas ou vencido o prazo para apresentá-las.
No ponto, é previsto que poderá: a) impor multa no valor de € 3 a € 33 mil a autoridades, a servidores públicos e a particulares, com a possibilidade de novas imposições até o efetivo cumprimento do mandado; b) deliberar sobre o afastamento de autoridades ou servidores públicos da Administração responsáveis pelo descumprimento, durante o tempo necessário a assegurar a observância dos pronunciamentos do tribunal; c) solicitar a colaboração do Gobierno de la Nación para que, nos termos fixados pela corte, adote as medidas necessárias à execução dos seus julgados; e d) colher o testemunho de particulares para aferir a responsabilidade penal de possíveis culpados.
A experiência espanhola mostra como o artigo 92 da Ley Orgánica do Tribunal Constitucional foi pensado como um verdadeiro instrumento de salvaguarda institucional diante de momentos de tensão política. Como ressaltado em coluna também escrita neste Observatório[4], a consolidação do dispositivo ganhou especial relevância em contexto de crise com a Catalunha, quando o Tribunal Constitucional precisou enfrentar a resistência de autoridades regionais que desobedeciam frontalmente às suas determinações.
Nessas ocasiões, a corte aplicou multas pessoais, intimou diretamente autoridades catalãs e chegou a solicitar a atuação do governo central para assegurar a execução de suas decisões. O uso prático dessas prerrogativas ilustra que o modelo espanhol não se limita a prever sanções em abstrato: ele confere ao tribunal uma capacidade operacional imediata, permitindo-lhe agir de modo rápido e coercitivo, sem depender exclusivamente da deferência política dos demais Poderes. Esse desenho normativo reforça o papel do Tribunal Constitucional como um ator central na defesa da unidade constitucional e territorial da Espanha, dotado de meios para transformar sua autoridade em eficácia concreta.
Em Portugal, a Lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de novembro), ao disciplinar a execução das decisões do Tribunal Constitucional, estabelece não apenas que as decisões têm força obrigatória geral (art. 119), mas que, em caso de não cumprimento, a corte pode determinar as medidas necessárias para assegurar a execução, incluindo a comunicação ao Ministério Público para que este promova a responsabilidade penal ou disciplinar da autoridade recalcitrante (art. 120). Ou seja, a lei também cria uma via de responsabilização indireta, confiada a outro órgão do Estado.
Por fim, há países que se enquadram em um modelo marcado pela ausência de mecanismos específicos de execução e pela dependência quase exclusiva da legitimidade institucional e da tradição de respeito às decisões judiciais. Nesses sistemas, a efetividade das sentenças constitucionais não decorre de instrumentos legais de coerção, mas sim da autoridade simbólica e política da corte.
A Polônia oferece um exemplo bastante problemático dessa situação. Embora a Constituição de 1997 (art. 190) determine a força obrigatória e definitiva das decisões do Trybunał Konstytucyjny, a execução depende da publicação no Diário Oficial pelo Executivo. Em momentos de crise política, como recentemente ocorreu, o governo recusou-se a publicar determinadas sentenças, esvaziando sua eficácia prática e expondo a vulnerabilidade de um sistema que se apoia exclusivamente no cumprimento espontâneo.[5]
Esse modelo, portanto, revela os riscos de uma jurisdição constitucional destituída de instrumentos próprios ou de canais de responsabilização institucional: quando o respeito político-institucional falha, a corte vê-se desarmada diante da resistência. Trata-se, portanto, de um modelo “frágil”: o poder de decidir não vem acompanhado de meios efetivos de assegurar o cumprimento, ficando as cortes sujeitas às contingências da vontade política e ao grau de consolidação democrática do país.
Um ponto central na análise comparada é que, embora o Brasil não disponha de um regime legal específico de execução das decisões do Supremo Tribunal Federal, a corte brasileira tem desenvolvido mecanismos de coerção por via jurisprudencial. Em situações de descumprimento reiterado, o STF não apenas reafirma a obrigatoriedade de suas ordens, como também recorre a medidas de natureza sancionatória.
Nesse sentido, a corte utiliza-se de instrumentos de cumprimento de decisões previstos no Código de Processo Civil, como multa diária[6] e responsabilidade por descumprimento de ordem judicial.[7] O Supremo Tribunal Federal se socorre, ainda, da Lei 1.079/1950, que dispõe ser crime de responsabilidade o não cumprimento de decisão judicial por parte de autoridades, além da própria Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade, atualizada pela Lei 14.230/2021) – como no caso da determinação do afastamento do procurador maranhense.
A análise comparada evidencia que os sistemas constitucionais modernos oscilam entre modelos robustos de execução decisória, nos quais as cortes dispõem de instrumentos coercitivos próprios, e modelos frágeis, baseados apenas na autoridade simbólica e política de seus julgados.
O Brasil se situa em uma posição híbrida. Apesar de não dispor de lei orgânica que discipline mecanismos específicos de execução das decisões do STF, como ocorre em outras jurisdições, o tribunal tem recorrido a um mosaico normativo composto pelo Código de Processo Civil, pela Lei de Improbidade e pela Lei dos Crimes de Responsabilidade, além de desenvolver, por via jurisprudencial, instrumentos próprios para assegurar a autoridade de suas ordens. O afastamento de autoridades, a imposição de multas pessoais, o bloqueio de valores e a comunicação ao Ministério Público são exemplos de medidas utilizadas para preservar a supremacia das decisões constitucionais.
A experiência brasileira evidencia a centralidade do Supremo Tribunal Federal na tarefa de assegurar a autoridade da Constituição, mesmo diante da ausência de um regime normativo específico de execução de suas decisões. Ao lançar mão de instrumentos gerais do ordenamento e desenvolver soluções jurisprudenciais, a corte tem conseguido afirmar sua autoridade e preservar a efetividade do controle de constitucionalidade. Ainda assim, a previsão legislativa de mecanismos mais claros e sistematizados poderia fortalecer essa atuação.
[1] Reclamação nº 69.486.
[2] Sobre o tema, conferir capítulo “Execução das decisões do Tribunal Constitucional Federal” em MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. Saraiva, 2014.
[3] Cf. MENDES, Gilmar. Execução e efetividade das sentenças: perspectivas a partir da experiência alemã. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-out-01/observatorio-constitucional-execucao-efetividade-sentencas-experiencia-alema/
[4] Cf. HORBACH, Beatriz Bastide. Tribunal Constitucional protagoniza papel por uma Espanha unida. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-dez-05/observatorio-constitucional-tribunal-constitucional-protagoniza-papel-espanha-unida/
[5] Sobre o tema, conferir Memo: Commission Recommendation regarding the Rule of Law in Poland: Questions & Answers, disponível em:
https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/memo_16_2644.
[6] Art. 537, CPC.
[7] Art. 77, IV e §2º, CPC.