Inovação e soberania no SUS: aliança necessária para a hemofilia

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O tratamento da hemofilia no Brasil traz à tona um desafio recorrente do SUS: como garantir acesso universal e equitativo a terapias inovadoras, mantendo a sustentabilidade orçamentária e fortalecendo a soberania produtiva do país.

O tema envolve a experiência de centenas de famílias, representadas pela Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia (ABRAPHEM), o papel estratégico da Hemobrás e as diretrizes do Ministério da Saúde. Juntas, essas vozes revelam como inovação e produção nacional não são caminhos antagônicos, mas complementares.

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A experiência das famílias: adesão e obstáculos

A ABRAPHEM realizou o estudo Mapeamento da Jornada do Paciente Menor de 6 Anos com Hemofilia A Grave no Brasil, que reuniu dados de pacientes e cuidadores em todas as regiões do país. O levantamento mostra que, apesar da disponibilidade gratuita dos medicamentos pelo SUS, as barreiras à adesão ao tratamento ainda são significativas.

A presidente da associação, Mariana Battazza, enfatiza: “A disponibilidade de medicação não significa necessariamente acesso e garantia de desfecho clínico desejado, porque o resultado depende fortemente da adesão ao tratamento”. Ela lembra que, no caso da hemofilia, a adesão está sujeita a fatores específicos da rotina das famílias: “existem variáveis e barreiras que alteram completamente a chance de uma adesão adequada”.

Um dos maiores desafios é a administração endovenosa frequente. “A necessidade de infusões endovenosas sucessivas dificulta a adesão, principalmente nas crianças, que em geral têm um acesso venoso mais difícil. As várias tentativas de punção trazem o risco de hemorragias e complicações que podem levar à síndrome compartimental”, explica Mariana.

O impacto é maior nas crianças, para quem a punção é dolorosa e muitas vezes exige repetidas tentativas, resultando no aumento dos riscos de hemorragias e em perda de medicamento em 27,5% dos casos. Segundo a pesquisa, 61% das famílias precisam de duas ou mais tentativas para cada infusão e 59% dependem de ajuda externa — hospitais, centros de tratamento ou terceiros — para aplicar o fator. Essa dependência gera custos adicionais e eleva a carga emocional do cuidado.

Os dados ilustram a sobrecarga: 69% dos cuidadores apontam o acesso venoso como o maior obstáculo; 97% relatam irritação e sofrimento da criança durante a infusão; e 98% reconhecem viver sobrecarga emocional, sendo que 88% temem um sangramento grave ou morte. “Somados, esses aspectos revelam o enorme peso que o tratamento impõe sobre pacientes e cuidadores, comprometendo significativamente a qualidade de vida”, resume Mariana.

O impacto também atinge a vida profissional das famílias. Segundo a pesquisa, 73% dos cuidadores tiveram prejuízo em suas atividades de trabalho e 35% precisaram abandonar completamente sua ocupação. “Esses números revelam que a hemofilia não é apenas uma questão clínica. É uma condição que reorganiza a vida da família inteira, criando sobrecarga social, econômica e emocional”, observa Mariana.

Desfechos clínicos e riscos permanentes

Mesmo com a profilaxia disponível, muitos pacientes continuam a ter complicações. O estudo mostra que 47% apresentaram de 1 a 5 episódios hemorrágicos no último ano, enquanto 33% tiveram mais de 6 episódios. As manifestações mais comuns foram hemartroses (49%), que, quando repetidas, levam à artropatia hemofílica — degeneração articular que já foi identificada em 12% dos pacientes.

“Um dos dados mais surpreendentes é que 31% dos cuidadores relatam que o paciente já sofreu o que entendem ser uma síndrome compartimental — condição grave que pode causar dano neuromuscular irreversível”, alerta Mariana.

Outro achado relevante é que 12% dos pacientes já tiveram hemorragia intracraniana. “Esse dado é extremamente preocupante, porque estamos falando de um evento que traz risco de vida e pode causar sequelas neurológicas irreversíveis”, reforça. Para Mariana, essas evidências indicam que as terapias atuais podem trazer riscos e apontam para a necessidade de novas abordagens.

Alternativas terapêuticas: a importância da via subcutânea

A adoção de terapias por via subcutânea aparece como um divisor de águas para os pacientes. Além de eliminar o risco e a complexidade das infusões intravenosas, permite a aplicação em casa pelo próprio cuidador, reduzindo tanto a carga emocional quanto a logística do tratamento. Essa possibilidade oferece mais independência às famílias e melhora a qualidade de vida dos pacientes.

Entre as alternativas, o emicizumabe vem sendo avaliado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) como possível tecnologia a ser incorporada no SUS para crianças sem inibidor nessa faixa etária. Mariana detalha os benefícios: “além de reduzir a sobrecarga sobre pacientes e cuidadores, o medicamento também promove desfechos clínicos muito superiores, já que oferece uma hemostasia muito mais eficaz para prevenir hemorragias em comparação com o tratamento atual”.

Ela lembra que, em estudos clínicos de fase 3 em crianças “nenhum paciente tratado com emicizumabe apresentou sangramentos espontâneos tratados, e não houve casos de sangramentos intracranianos”.

A presidente da ABRAPHEM sintetiza: “a incorporação do emicizumabe permitirá um salto de qualidade no tratamento das crianças com hemofilia A. Esse medicamento possibilita uma infância mais saudável, sem sequelas, sem internações recorrentes, sem necessidade de tratamentos adjuvantes e com maior chance de pleno desenvolvimento escolar e social”.

Além dos benefícios clínicos, a expectativa é de custo-efetividade no curto, médio e longo prazos. O preço proposto indica economia ao governo e, ao prevenir complicações, reduz hospitalizações, cirurgias e despesas assistenciais futuras.

Ministério da Saúde: avaliação baseada em evidências

Em nota oficial para essa coluna, o Ministério da Saúde reforça que o SUS já oferece uma rede estruturada de atenção às pessoas com hemofilia, com atendimento multiprofissional, hemocentros de referência e fornecimento gratuito de medicamentos: “Estão disponíveis fatores de coagulação plasmáticos e recombinantes, fundamentais para evitar complicações, além do emicizumabe, medicamento inovador incorporado recentemente para casos de hemofilia A com inibidor”. Em relação às inovações, a pasta adota um processo sistemático por meio da Conitec.

O Ministério da Saúde informa que a Conitec avalia “potenciais benefícios em médio e longo prazo, custos imediatos frente à demanda e dados de vida real”. A decisão de incorporar ou não uma nova tecnologia considera evidências científicas, impacto orçamentário e sustentabilidade. A participação da sociedade é destacada como parte fundamental do processo: “a sociedade civil tem participação ativa durante a avaliação, por meio de consultas públicas, do espaço ‘Perspectiva do Paciente’, de audiências públicas e da elaboração de diretrizes clínicas”.

A pasta sintetiza sua posição: “A avaliação e eventual incorporação de terapias inovadoras pela Conitec permitem que pacientes tenham acesso aos tratamentos de ponta, desde que baseados em evidências e sustentáveis para o SUS”.

O ministério também reforça a importância do fortalecimento da produção local como componente estratégico da Política de Complexo Econômico-Industrial da Saúde, visando reduzir dependência externa e assegurar soberania nacional: “No caso da fábrica da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) e do fortalecimento de outros laboratórios oficiais, o Governo Federal investe no desenvolvimento da indústria nacional para garantir a soberania do país, a segurança no abastecimento e reduzir  a dependência externa em insumos estratégicos e assegurar a soberania nacional”.

Hemobrás: produção nacional e escala de fornecimento

No campo da produção pública, a Hemobrás desempenha papel central. O diretor de Desenvolvimento Industrial, Antônio Edson de Lucena, afirma que a empresa é “uma ferramenta do SUS para a incorporação de tecnologias, produção de medicamentos voltados à política nacional de sangue e à diminuição da dependência externa”.

Ele destaca a relevância da estatal no fornecimento do fator VIII recombinante: “no ano passado, atingimos o recorde de fornecimento do Hemo-8r ao SUS, com um total de 870 milhões de unidades internacionais (UIs) entregues. Para este ano, a previsão é de um novo recorde, nos aproximando de 1 bilhão de UIs”.

Lucena aponta como diferencial o fato de “uma empresa estatal federal nacional ser a fornecedora de um medicamento que tem transformado a vida de milhares de famílias brasileiras, sem registrar problemas relevantes no abastecimento e garantindo maior economicidade ao Ministério da Saúde, se comparado aos valores que eram praticados antes da chegada da Hemobrás”.

O horizonte inclui a inauguração da Fábrica de Medicamentos Produzidos por Biotecnologia e o início da etapa de envase nacional. “No início de 2026 já estaremos entrando em uma nova etapa de produção, com os primeiros lotes envasados”, explica. O objetivo é alcançar maior autossuficiência na produção desses medicamentos.

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A estatal também busca ampliar sua capacidade inovadora. Entre as iniciativas, destaca-se a parceria com a Fiocruz para desenvolver o NAT Plasma Hemobrás, um teste molecular destinado a detectar vírus em amostras de plasma humano. Segundo Lucena, trata-se de “um passo importante para assegurar o alto padrão de qualidade e de biossegurança na produção dos medicamentos hemoderivados fornecidos ao SUS”.

Como empresa estatal cujo único acionista é o governo federal, Lucena ressalta que a Hemobrás respeita as prioridades e possibilidades de investimento do Ministério da Saúde: apresentou alternativas produtivas e projetos de PDP[1] e PDIL[2] voltados à inovação, mas permanece sujeita à estratégia de investimento da pasta. “Não tivemos os projetos aprovados neste primeiro momento, mas além de continuarmos a conversar com o Ministério da Saúde, estamos buscando outras alternativas para garantir os recursos necessários para o desenvolvimento desses novos produtos”, conclui.

Convergência de agendas: inovação e soberania

Apesar das diferentes perspectivas, há consenso de que inovação terapêutica e produção nacional são necessidades complementares — ainda que enfrentem desafios financeiros e políticos. A incorporação de terapias como o emicizumabe pode transformar a jornada de crianças e famílias, reduzindo sequelas, custos e ampliando a qualidade de vida.

Ao mesmo tempo, reconhecer a capacidade produtiva nacional é essencial para garantir abastecimento, previsibilidade e soberania. Sobrecarregadas, as famílias pedem um diálogo mais próximo com o poder público e o reconhecimento dos dados de vida real que mostram uma jornada exaustiva para a manutenção da vida.

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Agradeço a Antonio Carlos F. Teixeira pela valiosa revisão. Uma entrevista concedida pela Abraphem para este artigo pode ser vista aqui